Quando a esquerda
começou a tomar um por um os governos dos países sul-americanos, quando foi se
instalando, aos poucos, uma onda de governos dispostos a fortalecer o papel do
Estado, a trincheira buscada pelas forças neoliberais para se reagrupar e
rearmar sua estratégia foi a da imprensa.
Os danos causados
pelas políticas neoliberais foram enormes. A fome, o desemprego e a desigualdade
social são um flagelo que conhecemos desde sempre, mas a ideologia do Estado
mínimo levou a um incremento muito mais acentuado nas últimas décadas do século
passado. Por isso, durante quase toda a primeira década do novo século, as
urnas deste subcontinente decidiram castigar essas políticas e os políticos que
as defendiam.
Uma vez desalojados
dos palácios, a alternativa foi montar uma plataforma de pressão política
através dos meios de comunicação. No auge da primeira onda neoliberal, a eterna
hegemonia da direita no jornalismo latino-americano permitia certo espaço à
crítica e ao contraditório. A partir da chegada de Chávez, Lula e Kirchner,
esses espaços passaram a ser trincheiras, e o termo não é exagerado.
Alguns veículos
adotaram essa postura de forma tão contundente que não poucos os qualificaram
como máquinas de propaganda política contra o governo ou a favor da oposição,
gerando um confronto com presidentes eleitos que, em ao menos dois casos,
chegaram ao extremo. Na Venezuela, em 2002, o grupo de rádio e televisão RCTV
foi um dos principais precursores do último golpe de Estado à moda antiga no
continente, contra Hugo Chávez. Na Argentina, em 2008, o grupo comunicacional
Clarín tomou o lugar de uma direita em frangalhos e liderou a revolta dos
produtores rurais contra o governo da recém-assumida Cristina Kirchner.
As respostas de
ambos os presidentes foram duras, mas não ilegais. A RCTV continuou operando na
Venezuela até o ano de 2007, quando o governo de Chávez decidiu não renovar sua
concessão. A decisão foi baseada no fato de o canal ter sido o que mais
colaborou com as estratégias comunicacionais para o golpe, como a farsa de
Puente Llaguno, na qual se tentou incriminar militantes chavistas pela morte de
manifestantes opositores que estavam sendo alvejados por franco-atiradores – a
manipulação foi revelada pelo documentário La Revolución No Será
Televisada.
Na Argentina, o
Grupo Clarín continuou e continua sendo o detentor da hegemonia dos meios de
comunicação, mas teve que lidar, durante anos, com a ameaça da Ley de Medios,
que previa uma nova regulação que baseada no combate aos monopólios e à
propriedade cruzada, além do estímulo à comunicação pública e ao papel dos
meios regionais públicos. O Clarín também perdeu os direitos de transmissão dos
jogos de futebol, comprados pelo Estado através do programa Fútbol Para Todos,
em 2009.
Ainda assim, e bem
diferente do que afirmam os críticos fora da Argentina – e especialmente no
Brasil – a Ley de Medios não significou a criação de canais de televisão
governamentais, mas sim o fortalecimento dos canais públicos, especialmente o
canal Encuentro, cujo conteúdo era mais educativo que jornalístico. A lenda do
uso do poder governamental para a gestação de uma plataforma jornalística
governista financiada com dinheiro do Estado não foi uma realidade – embora
houvesse sim meios privados, bem menos poderosos que o Grupo Clarín, que se
quadraram com o kirchnerismo.
Quem apostou numa
nova plataforma comunicacional, e num relato diferente sobre os acontecimentos
da América Latina foi Hugo Chávez, que impulsou a criação do canal de notícias
TeleSur, visando criar um confronto evidente com o discurso dos meios de
comunicação latinos sediados em Miami e Atlanta, como Fox News e CNN.
O modelo Macri, e
Temer
A grande ironia é
ver hoje como essas medidas foram tratadas por parte da imprensa –
especialmente a que é parceira nos espaços hegemônicos – como ataques à
liberdade de expressão, e comparar com o que vemos agora, quando a direita se
reinstala no poder e inicia uma verdadeira caça às bruxas comunicacional, sob o
silêncio resignado e até mesmo covarde de alguns outrora defensores do
pluralismo.
