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A teologia da Inquisição segundo Santo Tomás de
Aquino - I
Por Sávio Laet de Barros Campos
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Antes, uma premissa. Nem todo conteúdo do que escrevemos tem nossa aprovação pessoal. Há
que se distinguir, pois, licença de aprovação. Licença é permissão, aprovação é abono. Com
efeito, tantas são às vezes em que nos permitimos - tomamos a licença - de expor um autor,
uma idéia, etc. Isto, porém, não significa que estejamos de acordo, nem que aprovemos - in
totum - aquilo que expomos. Entretanto, advertimos que no presente caso, o conteúdo que
passaremos a expor, tem o nosso modesto assentimento. Não somente o defendemos a título de
expositores, mas aderimos a ele.
Concordar com os princípios não significa, no entanto, julgar adequado que eles sejam
aplicados aqui e agora: “A aplicação do princípio dependerá das circunstâncias.” Nova
distinção: de um lado, o princípio e o direito, de outro, a conveniência da sua aplicabilidade
num determinado caso, num determinado espaço-temporal: “Aprendamos a distinguir sempre
entre os princípios imóveis e as suas aplicações variáveis.” Exemplo. Alguém é favorável à
pena de Morte, defende-a como um direito natural do Estado. Todavia, vive num país
controlado por comunistas corruptos. Por conseguinte, se – a priori – era favorável à pena
capital, não propõe, contudo, que tal pena seja instaurada em seu país, ao menos enquanto
perdurar o legado dos déspotas vermelhos. Portanto, embora favorável ao direito, por
prudência, posiciona-se contra a sua instauração e aplicação.
Sem embargo, o contrário também é verdadeiro, a saber, a falha na aplicação não invalida a lei
e o direito ou o princípio. Exemplo. Durante a Segunda Grande Guerra, muitos inocentes foram
mortos; homens, sem direito a ampla defesa, foram também condenados sem julgamento justo.
Logo – concluem muitos - a pena de morte é injusta e iníqua. O paralogismo é flagrante! Em
boa lógica, a falha na aplicação não invalida o preceito, da mesma forma que “abusus non tollit
usum”, o abuso não extingue o uso.
Outra falácia pode ocorrer, qual seja, quando se pede ao princípio ou a lei, o que ele não pode
dar, simplesmente porque não se ordena a isso. Assim, românticos e pragmáticos, alegando que
a pena de morte não coíbe a violência, quiseram negar o direito natural do Estado de aplicála.
Argumento, assaz aleivoso. A pena de morte está ordenada, não a extinguir a violência – isto
pode ser uma conseqüência – mas a restabelecer a ordem, a satisfazer a justiça (dar a cada qual
o que lhe é devido) e preservar o bem comum. Tampouco - apenas para acrescentar - são lícitos
os argumentos de certa psicologia dita cristã, segundo a qual a pena capital incitaria ao ódio, a
vingança e atentaria contra os valores evangélicos. Deve-se dizer, com efeito, que o criminoso
não é morto seja por ódio ou vingança, mas - voltamos a repetir - para restabelecer a ordem.
Por isso mesmo, se alguém (veremos no corpo do texto que um particular não pode aplicar a
pena de morte, mas só a autoridade constituída), porventura, mata um criminoso por paixão
pessoal, peca, mas não por matá-lo e sim por matá-lo por ódio ou vingança.
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Da Infidelidade
Da Definição de Infidelidade
A Questão 10, do Artigo 8, da II-II da Suma Teológica, inquire: “Utrum infidelis
comppellendi sint ad fidem?”, “Devem os infiéis ser compelidos a aceitar a fé?” A
primeira coisa a se analisar é a palavra infidelidade. Este termo pode ser entendido de
dois modos. De um modo mais geral, pode-se dizer que infiel é aquele que não tem fé:
“(...) infiel é aquele que não tem fé.”
No entanto, falando propriamente, a infidelidade se apresenta como uma repugnância
em ouvir a fé ou um desprezo a ela: “(...) a infidelidade pode ser entendida, no sentido
de oposição à fé, porque se recusa a prestar ouvido à fé ou mesmo a despreza (...)”.
Entendida, no primeiro sentido, a infidelidade não é um pecado. Ela diz respeito
àqueles que nunca ouviram falar das verdades de fé. Estes não cometem pecado algum;
antes, por sua ignorância das divinas verdades, pagam a pena, conseqüência do pecado
original:
Se, porém, se entende infidelidade no sentido de negação pura,
como no caso daqueles que jamais ouviram falar das verdades da
fé, não tem razão de pecado, mas de pena, porque tal ignorância
das coisas divinas é conseqüência do pecado do primeiro pai.
Entretanto, a presente questão irá tratar daqueles que, por culpa própria – isto é,
voluntariamente – se recusam a crer ou desprezam a fé. Infiel, portanto, é aquele que
recusa ou despreza a fé:
De outro modo, a infidelidade pode ser entendida, no sentido de
oposição à fé, porque se recusa a prestar ouvidos à fé ou mesmo a
despreza (...). E nisso está propriamente a noção de infidelidade.
E, neste sentido a infidelidade é pecado.
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1.1.1) Da Infidelidade dos Judeus e Gentios
Ora bem, deve-se fazer nova distinção. Destarte, entre os infiéis – no sentido estrito do
termo – existe aqueles que nunca tiveram fé e que, doravante, se recusam a tê-la, como
é o caso dos judeus e dos gentios: “(...) Entre os infiéis, há que os que nunca receberam
a fé, como os gentios e os judeus (...)”.Estes, de nenhum modo podem ser compelidos à
fé, dado que a fé é um ato essencialmente voluntário: “E eles, de modo algum, são
compelidos à fé para crer, pois crer é ato da vontade.”
1.1.1.1) Das Cruzadas e das Guerras Contra os Gentios
Levando em conta isso, somos inclinados faz a questionar: qual, neste ínterim, o
objetivo das cruzadas e demais guerras? As guerras, bem como as cruzadas, não
seriam empreendidas, exatamente com o objetivo de constranger os gentios e judeus a
crerem? De todo. Os cristãos, afirma Santo Tomás, não movem guerra contra os infiéis
para obrigá-los a crer, mas tão somente para que estes não impeçam àqueles que crêem
– isto é, aos cristãos – de viverem, livremente a sua fé, fazendo-a expandir por todos os
lados. Logo, as guerras religiosas e – mesmo as cruzadas – eram empresas em defesa
da liberdade religiosa do catolicismo: tencionavam elas, portanto, apenas tolher a ação
dos pagãos, a fim de que estes não perseguissem, não blasfemassem e nem impedissem
a prosperidade da fé cristã:
E, por isso, os fiéis cristãos movem freqüentemente guerra aos
infiéis, não para obrigá-los a crer – porque ainda que os
mantivessem vencidos e cativos, lhes deixariam a liberdade de
querer crer ou não – mas para compeli-los a não mais impedir a
fé em Cristo.
Algumas considerações adicionais, sobre as guerras medievais. Hoje se tornou
contraditório e até soa escandaloso para alguns, falar em guerra justa (Bellis Iustis). No
entanto, é preciso observar que, mesmo a moral evangélica – em toda a sua
radicalidade – não anula a possibilidade de uma guerra justa. Santo Tomás, retomando
Santo Agostinho, chega a dizer que, se a doutrina cristã proibisse, pura e simplesmente,
o uso da força e o recurso à guerra, aos soldados que perguntavam o que devem fazer
para obter a salvação, João Batista teria dito para jogarem as armas fora... Entretanto,
não é isto o que ocorreu: João lhes pede para se conterem, sem lhes proibir de
combaterem:
Agostinho escreve: “Se a moral cristã julgasse que a guerra é
sempre culpável, quando no Evangelho soldados pedem um
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conselho para a sua salvação, dever-se-ia responder-lhes que
jogassem fora as armas e abandonassem completamente o
exército. Ora, se lhes diz: “Não molesteis a ninguém, contentaivos
com vosso soldo.” Prescrever-lhes que se contentem com o
seu soldo não os proíbe combater.”
Não se entenda com isso, no entanto, que qualquer um possa, por qualquer motivo que
fosse declarar guerra contra outrem. A guerra – afirma Santo Tomás – para ser justa
precisa respeitar, ao menos, três condições. A primeira delas é esta: seja o príncipe, e
não uma pessoa privada, a declarar guerra. É ao príncipe que cabe esta função, por ser
ele o responsável pela preservação do bem comum da cidade, do reino ou da província.
Ao estado – diz a máxima – pertence à espada. Sem embargo, se no Novo Testamento
Nosso Senhor diz a Pedro – pessoa privada – que embainhe a sua espada, São Paulo, ao
contrário, diz que às autoridades competentes, quando se tratar de afugentar o mal, cabe
desembainhá-las, como ministros de Deus. Santo Tomás, retomando esta mesma
passagem, conclui: se o príncipe é ministro de Deus, para restabelecer a justiça diante
de salteadores internos, também caberá a ele – ainda que tenha que usar a força –
conter os malfeitores externos, por meio da guerra:
Assim como o defendem licitamente pela espada contra os
perturbadores internos e punem os malfeitores (...) assim também
compete-lhes defender o bem público pela espada da guerra
contra os inimigos do exterior.
Não obstante, não poderá o príncipe – e esta é a segunda condição requerida - estar
abandonado ao seu próprio arbítrio quando resolver deflagrar uma guerra. Será
preciso – para que tal decisão seja legítima – que haja uma causa proporcional.
Contudo, não basta apenas a decisão do príncipe e nem mesmo a causa justa para que a
guerra seja também justa, é preciso ainda – e esta é a terceira condição - que a intenção
pela qual se inicia o combate seja, ela própria, justa. Toda guerra justa deve ter em vista
a paz e o restabelecimento da ordem. Isto exclui – observa Santo Tomás, citando Santo
Agostinho - aqueles conflitos que se iniciam por mero desejo de prejudicar, violentar
ou se vingar de um outro povo. Também deve ser tido por inaceitável os requintes de
crueldade e toda espécie de violência que exceda à necessária dureza para se impedir o
inimigo de continuar fazendo o mal:
Escreve Agostinho a propósito: “O desejo de prejudicar, a crueldade na
vingança, a violência e a inflexibilidade do espírito, a selvageria no combate, a paixão
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de dominar e outras coisas semelhantes, são estas as coisas que nas guerras são julgadas
culpáveis pelo direito.”
Se, ao contrário, a guerra for justa, seu fruto será sempre a paz e o restabelecimento da
ordem. O Angélico chega a dizer que a única paz que a guerra justa quebra, é aquela
paz má (paci malae) que Cristo não veio trazer à terra. Continua o Aquinate, sempre
citando Agostinho, quando o uso da violência é moderado, não tendo outra intenção
senão impedir que se pratique o mal, tal uso é bem-vindo e àqueles que o sofrem é
imposta uma proveitosa derrota. De fato, nada mais infeliz para a comunidade do que a
felicidade dos pecadores nos seus empreendimentos:
É por isso que Agostinho escreve: “É preciso agir fortemente,
mesmo com aqueles que resistem, a fim de dobrá-los por uma
certa dureza benevolente. Aquele que é privado do poder de fazer
o mal sofre uma proveitosa derrota. De fato, nada mais infeliz do
que o feliz sucesso dos pecadores, pois a impunidade, é
alimentada, e sua má vontade, como um inimigo interior, é
fortificada.
Por fim, a guerra não é um “vale tudo”, uma barbárie completa, como comumente o
vulgo costuma imaginar. No artigo terceiro da questão De Bello, Santo Tomás trata
sobre a licitude dos estratagemas de guerra. Analisando mais de perto o problema, o
Aquinate chega à conclusão de que nunca será lícito – nem mesmo em caso de guerra -
enganar o inimigo, dizendo-lhe algo falso ou deixando de cumprir uma promessa.
Segundo Frei Tomás, infringem os direitos de guerra (iura bellorum) e as convenções
(foedera), os que assim agem. Entretanto, Tomás de Aquino julga lícito enganar o
inimigo, não lhe dizendo coisa falsa, mas ocultando-lhe as verdadeiras. De fato, alguém
pode se enganar, com relação aos nossos atos ou palavras, não por falsidade de nossa
parte, mas por não conseguir penetrar os nossos pensamentos e os objetivos que
tivemos ao dizê-las. E é até com certo “ironia” que o Frade de Rocasseca declara que,
vontade desordenada, tem aquele que espera que o seu adversário lhe conte como o
deseja atacar:
Este ocultamento faz parte dos estratagemas permitidos nas guerras justas
Tais estratagemas não são chamados de fraudes propriamente ditas; não se opõem à
justiça nem a uma vontade ordenada. Haveria uma vontade desordenada se alguém
quisesse que os outros nada lhe ocultassem.
