Quando a luz declina de seu dom de iluminar.
Esse texto é um lamento de Wallace, e não foi autorizado por ele para publicação. No entanto, nós o publicamos, contra a sua vontade, devido às circunstâncias. Nós o publicamos e ele pediu que retirássemos. Todavia eu gostei do texto, ele diz algo para mim. Assim eu o publico novamente. Desculpe meu velho, tuas lágrimas são o nosso consolo.
Geraldo Azegna
Texto:
Nunca me interessei por teatro embora minha mãe achasse que eu estava sempre representando. É possível que assim fosse. Ela também costumava dizer que eu era uma cabeça oca, e essa profecia se realizou infelizmente. O câncer comeu boa parte do oco que nela existia.
Cabeça oca e ator como vemos era o juízo de minha querida mãe sobre essa alma tão desencontrada de si. Que mãe se engana?
Mas voltando ao teatro, quando um de meus irmãos resolveu envolver-se com peças de teatro e show musicais, eu fui seduzido a frequentar essas peças e esses shows. O que mais me impressionava era o momento em que as luzes lentamente apagavam, criando uma escuridão propicia para o fechamento das cortinas. Depois ou viria um novo ato, ou era terminada a peça teatral. Em minha cabeça juvenil aquilo parecia dizer que a Luz abdicava de seu dom de iluminar e devolvia tudo às trevas.
Curioso, nessa altura de minha vida com os olhos perdendo a sua funcionalidade eu me sinto exatamente como uma “iluminação” que comandada por um potenciômetro qualquer vai abdicando da responsabilidade de iluminar.
Que venha então a escuridão.
Eu acho que amei. Digo isso antes que se fechem as cortinas. Não, eu não sei quando acaba o roteiro dessa peça, hoje, amanhã, daqui a trinta anos. De fato eu não sei, mas sei quando acaba o efeito dessa garrafa de vinho que tomei, e é sob esse efeito, que quero registrar os meus sentimentos.
Eu penso em todas as pessoas que amei, mas penso de maneira especial em meu filho e sua mãe. Certamente, eles e os outros, dirão: Amou? O que é isso, esse egoísta, esse mesquinho apegado aos próprios sonhos não amou ninguém. De fato concretamente ao examinar os meus atos externos acho que eles têm a mais reta razão. Ninguém desfrutou de meu amor. Porém, ao voltar os meus olhos para dentro do palco de minha vida, após o fechamento das cortinas, nos bastidores das cenas principais eu quero crer que amei, principalmente ao meu filho e sua mãe. Não foi o único filho que tive, não foi a única mulher que amei, mas foram os únicos que sobreviveram às agruras da vida. Engraçado, neste momento da vida julgo que minha mãe tinha razão, tudo me parece tão distante, meus atos parecem tão divorciados do meu eu mais profundo que devo mesmo ter parecido um ator, um péssimo ator encenando o pior dos roteiros.
Agora vazio de imagens do meu olho compreendo aquela afirmação taoista: “É o vazio do vaso que o torna útil”. Sim hoje, vazio de mim mesmo, me vejo mais útil, mais habilitado para receber a graça de Deus dentro desse vaso de barro de que é feito o meu coração. Já não quero o amor do próximo, nem o convívio de ninguém, não quero compaixão, pois estou sozinho diante de minha memória que se perderão tão logo larguem as argolas do caixão. Não conhecemos verdadeiramente as nossas vidas; apenas temos as memórias, circunstâncias das fatias de tempo, interpretações dos fatos, ilusões vividas. E até isso podemos perder ou nos ser retirado.
Penduro ( as chuteiras) a minha meia de lã vazia na porta da frente, na esperança de receber as graças de Natal. Natal é nascimento. Nascimento de Cristo. Pois assim espero, e digo: se o amor que penso que vivi foi uma ilusão, não haverá de ser ilusão o amor de Cristo. Também Ele entregando-se ao amor de uma humanidade ingrata, viu-se rejeitado e deixou sua luz abdicar do dom de iluminar. Por três dias a humanidade viveu a escuridão do amor divino, e ao terceiro dia, as cortinas se abriram, para o ato final e definitivo na redenção dos homens. Eu não terei essa chance. Não agora. Mas contemplarei tudo isso no dia do juízo.
Tolice vocês dirão. Outros me lembrarão de que joguei minha vida fora. Meus caros, se tudo não passa de mais uma ilusão, que doce ilusão Ele escolheu para mim. Espero que vocês também enfrentem o final, o apagar das luzes, quando as cortinas se fecham definitivamente com a mesma simplicidade e paz que eu estou vivenciando ao testemunhar esse gradativo declinar do dom de iluminar.
Saibam apenas que na minha miséria de ser, eu realmente quis amar.
Feliz Natal.
Wallace Req.
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