A Argentina é o caso
mais evidente. O governo de Mauricio Macri tem sido, no campo das comunicações,
um defensor assíduo dos interesses do Grupo Clarín. Macri desmantelou a AFSCA
(Autoridade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual), um dos principais
órgãos responsáveis pela regulação pretendida pela Ley de Medios, e iniciou uma
política de distribuição de verbas públicas claramente hostil aos meios que
contassem com jornalistas críticos à sua gestão – o que levou, por exemplo, à
demissão de jornalistas de renome como Víctor Hugo Morales, que viu a Rádio
Continental, onde trabalhava há trinta anos, quebrar seu contrato sem aviso
prévio e sem manifestar maiores explicações. A crise provocada por essas
medidas, e também pelas medidas econômicas do novo governo, levou a uma série
de demissões massivas, até mesmo em meios que defenderam sua candidatura no ano
passado. Se estima que mais de mil jornalistas argentinos já perderam emprego
este ano.
Vale destacar também
que a política comunicacional de Macri também contempla o desinvestimento nos
meios de comunicação públicos, a eliminação dos canais TeleSur e Russia Today
do sistema de televisão público de livre acesso e a criação de tipos legais de
perseguição a jornalistas. Por exemplo, pouco depois da descoberta do caso dos
Panamá Papers, no qual o seu nome estava envolvido, o governo lançou um projeto
que prevê pena de prisão para cidadãos que denunciem casos de possíveis
esquemas de lavagem de dinheiro.
Parte dessa receita
tem sido seguida pelo governo até agora interino de Michel Temer, especialmente
a seletividade com respeito à distribuição da verba pública e à intenção de
intervir fortemente nos meios públicos, como se viu no caso da EBC, e não para
fortalecê-los, mas justamente o contrário.
Além disso, é
interessante observar como nem o cerceamento da pluralidade, nem a demissão massiva
de jornalista, nem o estímulo à centralização ou desestímulo aos meios
regionais ou comunitários, tanto na Argentina quanto no Brasil, nada disso
comove os grandes grupos de comunicação, ou as entidades como a SIP (a inglória
Sociedade Interamericana de Imprensa), que outrora gritava e se dizia defensora
intransigente da liberdade de imprensa, e que agora, pelo contrário, não poupa
elogios ao novo presidente argentino, a quem classificou como uma pessoa
“aberta e plural”.
Os que não compraram
a briga
Enquanto isso,
outros presidentes, e até ex-presidentes, enfrentaram ou enfrentam duras
campanhas comunicacionais contra si. O boliviano Evo Morales perdeu um
plebiscito em janeiro graças à denúncia de um suposto filho bastardo, que agora
a imprensa admite, sem nenhum mea-culpa, que nunca existiu. A chilena Michelle
Bachelet enfrenta ataques da mídia local por pedir direito de resposta a uma
revista que a acusou de se beneficiar de um esquema imobiliário apenas com um
áudio, sem provas documentais – caso que ganha mais contornou por ter surgido
uma semana depois dela ter anunciado um investimento recorde para potenciar os
meios de comunicação públicos, junto com a criação de um novo canal cultural.
Isso sem contar os casos que vemos no Brasil, onde Lula e Dilma nunca deixaram
de ser alvo da ira dos grandes canais de televisão e de algumas revistas, o que
muitas vezes passou da mera crítica, e beirou a campanha difamatória.
A semelhança entre
os casos de Evo, Bachelet, Lula e Dilma é que nenhum deles teve a coragem que
Chávez e Cristina tiveram, de encarar a batalha comunicacional. Ainda assim,
sofreram consequências similares. Passaram anos fugindo de acusações censura e
intervenção, e agora observam como Temer e Macri podem intervir sem maiores
adjetivos ou consequências.
Esses ataques às
políticas comunicacionais mais plurais nada mais era do que a defesa daquela
última trincheira, se usava a novilíngua para fazer do estímulo à diversidade
de ideias uma forma de ataque à liberdade de expressão, e assim conseguiram
impedir que houvesse qualquer reivindicação em favor dos governos pretenderam
estabelecer, com maior equilíbrio social e distribuição de renda, um arremedo
de social-democracia ainda distante de um clássico Estado de bem-estar, mas o
suficiente para ser completamente inaceitável para uma grande imprensa
doutrinadora, ideologizada e partidarizada.
E o pior é que a
esquerda logo descobrirá – se é que já não percebeu – que os responsáveis pela
nova onda neoliberal são conscientes de que, se pretendem ter longo tempo de
vigência, não devem ceder à esquerda sequer aquele pequeno espaço midiático que
havia, até os Anos 90, para a crítica e o falso pluralismo.
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