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Já no Prefácio da segunda e terceira edições do seu clássico, Noções de História
da Filosofia, Pe. Leonel Franca advertia aos seus leitores: Leonel Franca. Noções de
História da Filosofia. p. 4: “Notamos, porém que a inclusão de uma obra nas páginas
não significa a aprovação das suas idéias nem mesmo o conselho de suas leituras. (...)
As nossas bibliografias não querem ser diretivas, são apenas informativas.”
Maurílio Teixeira Leite Penido. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. p.
321.
Nem precisamos sair das Escrituras para percebemos a diferença. São Paulo era, pois, a
princípio, contra a circuncisão: “Eu, Paulo, vos digo: se vos fizerdes circuncidar, Cristo
de nada vos servirá.” (Gl 5, 2). No entanto, dada certas circunstâncias, para não causar
escândalo, circuncidou a Timóteo: “Querendo Paulo que ele partisse consigo, realizou a
circuncisão, por causa dos judeus que havia naqueles lugares.” (At 16, 3). Exemplo
análogo encontramos no mesmo São Paulo. Este, por acreditar na pureza de todos os
alimentos, já havia decretado que não haveria mal algum em se comer, ocasionalmente,
carnes sacrificadas aos ídolos: “Tudo o que se vende no mercado, comei-o sem
levantar dúvidas por motivo de consciência (...). Se algum gentio vos convidar e
aceitardes o convite, comei de tudo o que vos for oferecido, sem suscitar questões por
motivos de consciência.” (I Co 10, 25 e 26). No entanto, pedia que não se fizesse uso de
tal alimento, se isto fosse causa de escândalo para um irmão fraco na fé: “Mas, se
alguém vos disser: ‘Isto foi imolado aos ídolos’, não comais, em atenção a quem vos
chamou a atenção e por respeito à consciência. Digo: a consciência dele, não a vossa.”
(I Co 10, 28 e 29).
Por exemplo, argumentam certos críticos, que não é lícito tirar a vida ninguém, tendo a
passagem da Escritura Não matarás (Ex 20, 13). Concedamos ainda, de bom grado, que
tal doutrina também foi retomada pelo Novo Testamento, pois o Senhor a promulga:
“Ouvistes o que foi dito aos antigos: não matarás (Mt 5, 22). No entanto, observando
com mais argúcia o contexto do Êxodo, verificamos mais frente que o Senhor diz: “Não
permitirás que os perniciosos vivam” (Ex 22, 18). E Cristo, no mesmo Sermão, acresce
ao dito citado acima as seguintes palavras: “Eu, porém, digo: o que se irar contra o seu
irmão...”. Pelo que conclui Tomás de Aquino, comentando a passagem citada: Tomás
de Aquino Suma Contra os Gentios. III, CXLVI, 8 (3200a): “Com isso dá a entender
que é proibido matar por ira, não, porém, matar por justo zelo.” Outros objetam ainda,
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citando novo fragmento bíblico, que o Senhor não permitiu que se separasse o joio do
trigo, “Para que, colhendo a cizânia, não corteis também o trigo.” (Mt 5, 29). A eles é
preciso responder - retruca Santo Tomás - que o Senhor se refere, somente àquelas
ocasiões em que não é se é possível distinguir o culpado do inocente: Idem. Ibidem. III,
CXLVI, 8 (3200b): “Neste texto, portanto, é proibida a morte dos maus, quando ela não
pode se dar senão com perigo para os bons.”
Idem. Suma Teológica. (II-II, 10, 1, C.)( II-II, 10, 8, C.)
Para ser ainda mais preciso. Crer é um ato do intelecto que, sob a moção da vontade –
por sua vez, movida pela graça divina – adere à verdade revelada: Idem. Ibidem. II-II,
2, 2, C: “(...) crer é um ato do intelecto movido pela vontade (...)”. Idem. Ibidem. II-II,
2, 9, C: “Ora, crer é um ato do intelecto que adere à verdade divina sob a moção da
vontade, que Deus move pela graça; desse modo depende do livre-arbítrio (...)”.
Idem. Ibidem. II-II, 10, 8, C. Advertia Pio XII: Pio XII. Mystici Corporis Christi. n.:
“Mas se desejamos que sem interrupção subam até Deus as orações de todo o corpo
místico implorando que os errantes entrem quanto antes no único redil de Jesus Cristo,
declaramos contudo ser absolutamente necessário que eles o façam espontânea e
livremente, pois que ninguém crê, senão por vontade. Por conseguinte se alguns que
não crêem são realmente forçados a entrar nos templos, a aproximar-se do altar e a
receber os sacramentos, não se fazem verdadeiros cristãos: a fé, sem a qual ‘é
impossível agradar a Deus’ (Hb 1,6), deve ser libérrima ‘homenagem da inteligência e
da vontade’. Se, portanto, acontecesse que, contra a doutrina constante da Sé
Apostólica, alguém fosse obrigado a abraçar contra sua vontade a fé católica, nós,
conscientes do nosso dever, não podemos deixar de o reprovar.” (Os itálicos são
nossos).
Tomás de Aquino. Suma Teológica.( II-II, 10, 8, C.);( II-II, 40, 1, SC. )
Idem. Ibidem. II-II, 40, 1, C: “Não compete a uma pessoa privada declarar uma guerra,
pois pode fazer valer seu direito no tribunal de seu superior; também porque, convocar a
multidão necessária para a guerra não compete a uma pessoa privada.”
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Idem. Ibidem: “Já que o cuidado dos negócios públicos foi confiado aos príncipes, a
eles compete velar pelo bem público da cidade, do reino ou da província submetidos à
sua autoridade.”
Jo 18, 10–11: “Simão Pedro, que tinha uma espada, puxou dela e feriu o servo do sumo
sacerdote, decepando-lhe a orelha direita. (O servo chamava-se Malco.). Mas Jesus
disse a Pedro: Enfia a tua espada na bainha!”
Acompanhemos todo o contexto que é muito esclarecedor: Rm 13, 3-4: “Em verdade, as
autoridades inspiram temor, não porém a quem pratica o bem, e sim a quem faz o mal!
Queres não ter o que temer a autoridade? Faze o bem e terás o seu louvor. Porque ela é
instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão
que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e para exercer a ira contra
aquele que pratica o mal.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 40, 1, C.
Idem. Ibidem: “Uma causa justa: requer-se que o inimigo seja atacado em razão de
alguma culpa.”
Idem. Ibidem: “Com efeito, mesmo se for legítima a autoridade daquele que declara a
guerra e justa a sua causa, pode acontecer, contudo, que a guerra se torne ilícita por
causa de uma intenção má.”
Idem. Ibidem. II-II, 40, 1, ad 3: “Deve-se dizer que os que fazem guerras justas
procuram a paz. Conseqüentemente não se opõem à paz, a não ser à paz má que o
Senhor ‘não veio trazer à terra’, segundo o Evangelho de Mateus.”
Idem. Ibidem. II-II, 40, 1, ad 2.
Idem. Ibidem. II-II, 40, 3, C: “Ora, há duas maneiras de alguém ser enganado pelas
ações ou palavras de um outro. Primeira, dizendo alguma coisa falsa ou não mantendo a
promessa. E isso é sempre ilícito.”
Idem. Ibidem: “Ninguém deve enganar o inimigo dessa maneira; com efeito, há direitos
de guerra e convenções que devem ser observados, mesmo entre inimigos, diz
Ambrósio.”
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Idem. Ibidem: “Segunda, alguém pode se enganar em relação às nossas palavras ou
nossos atos porque não lhe revelamos nosso objetivo ou nosso pensamento. Ora, nem
sempre somos obrigados a fazê-lo (...)”. É pressuposto de toda guerra justa ocultar os
planos de guerra dos inimigos: Idem. Ibidem: “Por isso, entre outras ações militares,
esta se coloca em primeiro lugar: ocultar os planos para que não cheguem até os
inimigos (...)”.
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A teologia da Inquisição segundo Santo
Tomás de Aquino - II
Por Sávio Laet de Barros Campos
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1.1.2) Da Heresia e da Apostasia
Retornando, pois, ao objeto específico deste estudo, e continuando a nossa distinção
entre os infiéis, é preciso dizer que existem ainda aqueles que, muito embora como os
outros, desprezem e resistam à fé, outrora haviam crido: são os hereges e todos os
apóstatas: “Outros, porém, são infiéis que outrora tiveram fé e a professam: como os
hereges e todos os apóstatas.”
Quem é então o herege? Quem o apóstata? O que os diferencia? Para compreendermos
bem estas duas realidades, precisamos discriminar qual seja o conceito de fé no
Aquinate.
1.1.2.1) Do Conceito de Fé
Quem crê, diz Tomás, crê, antes de tudo, na palavra de outrem. Por isso, em qualquer
forma de crença, a pessoa em que se crê precede à palavra na qual se crê. A fé,
portanto - antes mesmo de ser uma adesão a uma palavra - é um ato pessoal, no qual
uma pessoa se fia na palavra de outra pessoa:
Ora, como o que crê adere à palavra de outro, considera-se como
principal e fim, em qualquer espécie de crença, aquele em cuja
palavra assentimos; e, como quase secundário, aquilo que
admitimos por querermos assentir à palavra de outro.
Desta feita, no ato de fé, aderimos à palavra, não em virtude de termos atestado,
demonstrativa e evidentemente a sua veracidade, senão porque, quem no-la diz, é digno
de nosso assentimento:
Nesse gênero de fé, que, em oposição à anterior, poderemos
chamar de autoridade, o motivo que determina o assentimento
não é a evidência de que o testemunho é verdadeiro e de que
aquele que o prestou, atualmente, no caso concreto, não faltou à
verdade, mas a autoridade habitual da testemunha que, pela sua
ciência e veracidade, tem direito a uma adesão dócil das nossas
inteligências.
No caso da fé cristã, ocorre algo análogo. Com efeito, o crente cristão, não é senão
aquele que adere, por um ato da vontade, a Cristo e, por isso mesmo, a doutrina de
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Cristo. Antes de aderir às palavras, o ato de fé implica, portanto, um assentimento à
pessoa de Cristo. Em outras palavras, quem aderiu às palavras de Cristo é porque já
assentiu, ipso facto, a pessoa de Cristo. Em uma palavra, em Cristo inseparáveis são a
pessoa e a doutrina. Ele é, pois, o fundamento da nossa fé. O original latino, não deixa
dúvida quanto a isso: “Sic igitur recte fidem Christianam habet sua voluntate assentit
Christo in his quae vere ad eius doctrinam pertinent.” (“Assim, pois, aquele que possui a
verdadeira fé cristã adere ao Cristo por sua vontade, naquilo que verdadeiramente
pertence à doutrina de Cristo”). Pe. Penido – o maior tomista brasileiro – no seu
excelente tratado sobre o Mistério da Igreja, confirma a doutrina de Santo Tomás, com
a seguinte exortação ao testemunho cristão:
Ora, a doutrina a testemunhar não é apenas teoria senão vida, e
vida que consiste em aderir a outra vida: a vida pessoal de Cristo.
A pessoa de Platão ou de Aristóteles, por exemplo, distingue-se
de sua doutrina. Não assim Cristo: ‘Eu sou o caminho, a verdade,
a vida’, diz ele (Jo 14, 6). Aderir à verdade cristã, é aderir à
pessoa de Cristo, é viver de Cristo, ter em si o pensamento e o
amor de Cristo. (...) Logo, testemunhar o cristianismo não pode
reduzir-se a repetir fórmulas cristãs, nem mesmo a aceitar essas
fórmulas. Testemunhar, é aceitar a pessoa mesma de Cristo,
entregando-se a ele, observando o que ele prescreveu.”
1.1.2.1.1) Da Corrupção da Fé
Há, por conseguinte, duas formas de atentar contra a retidão da
fé: “Portanto, da retidão da fé cristã podemos desviar-nos de dois modos.” Há aqueles
que, por não aderirem a Cristo, não assentem, tampouco, à doutrina de cristã. É o caso
dos pagãos e judeus: “De um modo, por não querer aderir ao próprio Cristo (...). E isso
pertence à espécie de infidelidade dos pagãos e dos judeus.” Entretanto, existem aqueles
que, muito embora aderindo a Cristo, erram, contudo, assentindo a coisas que Cristo
não ensinou, mas que lhes foi sugerido pela mente:
De outro modo, quando embora se tenha a intenção de assentir à
doutrina de Cristo, erramos elegendo não o que Cristo
verdadeiramente ensinou, mas o que é sugerido pela própria
mente.
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O ato de fé, já nos escolásticos – e maximamente em Tomás – está tão intimamente
ligado à pessoa de Cristo, que o Angélico chega a dizer que o herege que descrê, ainda
que seja numa verdade de fé – mesmo que continue crendo em todas as outras - já não
possui a virtude infusa da fé. Sem embargo, desfalece nele - do hábito da fé - a sua
razão formal, ou seja, a razão pela qual ele existe como tal. E a razão formal da fé está
nisto: tomar por infalível a verdade primeira - que é a pessoa de Cristo, enquanto Deus
revelado - como esta é manifestada – também infalivelmente – seja pela Sagrada
Escritura, seja pela Doutrina da Igreja. Estas, de fato, são as fontes pelas quais a
verdade primeira chega até nós. A adesão a elas, por conseguinte, é o que específica o
hábito da fé, isto é, sem tal adesão, o dito hábito não pode subsistir
O objeto formal da fé é a verdade primeira, manifestada nas
Sagradas Escrituras e na doutrina da Igreja. Por isso, aquele que
não adere como a uma regra infalível e divina à doutrina da
Igreja, que procede da verdade primeira revelada nas Sagradas
Escrituras, não tem o hábito da fé, mas aceita as verdades da fé de
modo diferente que pela fé.
O que distingue a teologia escolástica – especialmente a tomista – da teologia
protestante e católica modernista, não reside no fato de a pessoa de Cristo ser o
fundamento da fé. De fato, tanto para Tomás como para Lutero, crer significa, antes de
tudo, crer em uma pessoa. O que liberta a teologia do Angélico, do subjetivismo
protestante e do romantismo modernista, é o fato de que, a pessoa de Cristo, em Tomás,
possui neste mundo, um pontífice supremo, que lhe faz às vezes e que fala em seu nome.
Sendo seu único representante, este pontífice é quem nos discrimina, por conseguinte,
qual seja a sua verdadeira doutrina: “Ora, esta Cabeça é o próprio Cristo, do qual o
soberano pontífice faz as vezes na Igreja.” Tanto é assim que, somente quando a Igreja
universal – pela autoridade do seu Pastor Supremo – declara como de fé divinamente
revelada dada verdade, é que quem a rejeita – com pertinácia – passa a cair em heresia,
tornando-se herético:
Assim, alguns Doutores dissentiram (...) sobre certas questões
pertinentes à fé, mas ainda não definidas pela Igreja. Contudo,
depois de definidas pela autoridade da Igreja universal, quem
pertinazmente as rejeitasse seria considerado herético. E essa
autoridade, reside principalmente no Sumo Pontífice (...).
Na teologia do Angélico, Cristo, a Sagrada Escritura, a Doutrina da Igreja e o Sumo
Pontífice estão, pois, indeclinavelmente ligados. Cristo, como verdade primeira, a
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Sagrada Escritura e a Tradição Apostólica, como fontes da revelação da verdade
primeira e o Credo da Igreja – definido e determinado pela autoridade do Sumo
Pontífice – como explicação e explicitação, fiel e infalível, das fontes da Revelação
(Sagrada Escritura e Sagrada Tradição), procedentes, estas por sua vez, da verdade
primeira, que é precisamente Cristo. Sobre a finalidade do Magistério, declina Penido:
Assim, a finalidade do Magistério não é de todo revelar verdades novas,
sobrepor-se à Escritura, mas tão só manifestar o sentido genuíno dessa Palavra divina, à
qual a Igreja inteira – docente e discente – se submete sem restrições. (...) apresentar
autenticamente a nossa fé, o seu objeto revelado.
Idem. Ibidem. II-II, 10, 8, C.
Idem. Ibidem. II-II, 11, 1, C. Joseph Pieper. Crer, Esperar e Amar. trad. Luiz Jean
Lauand. Disponível em: . “Quem em sentido próprio crê, aceita um conteúdo como
verdadeiro, como real, pelo testemunho de alguém; assim, a razão de que eu creia em
algo é que creia em alguém.”
Leonel Franca. A Psicologia da Fé. p. 49.
Que Cristo seja a própria Revelação de Deus e que assentir aos seus ensinamentos é
aderir à sua própria pessoa Pe. Penido – o mais notável teólogo tomista brasileiro – não
deixa sombra de dúvida: Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 276: “(...) O divino
Mestre identifica-se à própria doutrina – ‘Eu sou a verdade’ – enquanto o sábio se
distingue da sua descoberta e o filósofo do seu sistema. Tanto assim que podemos
adotar uma teoria sem lhe conhecer o autor, enquanto aceitar o ensinamento de Cristo é
aderir à pessoa de Cristo: a sua revelação é ele mesmo.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 11, 1, C.
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 254. Idem. Op. Cit. p. 257: “Devemos
testemunhar esta santidade, fazendo resplandecer a verdadeira face de Deus e da Igreja,
pela adesão à pessoa de Cristo, e a observância do que ele prescreveu.” Tomás de
Aquino. Suma Teológica. II-II, 11, 1, C.
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Sobre este mesmo ponto, doutrina Pe. Penido: Maurílio Teixeira Penido. Op. Cit. p.
178: “(...) para ser herege basta haver perdido a virtude da fé, negando uma só verdade
revelada, ainda que admitindo as demais.” O Próprio Aquinate não é menos claro
quanto a isso: Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 5, 3, C: “O herege que descrê
de um artigo de fé não tem o hábito da fé, nem da formada, nem da fé informe.”
Aqui cabe um esclarecimento de primeira ordem. O fundamento da nossa fé, como
vimos, é única e exclusivamente a autoridade de Deus. Ele é a causa única do nosso
assentimento: Idem. Ibidem. II-II, 1, 1, C: “(...) pois a fé da qual falamos não dá o seu
assentimento a alguma coisa a não ser que seja revelado por Deus (...)”. Idem. Suma
Contra os Gentios. I, IX, 3(53): “Ora, não cremos em verdades que excedem a
capacidade da razão humana, a não ser que tenham sido reveladas por Deus.” No
entanto, permanece sendo verdade que só cremos no que a Igreja afiança como verdade
divinamente revelada. Sobre certas verdades contidas nas Escrituras, mas que não
constam nos artigos de fé, diz Santo Tomás, que não somos obrigados a crer nelas –
explicitamente - salvo quando forem definidas como matéria de fé: Idem. Suma
Teológica. II-II, 2, 5, C: “Quanto às outras verdades, o homem não é obrigado a crê-las
explicitamente mas só implicitamente ou como predisposição de espírito para crer tudo
o que está contido na Sagrada Escritura. Somente somos obrigados a crê-las
explicitamente, quando nos constar que são matéria de fé.” E quem define o que é de fé
divinamente revelada? Responde o Angélico: Idem. Ibidem. II-II, 1, 10, C: “Como já
explicamos, uma nova publicação do Símbolo é necessária para evitar erros que surgem.
Tem autoridade para fazê-lo quem pode determinar em última instância o que é de fé,
para que todos possam a ela aderir de maneira inabalável. Isto, porém, é da alçada do
Sumo Pontífice (...)”. Objetam os protestantes: mas, com isso, vocês não substituem a
revelação pela doutrina do Magistério da Igreja? Não! Sem embargo, O Magistério da
Igreja - sendo o único depositário da fé apostólica - é também o único capaz de nos
discriminar, infalivelmente, o que Deus de fato revelou. Portanto, o que é por ele
indicado como revelado, torna-se a condição de nosso assentimento. No entanto, a
causa de crermos no que o Magistério nos propõem, não é outra senão Deus mesmo.
Doutrina Penido: Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 282 e 283: “Os
protestantes, ao acusarem o magistério eclesiástico de substituir-se à Revelação,
confundem, pois, causa e condição. O motivo da fé católica é única e exclusivamente a
palavra veraz de Deus. (...) Todavia, a fim de conhecer o que Deus disse em verdade;
17
para não confundir palavra divina e palavra humana; para não tomar os cismas de nossa
imaginação por comunicações do alto – à semelhança de protestantes e espíritas –
torna-se indispensável que nos seja designado, pela Igreja, o que devemos ter como
autenticamente revelado. A autoridade de Deus fundamenta a fé; a autoridade da
Igreja indica qual o objeto da fé – a verdade a crer – para que seja seguro o
assentimento.” (Os itálicos são nossos). Também Penido, como não poderia deixar de
ser, adere a Santo Tomás dizendo que, a quem cabe, em última instância, definir o que é
de fé divina, é o sucessor de Pedro: Idem. Ibidem. 342: “(...) não se mantém a fé em
Deus pura e genuína por muito tempo, sem a fé em Cristo; nem a fé em Cristo, sem a fé
na Igreja; nem a fé na Igreja, sem a fé no primado de Pedro.”
No que diz respeito a esta verdade, também não nos falta com a clareza o Mestre: Idem.
Ibidem: II-II, 5, 3, C: “E a razão disso é que a espécie de qualquer hábito depende da
razão formal do objeto. Se esta desaparece, desaparece também a espécie do hábito.”
Idem. Ibidem. Neste mesmo sentido, não deixa dúvidas as observações do Pe. Leonel
Franca, declinando-nos os “porquês”: Leonel Franca. A Igreja, A Reforma e a
Civilização. p. 240: “Quem rejeita uma só verdade contida na revelação já não tem fé.
A fé é o assentimento da nossa inteligência a uma verdade, afiançada pela autoridade de
Deus. Escolher dogmas é por acima da autoridade a própria razão, é crer em si, não
em Deus.”
Joseph Pieper. Op. Cit. trad. Luiz Jean Lauand. Disponível em: “Na verdade, porém, o
que sempre se tem dito na grande tradição do pensamento cristão é: ‘Aquele que crê
aceita o depoimento de alguém’e “A fé dirige-se sempre a uma pessoa”. Duas citações:
a primeira procede de Tomás de Aquino; a segunda, de Lutero. Com isso se mostra que,
seja como for, neste ponto não há divergências entre o modo de ver do reformador e o
do último grande mestre da cristandade ocidental ainda não dividida.”
Na expressão de Penido, a hierarquia eclesiástica – maximamente o Papa – não é algo
interposto entre nós e Deus, como inquinar certos protestantes. Tal como Cristo não era
uma pessoa interposta entre Deus e nós, mas era Deus conosco (Emanuel), assim a
Igreja não se interpõe entre Cristo e os fiéis; antes, ela é Cristo, misticamente entre nós:
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 272: “Cristo não é pessoa interposta entre
Deus e nós, pois ele é Deus pessoalmente conosco – Emanuel. Tão pouco a Igreja se
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intromete entre Cristo e nós, por isso que ela é Cristo misticamente conosco.” Penido é
claríssimo ao retomar a doutrina do Mestre: Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p.
342: “(...) há uma tal absorção da inteligência do Papa pela luz de Cristo, que, errasse o
Papa, erraria Cristo. Falando ‘ex-catedrá’, o Pontífice torna-se órgão de Cristo. Não é
mais um homem que ensina, mas o Verbo encarnado que ensina pelo sucessor de
Pedro.” Reclamam os protestantes: significa então que o Papa não pode errar? Que ele é
um deus na terra? De todo. Como pessoa privada, o Papa permanece errático, falível –
suscetível ao pecado – como qualquer fiel. Doutrina Penido: Idem. Op. Cit. p. 343:
“Como pessoa privada, o Papa – qual simples fiel – tem uma alma a salvar; é obrigado a
crer no dogma que ele acaba de definir; a praticar a moral que ele acaba de propor. Pode
infelizmente sucumbir ao pecado.” Há mais. Mesmo quando fala como Papa, mesmo
quando fala à Igreja – mesmo ainda quando fala de fé e de costumes - não são todas as
vezes que ele goza desta assistência infalível do Espírito Santo (É evidente que o Papa é
sempre assistido pelo Espírito Santo. No entanto, esta assistência nem sempre o torna
infalível, lhe imunizando de eventuais erros): Idem. Op. Cit. 342: “Logo, o Papa não é
infalível como pessoa privada, ou falando a uma parte da Igreja, ou falando a toda a
Igreja mas sem usar a sua autoridade suprema.” Somente quando fala ex-catedra, como
Pastor e Doutor universal de todos os cristãos - a respeito das verdades a crer e das
ações a praticar (fé e costumes) a fim de se alcançar a beatitude eterna - é que ele
exerce e como encontra se revestido, do seu carisma de infalibilidade, procedente este,
por sua vez, da assistência do Espírito Santo. Reza o Concílio Vaticano I: Denzinger. El
Magisterio de La Iglesia: Manual de los Simbolos, Definiciones y Declaraciones de
la Iglesia en Materia de Fe y Costumbres. n. 1839: “Assim, pois, Nós, seguindo a
tradição recolhida fielmente desde o princípio da fé cristã, para a glória de Deus nosso
salvador, para exaltação da fé católica e a salvação dos povos cristãos, com aprovação
do sagrado Concílio, ensinamos e definimos ser dogma divinamente revelado: Que o
Romano Pontífice, quando fala ex-catedra – isto é, quando cumprindo seu cargo de
pastor e doutor de todos os cristãos, define por sua suprema autoridade apostólica que
uma doutrina sobre fé e costumes deve ser sustentada pela Igreja universal -, pela
assistência que lhe foi prometida na pessoa do bem-aventurado Pedro, goza daquela
infalibilidade de que o Redentor divino quis que estivesse provida sua Igreja nas
definição da doutrina sobre a fé e os costumes; e, portanto, que as definições do
Romano Pontífice são irreformáveis por si mesmas e não pelo consentimento da
Igreja.” (O itálico e a tradução, para o português, são nossas). Falaciosa é ainda a
19
alegação de que o Papa é um déspota a nos apontar a verdade e o erro, a nos ditar o bem
e o mal. Não. O Papa não “revela” “novas verdades”, nem tem uma infalibilidade
onímoda ou poder ilimitado. Sua autoridade restringe-se, unicamente a conservar e
explicar o dado revelado. Denzinger. Op. Cit. n. 1836: “(...) Pois não foi prometido aos
sucessores de Pedro o Espírito Santo para que por revelação sua manifestassem uma
nova doutrina, senão para que, com sua assistência, santamente custodiasse e
santamente expusesse a revelação transmitida pelos Apóstolos, ou seja, o depósito da
fé.” (A tradução, para o português, é nossa).
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 39, 1, C. Vale lembrar, que atentam contra a
verdade, aqueles que assacam contra a Igreja a acusação de ter tirado o primado de
Cristo Cabeça, quando esta afirma que o Papa é a sua Cabeça Visível. Com efeito, o
Papa é Cabeça, mas sempre subordinado a Cristo. À bem da verdade, Cristo é a Cabeça
invisível e visível da Igreja. Em outras palavras, absolutamente falando, a Igreja só
possui uma Cabeça: Cristo. No entanto, Cristo mesmo quis exercer o seu governo sobre
a Igreja por ele fundada, de duas formas distintas. Enquanto cabeça invisível, de forma
imediata. Enquanto cabeça visível, de forma mediata, isto é, através daquele que lhe faz
às vezes, qual seja, o Sumo Pontífice. À que pese os cismáticos, esta é a fé da Igreja. Já
Bonifácio VIII, insurge-se contra a doutrina bicéfala: Denzinger. Op. Cit. n. 468: “A
Igreja é, pois, una e única, tem um só corpo, uma só cabeça, não duas, como um
monstro, ou seja, Cristo e o Vigário de Cristo, Pedro, e seu sucessor (...)”. (A tradução,
para o português, é nossa). Doutrina magistralmente Pio XII: Pio XII. Mystici Corporis
Christi. n. 39. “Nem se objete que com o primado de jurisdição instituído na Igreja
ficava o corpo místico com duas cabeças. Porque Pedro, em força do primado, não é
senão vigário de Cristo, e por isso a cabeça principal deste corpo é uma só: Cristo; o
qual, sem deixar de governar a Igreja misteriosamente por si mesmo, rege-a também de
modo visível por meio daquele que faz as suas vezes na terra; e assim a Igreja, depois da
gloriosa ascensão de Cristo ao céu não está educada só sobre ele, senão também sobre
Pedro, como fundamento visível. (...).”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 11, 2, ad 3.
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 285.
20
A teologia da Inquisição segundo Santo
Tomás de Aquino - III
Por Sávio Laet de Barros Campos
21
1.1.2.1.2) Da Heresia
A heresia consiste, precisamente, no ato contumaz daqueles que, muito embora
professando a fé em Cristo, erram quanto ao que Cristo ensinou e assim corrompem a fé
cristã: “Por isso, a heresia é uma espécie de infidelidade dos que professando a fé em
Cristo, corrompem os seus dogmas.”
A heresia versa sobre matéria de fé. No entanto, também aqui cabe um esclarecimento
adicional. Ao contrário do que comumente se pensa a heresia não ocorre apenas,
quando da negação de um artigo de fé. Com efeito, ela acontece também, quando se é
negada uma verdade que acarrete - ainda que indiretamente - na corrupção de um
desses mesmos artigos:
Mas, como já foi dito, uma doutrina pode ser de fé de duas
maneiras: direta e principalmente, como os artigos de fé; ou
indireta e secundariamente como as coisas que acarretam a
corrupção de algum desses artigos. Ora, de ambos esses modos
pode haver heresia, como pode haver fé.
E, mesmo o erro em matéria de fé não pode, pura e simplesmente, ser considerado uma
heresia. A heresia ocorre, quando existe a pertinácia em se defender uma doutrina que,
patentemente, já fora condenada pela Igreja como herética. Os hereges são, portanto,
exatamente aqueles que – conhecendo qual seja a fé da Igreja - não querem se corrigir,
visto que nutrem a intenção positiva, de negar uma verdade enunciada - e já definida -
pela Igreja. Hereges são, pois, aqueles homens que se identificam, de tal maneira com os
seus erros, que nem o juízo da Igreja os faz recuar deles:
Deve-se dizer que, como diz Agostinho e dispõem as Decretais:
‘Os que defendem a sua doutrina, ainda que falsa e perversa, mas
a defendem sem nenhuma pertinaz animosidade e procuram a
verdade com cautelosa solicitude e estão prontos para se
corrigirem, quando encontrarem a verdade, não devem ser
considerados heréticos, porque não têm a intenção de contradizer
a doutrina da Igreja.
Os heréticos, portanto, não são aqueles que, eventualmente, dizem uma heresia! Tantos
há que, dizendo uma heresia, a dizem, mas não com pertinácia e sim por ignorância ou
por tradição errônea, herdada de seus antepassados. O herético, ao contrário, é uma
pessoa que professa, a respeito da fé, um erro - com pertinácia e obstinação, de tais
formas contundentes – que do erro que professa não quer se emendar; associa-se a ele
22
tão fortemente que, nem mesmo o conhecimento da verdade, anunciada pela Igreja, faz
com que dele se aparte.
Da mesma forma que o ato de fé é um ato da pessoa, é o herege que é herético – e não
somente a sua mente e vontade – o que seria de uma dualidade falaciosa e inexplicável.
De igual modo, como é a pessoa que crê que se torna passível de mérito – já que o seu
ato de fé é voluntário – é a pessoa herética também, que torna suscetível à pena e
sanções. O que não significa, evidentemente, que ela não possa arrepender-se. De fato,
enquanto estivermos nesta vida, nossa vontade ainda não está confirmada e pode voltar
atrás das suas decisões. Desta feita, assim como o crente pode tornar-se herege, assim
também o herege pode voltar a ser crente.
1.1.2.1.3) Do Cisma.
Do cisma, somente alguns poucos apontamentos. Ele não é, propriamente, um pecado
de infidelidade, ao menos no sentido que determinamos acima para este termo, mas
acaba levando a ele ou sendo dele uma conseqüência inevitável. Por isso mesmo,
tentemos entendê-lo, em suas linhas gerais. Na verdade, ele é um outro modo de se
afastar da Igreja. Veremos que, embora prenhe de heresia, o cismático, enquanto tal,
não se identifica formalmente com o herético. O cisma é uma cisão de ânimos. Ora, a
cisão se opõe à unidade. Por isso, o cismático peca contra a unidade. Ora bem, é a
caridade o que une as pessoas no corpo eclesial. Com efeito, a caridade não une
somente uma pessoa à outra, mas também toda a Igreja é una pelo Espírito Santo.
Importa dizer que a unidade dos fiéis entre si se ordena à unidade da Igreja, como a
parte para o todo. O cisma é, portanto, e antes de tudo, um pecado contra a caridade,
vínculo de unidade. O cismático, por sua vez, é aquele que atenta, intencionalmente,
contra a unidade com a Igreja:
Chamam-se, portanto, cismáticos propriamente ditos aqueles que
por si mesmos e intencionalmente se separam da unidade da
Igreja, que é a unidade principal.
Em que consiste este rompimento com a Igreja? Cumpre que entendamos, antes de
tudo, as duas maneiras de se considerar a unidade da Igreja. A primeira diz respeito
àquela união espiritual que une os fiéis entre si; a segunda se refere à união de todos os
fiéis com a cabeça da Igreja. Ora, a cabeça da Igreja é Cristo, mas quem faz às vezes
de Cristo neste mundo, como já aludimos, é o Sumo Pontífice. Logo, o cismático é
aquele que rejeita submeter-se à autoridade do Sumo Pontífice e, por isso mesmo, ao
menos implicitamente, recusa também manter a comunhão com aqueles que estão sob a
autoridade do mesmo:
23
Por isso chamam-se cismáticos aqueles que não querem se
submeter ao soberano pontífice e recusam a comunhão com os
membros da Igreja a ele submetidos.
Contudo, para que haja cisma, é preciso haver a intenção de romper com a unidade,
pois somente o que é intencional é essencial, já que o que está fora da intenção é
acidental: “O que é intencional é essencial, enquanto o que está fora da intenção existe
como acidental.” Ora, a intenção de um herege, por exemplo, é romper com um
aspecto da fé, embora acidentalmente rompa também com a unidade. Um cismático, ao
contrário, tem como intento primeiro não se submeter ao Sumo Pontífice e só
acidentalmente rejeitar à fé. Portanto, embora todo herege seja um cismático, pode
acontecer que um cismático não seja um herege: “(..) o cisma e a heresia são também
vícios diferentes, embora todo herege seja também cismático, não, porém, o inverso.”
Entretanto, como o cismático se obstina em não aceitar os julgamentos e preceitos do
Sumo Pontífice, tem-se certa razão em dizer que todo cisma se encaminha para a
heresia: “No entanto, assim como a perda da caridade é caminho para a perda da fé (...),
assim também o cisma é caminho para a heresia.”
Cada pecador deve ser punido por aquilo em que pecou. Ora, o cismático peca
duplamente: primeiro, por se separar da comunhão com os membros da Igreja;
segundo, por não se submeter ao Sumo Pontífice. Logo, é lícito e justo que, pela
excomunhão, os cismáticos sejam apartados da comunhão com a Igreja:
Ora, o cismático, já foi dito, peca duplamente. Primeiramente por
se separar da comunhão com os membros da Igreja, e justamente
por isso convém que os cismáticos sejam punidos com a
excomunhão. Depois, por se recusarem submeter-se ao chefe da
Igreja.
1.1.2.1.4) Da Apostasia
Passemos a analisar o fenômeno da apostasia. A apostasia consiste em certo
afastamento de Deus “A apostasia implica um certo afastamento de Deus (...).”Ora,
alguém pode se afastar de Deus, de tantas formas quantas pode a ele se unir. Em
primeiro lugar, podemos nos unir a Deus pela fé. Além disso, nos unimos a Deus
quando seguimos os seus preceitos. Também nos unimos a ele, mediante certos estados
específicos: as ordens sagradas, os votos religiosos, etc:
Ora, o homem se une a Deus, primeiro, pela fé; segundo, por uma
vontade devidamente submissa para obedecer aos seus preceitos;
24
terceiro, por certos estados especiais e supererrogatórios, como os
votos religiosos, a clericatura ou as sagradas ordens.
Nem o abandono da vida religiosa, nem o afastamento do sacerdócio, nem a
insubmissão da vontade aos preceitos divinos, podem nos separar de Deus totalmente,
se, pelo menos, a ele nos mantivermos unidos pela fé. Ensina Penido:
Contudo, a dependência do católico pecador para com sua Igreja
não é meramente material, nem mesmo meramente jurídica. Por
haver conservado a fé, resta-lhe um vínculo espiritual, invisível,
que o prende ainda a Cristo.
Ao contrário, se alguém deixar a fé, este distará de Deus completamente,
mesmo que continuasse, porventura, a ser um religioso ou um padre ou um homem com
uma moral subjetiva perfeita. Adverte Tomás: “Ora, removido o que está em segundo
lugar, fica o que está em primeiro, mas não o inverso.” Por conseguinte, podem existir
padres, bispos, religiosos e religiosas, apóstatas! Portanto, a apostasia, falando em
sentido estrito, só se dá quando alguém se aparta da fé:
Pode, pois, alguém apostatar de Deus, abandonando o estado
religioso que professava ou a ordem que recebeu; o que se chama
apostasia da vida religiosa ou das ordenas sagradas. Alguém
também pode apostatar de Deus por espírito de oposição aos
preceitos divinos. Apesar da existência desses dois tipos de
apostasia, o homem pode permanecer, ainda unido a Deus pela fé.
Mas, se a abandonar, então, parece afastar-se completamente de
Deus. Portanto, a simples e absoluta apostasia se dá, quando
alguém abandona a fé, o que se chama perfídia.
Tomás de Aquino. Suma Teológica. (II-II, 11, 1, C.);(II-II, 11, 2, C.);(II-II, 11, 2, ad 3)
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 178: “E’ de notar também, com sumo
cuidado, que indispensável ao pecado da heresia ou de cisma é a pertinácia da vontade
em abraçar o erro. Inúmeros ‘analfabetos’ em matéria de religião, admitem não raro
doutrinas em si heréticas; eles, entretanto não se inquinam no pecado; a sua aceitação
de opiniões condenadas é puro fruto da ignorância ou da estupidez. Tão logo sejam
desenganados por um sacerdote ou um leigo esclarecido, abandonam o erro antes
professado.”
25
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 2, 9, C: “Ora, o próprio crer é um ato do
intelecto que adere à verdade divina sob a moção da vontade, que Deus move pela
graça; desse modo depende do livre-arbítrio e ordena-se para Deus. Logo, o ato de fé
pode ser meritório.”
Tomás de Aquino. Ibidem. II-II, 39, 1, C: “Segundo Isidoro, chamou-se com o nome de
cisma ‘a cisão dos ânimos’”.
Idem. Ibidem: “Ora, a cisão opõe-se à unidade.”
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 231: “Mais do que a fé, a caridade é
princípio da unidade eclesiástica, pois que unir é próprio do amor.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 39, 1, C: “A caridade une não somente uma
pessoa a outra pelo laço do amor espiritual, mas ainda toda a Igreja na unidade do
Espírito.” É importante ter presente que o Espírito é o vínculo de unidade; é por Ele que
o amor de Deus é derramado em nossos corações (Rm 5, 5).
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 232: “Ensinavam os antigos teólogos que o
pecado de cisma é antes de tudo pecado contra a caridade. Com efeito o cismático rasga
a unidade do Corpo Místico, efeito da caridade.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 39, 1, C. Esta conclusão é importante,
sobretudo, para ressaltar que não é qualquer cisão que constitui um cisma. Por exemplo,
não se pode chamar de cismático, quem abandona um movimento e nem mesmo quem
deixa uma congregação, mas sim aquele que rompe com a Igreja.
Idem. Ibidem: “Ora, pode-se entender a unidade da Igreja de duas maneiras: na conexão
ou na comunhão recíproca dos membros da Igreja entre si; e, além disso, na ordenação
de todos os membros da Igreja a uma única cabeça.”
Idem. Ibidem: “Ora, essa cabeça é o próprio Cristo, do qual o soberano pontífice faz as
vezes na Igreja.”
Idem. Ibidem. Cabe, pois, salientar que a separação da Igreja ocorre quando alguém
deixa de se submeter ao Papa. Portanto, o fato de alguém estar contra a “maioria”, não
repercute, necessariamente, como um ato cismático. Para permanecer vinculado
26
plenamente à Igreja, basta permanecer fiel ao Sumo Pontífice ao menos enquanto este
exercer, com dileção e correção, o seu magistério petrino. A Igreja não é, pois, uma
democracia!
De fato, rompendo com a submissão ao Sumo Pontífice, implicitamente, o cismático
renega a fé, já que quem determina o que é de fé, conforme já vimos, é o Magistério
infalível, unido a Pedro.
Idem. Ibidem. II-II, 39, 1, ad 3.
Idem. Ibidem. II-II, 39, 4, C: “Aquele que peca deve ser punido por aquilo em que
pecou (...)”.
Idem. Ibidem. E nisto se diferencia, exatamente, cisma de excomunhão. Pelo cisma, é o
cismático que, por sua própria vontade, se afasta da Igreja. A excomunhão, ao contrário,
por ter um caráter penal, é uma exclusão imposta pela própria Igreja, aos hereges e
cismáticos: Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 179: “Enquanto o herege e o
cismático separam-se pela própria vontade, o excomungado é um membro que a Igreja
amputou do próprio corpo.” Mas - poderia opor alguém – se os hereges e cismáticos,
pelo próprio fato de o serem, já se encontram fora da comunhão eclesial, porque ainda
se dar o trabalho excomungá-los? Porque, de alguma forma, eles ainda se mantém
unidos a ela por um vínculo jurídico. Logo, pertence à Igreja puni-los, pois lhe juraram
fidelidade e obediência. Nisto também, se diferenciam dos pagãos. Doutrina Penido.
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 178 e 179: “O pagão nenhum vínculo o
prende à Igreja; ao passo que os outros liga-os ainda a ele um laço mais ou menos tênue.
(...). Embora não sejam mais membros atuais, são ainda súditos da Igreja: permanece
sempre um vínculo jurídico. Compara o Catecismo Romano os hereges e cismáticos a
soldados trânsfugas. Apesar de não mais se integrarem ao exército, este conserva o
direito de julgá-los e puni-los.” Aliás, nem cuidemos de pensar que a excomunhão seja
uma exclusão definitiva da Igreja. Ela, como já dissemos, comporta um caráter de
penal. Enquanto pena, ela consiste em excluir atualmente os membros anatemizados da
comunhão eclesial. Temam e tremam, pois, os excomungados; a sua situação é terrível;
acham-se, pois, em vias de perderem-se eternamente. De fato, estão como o ramo
cortado da videira. Encontram-se, por conseguinte, muito pertos da danação eterna:
Idem. Op.Cit. p. 179: “(...) o excomungado é um membro que a Igreja amputou do
27
próprio corpo. Está, pois, fora dela, em vias de perder-se: o ramo cortado da videira que
é Cristo e seu prolongamento a Igreja – seca, depois é colhido, lançado ao fogo e arde
(Jo 15, 6).” Entretanto, diferentemente do membro humano, o membro espiritual pode
ser novamente enxertado no corpo eclesial. Basta, pois, que retroceda, com sinceridade
e afinco, do atroz caminho que tomou: Idem. Op. Cit: “Por felicidade, e ao contrário, do
que se dá no corpo humano, o membro espiritual amputado pode ser reintegrado e o
será, apenas chegue a resipiscência.” E isto é perfeitamente possível, pois geralmente,
permanecem nos excomungados, não já a graça santificante por certo, mas o caráter
sacramental, que é uma disposição atrativa da graça. Além disso, podem permanecer
nos excomungados, tanto a virtude da fé (no caso do cismático) quanto à virtude da
esperança (nos hereges). Sem embargo, tais virtudes sempre os estarão despertando
para o arrependimento e para o retorno à Igreja onde reencontraram, desta sorte, a
virtude da caridade que é o princípio vital da unidade eclesial: Idem. Op. Cit: “Ora, o
caráter sacramental é uma disposição que normalmente chama a graça, embora no caso
(do excomungado) seja sobrepujada pela vontade perversa. Além desse caráter, podem
subsistir no cismático e no excomungado as virtudes de fé e de esperança; estas lhes
serão perpétuo despertador de arrependimento.” (O parêntese é nosso). Portanto, ainda
na excomunhão, é a Igreja amando os seus filhos desgarrados, preservando àqueles que
se encontram no rebanho. Ao que arrepia do seu convívio, chama-os, por este ato, ao
arrependimento e à conversão. Uma vez que isto ocorra, os acolherá novamente, não
certamente, sem dileta alegria: Idem. Op. Cit. 194: “Se a Igreja excomunga é para
emendar o culpado e preservar o rebanho do contágio, lançando de si a ovelha
empestada. Mas a Igreja estará sempre disposta a acolher de novo, com júbilo, o
excomungado, tão cedo se arrependa e repare o mal feito.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. (II-II, 12, 1, C.);(II-II, 12, 1, C.)
A respeito dos hereges e apóstatas ocultos, escondidos no seio da Igreja, sentencia
Penido: Penido. Op. Cit. p. 178: “Respondemos: são eles membros ‘putativos’ da Igreja.
Na realidade pertencem-lhe apenas de corpo, estão materialmente dentro da Igreja, mas,
pelo espírito, já se encontram com os apóstatas e hereges públicos. Merecem em toda
justiça o nome de ‘membros mortos’ (...)”.
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 12, 1, C.
28
A teologia da Inquisição segundo Santo
Tomás de Aquino - IV
Por Sávio Laet de Barros Campos
29
1.2) Da Inquisição
Uma vez determinado – ainda que mui sucintamente – quem são os hereges, apóstatas e
cismáticos voltemos, enfim, à nossa questão capital. Agora já temos elementos
suficientes, para entendermos a resposta de Tomás. Na primeira indagação, Frei Tomás
havia respondido negativamente, ou seja, aqueles que nunca creram – judeus e pagãos –
não poderiam ser compelidos a crer, pois a fé, sendo voluntária, também é
essencialmente livre.
Quanto aos hereges e apóstatas – que um dia creram - pensa Santo Tomás, devem ser
compelidos sim, mas não exatamente a crer, senão a cumprir o que prometeram. Podem
ser compelidos, desta feira, inclusive fisicamente, a guardar a fé que um dia
professaram:
Outros, porém, são infiéis que outrora tiveram fé e a professam:
como os hereges e todos os apóstatas. E esses devem ser
forçados, mesmo fisicamente, a cumprir o que prometeram e a
conservar o que uma vez receberam (Et tales sunt etiam
corporaliter compellendi ut impleant quod promiserunt et teneant
quod semel susceperunt).
Estamos no coração - na alma mesmo - da teologia que cercava a Inquisição. Assim
como, fazer um voto é um ato da vontade, mas guardá-lo é uma necessidade, assim
também, abraçar a fé é um ato voluntário, mas retê-la é uma necessidade. Por
conseguinte, os infiéis que nunca creram, não poderiam ser obrigados a crer, pois crer é
um ato da vontade. No entanto, os hereges e apóstatas – que um dia abraçaram a fé –
deveriam ser forçados, não já a crer, mas a guardar a fé que um dia abraçaram:
Deve-se dizer que fazer um voto é próprio da vontade, cumpri-lo,
porém, é uma necessidade. Assim também abraçar a fé é uma
tarefa da vontade, mas retê-la, quando recebida, é uma
necessidade. Por isso, os hereges devem ser compelidos a
guardar a fé.”
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1.2.2) A Igreja Frente à Heresia
1.2.2.1) A Misericórdia
No caso, contudo, de o herege não se emendar, como deve proceder a Igreja? Para
Tomás, como para toda a teologia católica tradicional, a condição dos heréticos, é
binária. Por um lado, temos o herege enquanto tal. E, analisando sob este aspecto, todos
os heréticos merecem, não só a exclusão da Igreja – sociedade dos que crêem – pela
excomunhão, como também a exclusão do mundo, pela morte: “Da parte deles, há um
pecado pelo qual mereceram não somente serem excluídos da Igreja pela excomunhão,
mas também do mundo pela morte.” De outro lado, no entanto, está a Igreja, da qual se
espera a misericórdia para com aqueles que erram. E é o perdão, antes de tudo, o que a
Igreja oferecia aos apóstatas e hereges, só vindo a os punir, com excomunhão, depois
de duas exortações: “Por isso, ela não condena imediatamente, mas só depois da
primeira e segunda advertência, como ensina o Apóstolo.” Entretanto, seria um ato
gravemente desordenado, estender-se numa misericórdia sem limites. Ainda mais que,
em tal caso, a pertinácia dos infiéis se reverteria, certamente, em prejuízo para a fé de
muitos. Por conseguinte, não havendo emenda por parte do increu, a Igreja - provendo
a salvação dos demais fiéis - o excomungava, abandonando-o ao braço secular, cujo
juízo poderia redundar na morte do heresiarca:
Se, porém, depois disso, o herege permanece ainda pertinaz, a
Igreja, não esperando mais que ele se converta, provê à salvação
dos outros, separando-o dela por uma sentença de excomunhão; e
ulteriormente ela o abandona ao juízo secular para que seja
excluído do mundo pela morte.
1.2.2.2) Da Tolerância
A bem da verdade, embora não ordenando, a Lei Nova não exclui, antes, até aconselha
- em certos casos - a aplicação da pena capital. Quais casos? Chegamos, pois, ainda
que indiretamente, ao conceito que agora passaremos a tratar: o de tolerância.
Esclarecemo-lo. Não são, por exemplo, todos os hereges que merecem a morte! Há
aqueles que, muito embora pertinazes em seus erros, não prejudicam a fé dos demais
fiéis. Estes - acentua Frei Tomás - são, o mais das vezes, dignos da misericórdia da
Igreja e da tolerância da sociedade. Estas, esperando que aqueles possam se penitenciar
dos seus erros, os mantém vivos, os tolera. Ao contrário, se, deixando a vida privada,
insuflam-se os hereges a espalharem os seus erros, pública e notoriamente, infectando
31
assim a fé dos demais, deve cuidar-se de puni-los, para que não ponham em risco a
salvação dos outros:
A justiça humana procura fazer o mesmo, na medida do possível,
matando os que são perniciosos para os outros, deixando, no
entanto, tempo de penitência aos que pecam sem prejudicar
gravemente os outros.
Mas, enfim, existia uma teologia da tolerância religiosa na Idade Média? Mais: existia,
na prática, alguma tolerância? Não resta dúvida que sim. Ao contrário do que muitos
pensam a cristandade medieval não era uma civilização que desconhecesse o aspecto da
tolerância. Não se rendia, porém, aos apelos do “irenismo” (sacrificar a verdade em
nome da paz e da “unidade”), gesto malsão e insano, tão adotado por nossos coetâneos.
Já Pio XII nos verberava, interpelando a certas correntes teológicas hodiernas:
(...) contudo, alguns deles, arrebatados por imprudente "irenismo", parecem
considerar como óbice para restabelecer a unidade fraterna justamente aquilo que se
fundamenta nas próprias leis e princípios legados por Cristo e nas instituições por ele
fundadas, ou o que constitui a defesa e o sustentáculo da integridade da fé, com a queda
do qual se uniriam todas as coisas, sim, mas somente na comum ruína.
1.2.2.2.1) Tolerância e Infidelidade
Como fizemos ao longo de todo o nosso texto, aqui também devemos continuar a
distinguir dois tipos de infiéis. Há aqueles que nunca aceitaram à fé e, portanto,
encontram-se fora da comunhão eclesial: pagãos e judeus. E há ainda aqueles que, da fé,
apostataram ou se afastaram pela heresia.
Do lado dos fiéis, também importa notar duas considerações. De fato, os fiéis devem
evitar o comércio com os infiéis por duas razões. A primeira, por uma razão de pena.
Com efeito, ao excomungado impõe-se – como conseqüência do próprio pecado
cometido - a perda do convívio dos fiéis. Há, além disso, uma segunda razão. De fato, os
fiéis devem se afastar dos infiéis, também por uma questão de cautela:
A comunhão com alguma pessoa é proibida aos fiéis, de dois
modos: como pena imposta àquele ao qual se retira a comunhão
dos fiéis; ou, como cautela, para aqueles aos quais se interdiz a
comunhão.
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1.2.2.2.1.1) Tolerância e Pena
Quanto à razão de pena, a Igreja não proibia a convivência dos fiéis com aqueles que
nunca receberam a fé – judeus e pagãos – pois estes, não tendo nunca crido, nunca
fizeram também parte da Igreja e esta, por conseguinte, não têm com relação a eles,
nenhuma jurisdição. Daí que não lhes pode aplicar pena alguma, em virtude da sua
infidelidade:
Pelo primeiro modo, a Igreja não proíbe, aos fiéis a comunhão
com os infiéis, pagãos ou judeus, que de nenhum modo
receberam a fé dos cristãos; não tem como julgá-los por um
julgamento espiritual (...).
Ao contrário, já com relação aos hereges e apóstatas, que outrora haviam crido e
fizeram parte da Igreja, o seu afastamento da comunhão eclesial adquire um caráter
penal. Logo, com relação a estes, a Igreja proíbe aos seus fiéis manter comunhão:
Mas, deste modo, isto é, a título de pena, a Igreja proíbe aos fiéis ter
comunhão com os infiéis, que se desviaram da fé recebida, ou corrompendo-a, como os
hereges, ou abandonando-a, totalmente como os apóstatas.
1.2.2.2.1.2) Tolerância e Cautela
No que toca à cautela, deve-se ter presente duas coisas. Se o fiel tem fé firme e
convicta, a ponto de se pensar que, longe de ser corrompido pela influência do infiel,
pode, ao contrário, ocorrer que este (o infiel), auxiliado por aquele, possa se converter,
então se poderia permitir que existisse certa comunhão entre eles. Referimos-nos aqui,
não ao herege ou apóstata, mas ao judeu e pagão:
Se se trata de fiéis que são firmes na fé, de tal maneira que a
convivência com os infiéis mais faça esperar a conversão dos
infiéis do que a perda da fé dos fiéis, não são, proibidos de estar
em comunhão com os infiéis, pagãos ou judeus, que ainda não
receberam a fé, principalmente se a necessidade é urgente.
Pelo contrário, se o fiel é de fé simples e fraca, a ele deve ser proibido perfilhar, se não
de todo o contato, ao menos de certa familiaridade e conversação com os infiéis. E isto
por um caráter preventivo:
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Se, porém, forem fiéis simples e fracos na fé, a respeito dos quais
provavelmente se poderia temer a perversão, devem ser proibidos
da comunhão com os infiéis e principalmente que não tenham
com eles grande familiaridade ou com eles se comuniquem sem
necessidade.
1.2.2.2.1.3) Da Tolerância e dos Ritos
1.2.2.2.1.3.1) Dos Ritos Judaicos
Também quanto aos ritos dos infiéis, havia tolerância por parte da Igreja. Os ritos
judaicos, por apresentarem, em figura, os mistérios da nossa fé, atestam de alguma
forma, a veracidade desta. Poderiam, por isso mesmo, ser tolerados:
Do fato de os judeus observarem os seus ritos, nos quais, outrora,
se prefigurava a verdade da nossa fé, resulta termos de nossos
adversários um testemunho dessa mesma fé e de nos ser
representado como em figura o que cremos. Por isso, os judeus
são tolerados com os seus ritos.
1.2.2.2.1.2.2) Dos Pagãos e Heréticos
Os ritos das demais religiões e dos hereges, também poderiam ser tolerados, desde
que, a supressão destes, pudesse significar escândalo, dissídio, ou ainda impedir a
conversão daqueles que, sendo tolerados num momento, pudessem, posteriormente,
alcançarem a salvação pela conversão:
Os ritos, porém, de outros infiéis, que nada de verdade ou de
utilidade apresentam, não devem ser tolerados a não ser para
evitar algum mal; isto é, o escândalo ou o dissídio que poderiam
provir ou o impedimento da salvação daqueles que, aos poucos,
se tolerados, se converteriam à fé.
1.2.2.2.1.2.3) Do Batismo
Tinha-se também a práxis de não se batizar os filhos dos infiéis, até que alcançassem o
uso da razão. A justificativa era a seguinte: não se batiza, pois, os filhos dos infiéis
antes que atinjam do uso da razão porque, não podendo se suceder ao batismo, a devida
catequese do neófito, este poderia, sem dificuldades, vir a ser convencido - pelos pais - a
abandonar e desprezar a fé:
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Com efeito, se as crianças, sem o uso da razão, recebessem o
batismo, depois, quando chegassem à idade adulta, eles poderiam
facilmente ser induzidas pelos pais a abandonar o que ignorando
receberam o que reverteria em detrimento da fé.
Ademais, é de direito natural que o filho pertença aos pais: “Com efeito, pela natureza,
o filho é algo do pai.” Além disso, antes de nascer, enquanto se encontra no ventre
materno, mesmo o corpo do feto não se distingue do da mãe – Santo Tomás quer,
assim, explicar ambos são, de certa forma, especialmente interdependentes, não que o
corpo do feto não seja autônomo, até porque possui material genético próprio; é de
destacar que o Aquinate trabalhava com os conceitos biológicos de sua época; de
qualquer modo, em muitas outras passagens, o Doutor Angélico demonstra claramente
que o feto é um indivíduo com personalidade independente, com a unidade substancial
entre corpo e alma. Em seguida, logo ao nascer, passa a ser dependente dos pais, até que
obtenha o livre-arbítrio:
E, de início, não se distingue dos pais, corporalmente, enquanto
está encerrado no ventre materno, antes que tenha o uso do livrearbítrio,
ele permanece sob o cuidado dos pais, como dentro de
um ventre espiritual.
Por conseguinte, seria contra a ordem natural das coisas, que se batizasse contra a
vontade dos pais, o filho dos infiéis:
Por isso, seria contra o direito natural, se o filho, antes do uso da
razão, fosse subtraído à tutela dos pais ou que se tomasse alguma
disposição a seu respeito, contra a vontade dos mesmos.
Desta sorte, deveria se esperar que o filho fosse livre, isto é, senhor dos seus atos e
conhecedor do direito divino e natural, para que pudesse escolher ser ou não batizado.
Sem embargo, uma vez de posse do uso da razão, a pessoa pode ser convencida então,
mediante a persuasão. Destarte, já senhora de seus atos, poderia decidir-se contra a
vontade dos pais:
Mas, depois que ele tiver o uso da razão, ele começa a ser ele
mesmo e pode, quanto ao que pertence ao direito divino ou
natural, decidir-se por si mesmo. E, então, ele é induzido, à fé,
não por coação, mas por persuasão; e pode, mesmo contra a
vontade dos pais, aderir à fé e ser batizado; não antes, porém, de
ter o uso da razão.
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Doravante, podemos perceber que a cristandade medieval, ao contrário do que muitos
apedeutas afirmam, não desconhecia, nem a dignidade da pessoa humana, nem o
legítimo respeito à sua liberdade. A argumentação de Santo Tomás também se mostra
como uma prova cabal que, longe de prescindir ou abolir o direito natural, a
cristandade o respeitava e venerava.
1.2.2.3) Da Condenação
Porque condenar à morte o herege? Na civitas de Tomás, falsificadores e malfeitores,
eram mortos por seus crimes. Os que cometiam tais crimes, que lesam o corpo e não a
alma eram sujeitos à morte. Ora, se tal é a situação daqueles que matam o corpo, qual
não deveria ser a pena para aqueles que, obstinadamente, atentam contra a vida da
alma, inquinando a fé? Por isso mesmo, são os hereges justamente punidos com a
morte:
É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar o
dinheiro, que serve à vida temporal. Ora, se os falsificadores de moeda ou outros
malfeitores logo são justamente condenados à morte pelos príncipes seculares, com
maior razão os heréticos desde que sejam convencidos de heresia, podem não só ser
excomungados, mas justamente serem condenados à morte.
1.2.2.3.1) A Espada Pertence ao Estado
Se tomarmos nota do que dissemos mais acima, veremos que à Igreja cabe, tão
somente, dar a excomunhão ao herege e cismático. A morte, por tratar-se da exclusão do
herege da cidade dos homens, é da alçada temporal. É, pois, ao príncipe que se deve
referir, em última instância, o determinar artigo de morte para o heresiarca. A Igreja,
diz Santo Tomás, ulteriormente à excomunhão, abandona o herege ao juízo secular
“(...) e ulteriormente ela o abandona ao juízo secular para que seja excluído do mundo
pela morte.” Há que se aduzir, no entanto, o seguinte: a Igreja podia, em certos casos,
solicitar ao braço secular a morte do herético. Por exemplo, no caso da heresia ter
vindo acompanhada de um cisma, ou seja, quando o herege, desprezando o juízo da
Igreja, continuava, mesmo depois de excomungado, a propagar os seus erros.
Entretanto, mesmo neste caso, cabia sempre ao príncipe, decretar artigo de morte ao
cismático:
Assim também a Igreja, quando se trata de pessoas que a
excomunhão não reprime suficientemente, utiliza a coerção do
braço secular. Se, porém, uma só pena é suficiente, não se deve
utilizar outra.
36
Portanto, a condenação à morte não era dispensada pela Igreja. Com efeito, aos
clérigos - dizia Santo Tomás - é devido, não matar em nome de Cristo, antes, ao
contrário, morrer por Cristo: “Não convém, pois, aos clérigos matar ou derramar
sangue, e sim estar prontos a derramar seu próprio sangue por Cristo, para imitar por
obras o que realizam por seu ministério.” Erram, pois, aqueles que pensam que, durante
a Idade Média, a Igreja houvesse esquecido de que por Cristo se morre e nunca se mata!
Tanto não esqueceu que impunha sanções a todos os clérigos que, porventura,
houvessem derramado sangue, mesmo sem culpa própria: “É por isso que o direito
pune como irregulares aqueles que derramam sangue, mesmo sem pecado de sua parte.”
Equivocam-se também – e grosseiramente – todos aqueles filmes que mostram padres e
inquisidores, acendendo fogueiras para matarem hereges... O cuidado era tanto, que
nem mesmo em caso de guerra os clérigos podiam tomar partido ativamente porque,
com isso, correriam o risco de derramar sangue, o que lhes era vedado de todo: “Por
isso, não é permitido, de forma alguma aos clérigos fazerem guerra, que leva ao
derramamento de sangue.”
Existem razões teológicas para tanto. Votados ao serviço do altar, os clérigos deveriam
sempre imitar àquele, cujo mistério, celebravam. Ora, Cristo – homem das dores –
longe de espancar e matar, foi espancado e morto; qual ovelha conduzida ao
matadouro, não impôs nenhuma resistência aos seus algozes. Assim, pois, devem os
seus ministros imita-lo:
São escolhidos para o serviço do altar, no qual se representa a
paixão de Cristo imolado, ‘que, ao ser espancado, não espancou’.
Portanto, não compete aos clérigos espancar e matar. Pois, os
servos hão de imitar o seu Senhor (...).
Além disso, a Nova Lei, sob cuja legislação os clérigos vivem, não comporta a pena de
morte. Logo, não cabe aos clérigos legislarem sobre a vida de alguém. O que não
significa – bem entendido – que a Nova Lei seja contra a pena de morte! Apenas que
não está ordenada para esta disposição:
Outra razão é que aos clérigos se confia o ministério da Nova Lei,
que não comporta pena de morte ou mutilação corporal. Assim,
para serem ‘ministros autênticos da Nova Aliança, devem absterse
de tais práticas.
37
Idem. Ibidem. II-II, 10, 8, C. (O itálico e o parêntese são nossos). A respeito do direito
da Igreja, de impor penas, aos apóstatas, hereges e cismáticos, esclarece Penido: Penido.
Op. Cit. p. 179: “Embora não sejam mais membros atuais, são ainda súditos da Igreja:
permanece sempre um vínculo jurídico. Compara o catecismo Romano (I p., c. X, q. 80)
os hereges e cismáticos a soldados trânsfugas. Apesar de não mais se integrarem ao
exército, este conserva o direito de julgá-los e puni-los.”
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 10, 8, ad 3. Chamamos à atenção o leitor, que
acrescentaremos aqui, por conveniência metodológica, um terceiro aspecto, o da
tolerância.
Tomás de Aquino. Suma Teológica.( II-II, 11, 3, C.);( II-II, 64, 2. ad 2.)
Pio XII. Humani Generis. n. 12. Disponível em: (II-II, 10, 9, C.);( II-II, 10, 11, C);
(II-II, 10, 12, C.);( II-II, 11, 3, C.); (II-II, 11, 3, C.); (II-II, 39, 4, ad 3.); (II-II, 40, 2, C.)
;( II-II, 64, 4. C.)
38
A teologia da Inquisição segundo Santo Tomás de
Aquino - V
Por Sávio Laet de Barros Campos
39
1.3) Da Pena de Morte
1.3.1) Do Homem
1.3.1.1) Do Homem Enquanto Indivíduo
Mas, resta uma questão em suspensão, qual seja, a morte do pecador. No âmbito desta
questão, levanta-se ainda outra mais grave e geral: é lícito matar um homem? E a
dignidade da pessoa humana? Mais: e quanto ao mandamento bíblico: não matarás?
Para responder a estas questões de forma adequada, temos que ter presente que o
homem pode ser considerado sob dois aspectos: em si mesmo e na sua relação com os
outros. Se considerarmos o homem em si mesmo, jamais será lícito matá-lo, pois, ainda
que pecador encontrar-se-á sempre nele, a natureza criada por Deus:
Considerando o homem em si mesmo, jamais será permitido
matá-lo, porque, em todo homem, ainda que seja pecador,
devemos amar a natureza, obra de Deus, que se desfaz pela
morte.
1.3.1.2) Do Homem Como Ser Político e Social
Contudo, se considerarmos o homem na sua relação com os outros, torna-se lícito
matá-lo, quando – e somente quando - ele põe em risco o bem comum pelo seu pecado:
“(...) a morte do pecador só se torna lícita, quando se trata de preservar o bem comum,
que o pecado destrói.” Ao inocente, porém, jamais será lícito matá-lo, nem mesmo
quando se considera a sua relação com os outros, pois o justo sempre contribui para
melhorar a sociedade: “Mas, a vida dos justos conserva e promove o bem comum, pois
constituem o que há de melhor na sociedade.” Aos que acusam o Angélico de infringir
o preceito bíblico, “Não matarás”, deve-se responder que não atinam para o fato de que
tal preceito não manda matar o inocente: “Innocentem es iustum non occides” (Ex 23,
7). Ora, em Tomás, o sagrado preceito é totalmente salvaguardado: “Et ideo nullo
modo licet occidere innocentem.”
A propósito da pena de morte, Tomás recorre ainda a analogias que, tomadas em si
mesmas, podem parecer num primeiro momento monstruosas. No entanto, estas
analogias – que são juízos de proporção - implicam que estas mesmas proporções
sejam guardadas. Além disso, tais analogias tencionam, acima de tudo, explicitar o
princípio. Tendo feito esta advertência, deve-se dizer que o homem, tomado como ser
social encontra-se, no seio da sociedade, como a parte em relação ao todo: “cada
pessoa está para toda a sociedade, como a parte está para o todo.” Ora, a parte, assevera
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Santo Tomás, existe em função e para o bem do todo: “(...) assim, toda parte, por
natureza, existe para o todo.” Desta sorte, a partir do momento que a parte passa a ser
prejudicial ao todo, perde a sua razão de ser. Por exemplo: uma perna, em seu estado
normal, existe para o homem. Deve, ipso facto, ser preservada e querida. No entanto, se
gangrenada, passa a ser nociva ao corpo. Ora, quem pode duvidar que o médico, ao
amputar o membro enfermo, busca com isso, o bem do doente e a salvação do corpo?:
“Por isso, se é útil à saúde de todo o corpo que se ampute a um membro gangrenado e
capaz de contaminar os outros membros, tal amputação é louvável e salutar.” De forma
análoga, o homem mal. Ele, pois, se torna uma chaga – como uma praga – a inquinar a
comunidade. Por isso, torna-se lícito e salutar que, em vista do bem comum, seja
excluído da comunidade pela morte:
Se, portanto, um homem se torna perigoso para comunidade e
ameaça corrompê-la por seu pecado, é louvável e salutar matá-lo,
para a preservação do bem comum.
1.3.1.3) Da Dignidade Humana e o Pecado
Mas - insisti o contraditor – e quanto ao fato da dignidade da pessoa ser, de toda forma,
lesada pela inflação da pena capital? Deve-se dizer que, um homem, quando peca,
perde – de algum modo - a sua dignidade. A dignidade do homem consiste, pois, em ele
agir segundo a razão e ser senhor dos seus atos. Ora, tal dignidade, ele a perde quando
peca, posto que, o pecado é um ato contrário à razão. Além disso, o pecado quando
praticado de forma constante, escraviza o arbítrio. De forma que, o homem entregue ao
pecado, decai e passa assemelhar-se a um animal. Na verdade, o homem mau é pior que
um animal, pois que nunca teve a opção de ser livre:
Deve-se dizer que pecando, o homem se afasta da ordem racional.
Decai, assim, da dignidade humana, que consiste em ser
naturalmente livre e existir para si mesmo. Ele cai, de certo
modo, na escravidão dos animais, de sorte que se deva dispor
dele como convém à utilidade dos outros. (...) Portanto, se é mal
em si mesmo matar um homem, que se conserva em sua
dignidade, pode, contudo, ser um bem matar um pecador, como
se abate um animal. Pois, o homem mau é pior que o animal e
ainda mais noviço, como diz o Filósofo.
41
1.3.2) Da Autoridade e da Pena Capital
Quanto a este questionamento, resta ainda uma dúvida. Se não é ao clérigo que cabe
matar o pecador, será, porventura, que de tal encargo se encontra incumbido qualquer
cidadão comum? É certo que não. A morte do pecador atende a salvação da sociedade:
“(...) matar um malfeitor é permitido enquanto esse ato se ordena à salvação da
sociedade.” Encontram-se, pois, imbuídos desta autoridade, somente aqueles a quem
cabe a direção de toda a comunidade: “Portanto, praticá-lo incumbe somente a quem
está encarregado da conservação da comunidade.” Ora, de tal poder encontram-se
revestidos os príncipes: “Ora, o encargo do bem comum é função dos príncipes que
detêm a autoridade pública.” Portanto, é a eles unicamente - como autoridades públicas,
responsáveis pelo bem comum – a quem cabe o direito de decretar a morte do malfeitor:
“Portanto, somente a eles, e não a pessoas privadas, é lícito matar os malfeitores.” E o
fazem, aliás, inculpavelmente. Retornando a analogia do médico, O Doutor Comum
pondera: como o médico, que ao amputar o membro enfermo do paciente, o faz
louvavelmente - a guisa de restabelecer-lhe à saúde - de igual modo o governante da
cidade (rector da civitatis), de forma justa (iuste) e isento de qualquer pecado (absque
peccato), mata os homens maléficos a fim de conservar a paz da cidade (pax civitatis).
E o fazem, pois, sem pecado algum, porque agem como executores Providência divina
(divinae providentiae executores) na ordem social:
Além disso, na terra, os homens colocados acima dos outros são
como executores da providência divina, pois Deus, pela
ordenação da sua providência, realiza as coisas inferiores
mediante as superiores (...) Ora, ninguém peca seguindo a
ordenação da providência divina. (...) Logo, os homens que
governam os outros não pecam ao premiar os bons e castigar os
maus.
1.3.3) Da Pena de Morte e a Caridade Cristã
Antes de terminarmos esta pequena exposição, uma pergunta nos salta aos olhos: e a
caridade cristã? Onde a caridade, que nos mandar amar até mesmo os que não nos
amam, até mesmo os nossos inimigos? De fato, não falece a caridade da Igreja; antes,
ela se estende a todos, inclusive aos seus inimigos, conforme manda o Senhor no
Evangelho:
A Igreja, segundo a instituição do Senhor, estende a sua caridade
a todos, não somente a seus amigos, mas também a seus inimigos
e perseguidores, conforme a palavra do Evangelho de Mateus:
42
“Amai os vossos inimigos e fazer o bem àqueles que vos
perseguem.”
1.3.3.1) Da Caridade e o Bem Supremo da Alma: A Salvação
À caridade, não somente o querer, mas também o fazer o bem ao próximo: “Ora, cabe à
caridade querer o bem do próximo e fazê-lo.” Ora, este bem pode ser de duas espécies.
Devemos querer, antes de tudo e principalmente, o bem espiritual, a salvação das
almas. Quanto a este bem, todos devem querer, sem embargo, para todos
indistintamente: “(...) o bem espiritual, isto é, a salvação da alma, objeto principal da
caridade que deve ser desejado por qualquer um para os outros.” É por isso, inclusive,
que os hereges sempre, e todas as vezes que se arrependerem, serão ser aceitos na
Igreja:
Por isso, nesse ponto, os hereges que se convertem, tantas vezes
quantas tiverem caído, são recebidos pela Igreja para a penitência
que lhes abre o caminho da salvação.
1.3.3.1) Da Caridade e os Bens Temporais
No entanto, existe um outro bem que a caridade visa secundariamente: são os bens
temporais: a vida corporal, a posse dos bens materiais, a fama e as dignidades, sejam
estas eclesiásticas ou seculares. Destarte, estes bens, que a caridade visa
secundariamente, não somos obrigados a querê-los para todos, indiscriminadamente.
Com efeito, o objeto principal da caridade é o bem espiritual, isto é, a salvação eterna.
Somente este deve ser querido, não somente acima de todos os demais, mas até - se
necessário for - em detrimento dos demais. Todos os demais bens estão ordenados a
este e só devem ser queridos, na medida em que auxiliam e conduzem a ele: “Este bem,
com efeito, nós não somos obrigados, pela caridade, a querer para os outros a não ser
para a salvação eterna deles e de outros.”
Destarte, se a presença de um destes bens temporais, num determinado indivíduo,
acarrete na perdição eterna de muitos, não devemos – melhor, nem podemos –
conforme a caridade, desejar que este indivíduo continue a possuí-lo; ao contrário –
caritativamente – devemos ansiar que seja dele privado, já para a salvação dos demais
– pois o bem de muitos é melhor que o de um só - já, precisamente, porque o bem
espiritual deve ser preferido ao material, quando este se torna empecilho para aquele:
43
Por isso, se algum desses bens, encontrando-se num indivíduo,
pode impedir a salvação eterna de muitos, a caridade não exige
que nós lhe desejemos esse tipo de bens, mas, antes, exige que
desejemos seja deles privado, seja porque a salvação eterna deve
ser preferida ao bem temporal, seja porque o bem de muitos é
preferível ao bem de um só.
É por isso que a Igreja, quando recebe o herege penitente, nem sempre o livra do juízo
secular. Devemos ter presente que, para os medievais, não somos mônadas, quais
pontos solitários ou ilhas isoladas; bem ao contrário, somos seres sociais inseridos, já
na sociedade secular, já no corpo eclesial. De tal forma que as nossas ações e os nossos
comportamentos, repercutem por todo o corpo social, toda a comunidade é por eles
atingida. As coisas boas que fazemos, desta sorte, influenciam toda a sociedade e o mal
que, porventura praticamos, atinge a todos os nossos coetâneos. Doravante, se a Igreja
aceitasse, pura e simplesmente, os hereges de volta restituindo-lhes, doravante, não
somente o bem da salvação, mas ainda os temporais estaria, com isso, dando vazão e
incitando os ânimos de outros para que, mais confiantes, se entregassem à heresia. Ora,
isto seria, além de deseducativo, uma falta de caridade para com os demais, cuja
salvação seria posta em risco:
Se, porém, os hereges, sempre que voltassem, fossem recebidos
de modo a lhes ser conservada a vida e outros bens temporais,
isso poderia ser em prejuízo da salvação de outros; porque se
recaíssem, contaminariam outros e também porque se nenhuma
pena sofressem, outros cairiam mais seguramente nas heresias.
Partindo deste pressuposto, ao herege que se arrepende e volta ao seio da Igreja, esta
lhe devolve, na primeira vez, não somente o bem espiritual – qual seja a salvação da
alma – mas também lhe conserva os temporais: a boa-fama, a vida corporal, os bens
materiais e lhe restituem as dignidades. Entretanto, se houver egresso, ficará patenteada
a inconstância da fé. De modo que, caso ocorra novo regresso, a Igreja certamente não
será inóspita para com o herege, o acolherá para fazer penitência, mas não o poupará a
ponto de livrá-lo dá pena capital. Oferece-lhe o bem da salvação, mas recusa-lhe os
bens temporais:
Por isso, a Igreja, não só recebe os que voltam da heresia pela
primeira vez para fazer penitência, mas também lhes conserva a
vida; e, às vezes, por indulgência, os restitui às dignidades
eclesiásticas que antes tinham, se eles se manifestarem
44
verdadeiramente convertidos. E isso, muitas vezes foi feito pelo
bem da paz. Mas, se, quando acolhidos, novamente recaem,
parece que há sinal de inconstância na fé. Por isso, se volta
ulteriormente são recebidos para fazer penitência, não, porém, a
ponto de evitar a sentença de morte.
Isto demonstra, inclusive, que a sentença de morte longe de ser, necessariamente, uma
sentença de condenação eterna, poderia até se tornar, um motivo a mais para se fazer
penitência! Aliás, o próprio Santo Tomás credita que, se alguém, por ocasião de estar
em artigo de morte, resiste ainda à penitência, é provavelmente porque jamais iria se
converter. Pelo que, assevera o Santo Doutor, o perigo iminente que a conservação da
vida deles comporta, é muito maior e mais certo, do que qualquer chance de,
penitenciando-se, converterem-se:
Quanto à possibilidade da emenda dos maus enquanto vivem,
isso não impede que eles sejam mortos por justiça, porque o
perigo iminente que a vida deles traz é maior e mais certo que o
bem esperado da emenda deles. Aliás, eles têm ainda a
possibilidade de se converter para Deus pela penitência, em
artigo de morte. Porém, se estão de tal modo obstinados que até
em artigo de morte o seu coração não se afasta da malícia, podese
provavelmente considerar que jamais dela se corrigirão.
Idem. Ibidem. II-II, 64, 6, C.
Idem. Ibidem. II-II, 64, 6, C: “Logo, de modo algum é lícito matar um inocente.”
Embora o Decálogo afirme não matarás (Ex 20, 13), não podemos analisar este texto a
nosso talante, e fora do seu contexto! Sem embargo, no capítulo XXIII – em seguida
portanto - o Senhor explicita a lei que proíbe o homicídio: “insontem et iustum non
occides” “Não matarás o inocente e o justo (...)” (Ex 23, 7b). De fato, é a este
ensinamento - profundamente bíblico aliás – a que Santo Tomás faz alusão na
supracitada passagem da Suma.
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 64, 2, C.
45
Idem. Ibidem. Idem. Suma Contra os Gentios. III, CXLVI, 4(3196): “Ora, a vida de
alguns homens perniciosos prejudica o bem comum, que consiste na harmonia da
sociedade humana. Logo, esses homens devem ser afastados do convívio humano pela
morte.”
Idem. Suma Teológica. II-II, 64, 2, ad 3.
Idem. Ibidem. II-II, 64, 3, C.
Idem. Suma Contra os Gentios. III, CXLVI, 5(3197): “Além disso, como o médico,
ao agir, deseja a saúde do paciente, que consiste no devido equilíbrio dos humores,
também o dirigente da sociedade (rector civitatis) deseja, no seu trabalho, a paz, que
consiste na harmonia ordenada dos cidadãos. Ora, como o médico com razão utilmente
corta o membro gangrenado quando está iminente a decomposição do corpo. Por isso,
também o governante da sociedade (rector civitatis) justa (iuste) e inculpavelmente
(absque peccato) mata os homens maléficos, para que eles não perturbem a ordem
social (pax civitatis).”
Idem. Ibidem. III, CXLVI, 2(3194).
Tomás de Aquino. Suma Teológica. II-II, 11, 4, C.
Maurílio Teixeira Leite Penido. Op. Cit. p. 240: “O cristão não se reduz a um átomo
espiritual, subsistindo em esplêndido isolamento; ele forma parte integrante de um
organismo sobrenatural, cuja Cabeça é Cristo, e cujos membros são os outros cristãos.”
Idem. Op. Cit. p. 69: “A Igreja não é uma colônia de células autônomas; elas
comportam coordenação e subordinação.”
Tomás de Aquino Suma Teológica. II-II, 11, 4, C.
Idem. Suma Contra os Gentios. III, CXLVI, 8 (3200c).
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A teologia da Inquisição segundo Santo
Tomás de Aquino - VI
Por Sávio Laet de Barros Campos
47
1.3.4) Da Pena de Morte e as Demais Penalidades
Como apêndice, queremos aduzir e tentar responder a uma invectiva feita por alguns
ilustres. Tenta certa grei de teólogos fazer reduzir, a licitude da pena de morte na Idade
Média, ao fato de neste período inexistir outras formas de penalidades, notadamente a
do encarceramento. Como se não bastasse o lamentável desconhecimento no plano
histórico este vem seguido, de confusa e inócua sofisticação no plano lógico. No
mínimo, lacuna imperdoável de erudição.
A Idade Média conheceu outras formas de penalidades, inclusive a do encarceramento.
Além disso, a pena de morte, como fartamente aludimos mais acima, é um Direito
Natural do Estado. Por conseguinte, válido, ontem, hoje e sempre.
1.3.4.1) Da Mutilação
No direito medieval, a tentativa de suicídio, além de pecado mortal, era crime com
sanções previstas. A parte existe e pertence ao todo. Com efeito, cada homem é parte
da sociedade. Logo, cada homem, de certa forma, não se pertence, mas existe para a
comunidade. Destarte, a pessoa quando tenta se matar, lesa a comunidade, atenta
contra a justiça:
A parte, pelo que ela é, pertence ao todo. Ora, cada homem é
parte da comunidade; o que ele é pertence a comunidade. Por
isso, matando-se, comete injustiça contra a comunidade.
No entanto, exatamente por isso – a saber – precisamente pelo homem pertencer à
comunidade, os membros do seu corpo, de certo modo, também se ordenam para a
comunidade. Da mesma forma que os membros de um corpo, ordenam-se à integridade
da pessoa, assim, a pessoa mesma, se ordena para o bem da comunidade. Logo, se estes
membros – os membros do corpo (braço, mãos, pernas, etc) passam a ser instrumentos
de vícios - nocivos ao bem-comum – à autoridade, que representa a comunidade, será
lícito mutilá-los:
Mas, todo homem é ordenado à comunidade como ao seu fim,
como já foi elucidado. Poderá, então, acontecer que embora
prejudique a todo o corpo, a ablação de um membro, se ordene,
contudo ao bem da comunidade, enquanto é imposta em castigo,
para coibir certos pecados. Por isso, assim como a autoridade
pública pode privar alguém da vida, em razão de certas faltas
maiores, assim tem igualmente o direito de amputar um membro,
para punir faltas menos graves.
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1.3.4.2) Do Espancamento
Outra forma de penalidade vigente na Idade Média era o espancamento. A lógica era a
mesma. O espancamento é, em relação a precedente, uma penalidade mais leve que
deve ser imposta, por conseguinte, também para crimes mais leves: “Enquanto a
mutilação priva o corpo de sua integridade, as pancadas causam apenas uma sensação
de dor, o que é um dano menor.” Tinha em vista, antes de tudo, disciplinar e corrigir,
mais ainda do que punir ou castigar. Destacamos ainda que, “alguém só pune
justamente a quem está sob sua jurisdição.” Com efeito, o filho e o escravo que estão,
respectivamente, sob guarda do pai e do patrão podem, quando houver justa causa,
apanhar destes tendo em vista a sua melhor formação ou correção: “E uma vez que o
filho está sujeito ao pai e o escravo ao senhor, o pai pode bater no filho, e o senhor, no
escravo, em vista de os corrigir e formar.”
1.3.4.3) Do Encarceramento
Finalmente, a pena pode se dar por encarceramento. De fato, enquanto a morte e a
mutilação subtraem ao corpo a sua integridade substancial, as pancadas, por sua vez,
lhe privam do prazer e do repouso que lhe são naturais. O encarceramento, ao
contrário, lhe impede - mediante algemas e/ou cárcere - de exercer certos movimentos e
isto ocorre, ou como punição por algum crime, ou por medida preventiva, no intento de
se evitar alguma ação desordenada:
(...) O movimento e o uso dos membros, que ficarão impedidos
pelas algemas, pelo cárcere ou qualquer outra forma de detenção.
Por isso encarcerar ou deter alguém de qualquer modo, é ilícito,
salvo em conformidade com a justiça, seja a título de castigo, seja
por medida preventiva contra certos perigos.
Houve sombras, mas, certamente as “fogueiras da inquisição” não iluminaram os céus
da Europa... Muito mais sangrentas, as “inquisições” do crudelíssimo Calvino, dos
sanguinários piratas protestantes que assombravam céus e mares! Houve Bispos e
Inquisidores toscos e a civilização medieval, longe sempre esteve distante de ser a
cristandade ideal. Enfim, quanta contingência já superada (a escravidão, a tortura, a
mutilação) ou substituída, por formas mais avançadas de penalidade. No entanto,
imutáveis permanecem os princípios: a pena de morte é um direito natural do Estado; o
homem está ordenado ao corpo social; homem, sozinho, nenhures. Parece-nos razoável,
o juízo de Frei Penido, a respeito da cristandade medieval. Arrola os seguintes
comentários, o magistral do Dominicano:
A cristandade medieval está bem longe de ser a única realização
possível desses princípios (os princípios cristãos), nem mesmo é
a realização sem jaça deles. Afirmá-lo seria incidir em erro
análogo ao liberalismo: querer transmutar uma situação
contingente em regra absoluta. Na verdade, muito houve na
cristandade medieval que lhe provinha das condições – nem
sempre favoráveis – de lugar e tempo.
49
Não nos esqueçamos, no entanto, de avaliarmos bem, a guilhotina assassina, no
“século da razão”.... Aos historiadores os aprofundamentos e o dever de discernir, no
seio dos acontecimentos, as luzes das trevas. Aos hereges, cabe antes dívida de gratidão
para com os seus “algozes” inquisidores; não fossem eles, seriam esmagados sem
julgamento pela multidão.
50
BIBLIOGRAFIA
DENZINGER, Enrique. El Magisterio de La Iglesia: Manual de los Simbolos,
Definiciones y Declaraciones de la Iglesia en Materia de Fe y Costumbres. trad.
Daniel Ruiz Bueno. Barcelona: Editorial Herder, 1963.
FRANCA, Leonel. A Igreja, A Reforma e A Civilização. 7ª ed. Rio de Janeiro: Agir,
1958.
A Psicologia da Fé. 7ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1953.
Noções de História da Filosofia. 4ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Pimenta de Mello,
1928.
PENIDO, Maurílio Teixeira Leite. Iniciação Teológica I: O Mistério da Igreja. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Vozes, 1956.
PIEPER, Josep. Crer, Esperar e Amar. trad. Luiz Jean Lauand. Disponível em:
TOMÁS DE AQUINO. Suma Contra os Gentios. Vol 1. Trad. D. Odilão Moura e
Ludgero Jaspers. rev. Luis Alberto De Boni. Porto Alegre: EDPUCRS, 1996. v 2.
Suma Teológica. trad. Aimom-Marie Roguet et al. São Paulo: Loyola, 2001. v. V, VI.
Tomás de Aquino. Suma Teológica.( II-II, 64, 5, C.), (II-II, 65, 1, C.), (II-II, 65, 2, C.),
(II-II, 65, 3, C.)
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sexta-feira, 4 de março de 2016
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