Carta aos Amigos da
Cruz
São Luís Maria de
Montfort
Tú que descanso buscas com cuidado,
Neste mar do mundo tempestuoso
Não esperes de achar nenhum repouso,
Senão em Cristo Jesus Crucificado.
Camões
Nihil Obstat
Rio de Janeiro, 30 de janeiro de
1954
Dom Estevão Bittencourt, O.S.B.
Censor
Pode imprimir-se
Rio, 9 de fevereiro de
1954
Mons. Caruso
pro Vigário Geral
Prefácio
É
um grande apóstolo da Cruz que expande sua alma nesta carta. A exemplo de S.
Paulo, Montfort “só quer saber... Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (I
Cor., II, 2); Cristo pregado na Cruz, que é escândalo para os Judeus, para o
mundo loucura, mas, para os eleitos... é Sabedoria de Deus” (I Cor., I, 23-24)
Em
seu livro intitulado “O Amor da Sabedoria eterna”, belas páginas já cantavam o
mistério de nossa salvação, principalmente, entre outras, aquelas em que é
celebrada a união indissolúvel de Jesus com a Cruz(n° 168 e segs.). Num lirismo
não igualado, demonstra aé que não se pode amar a um sem amar a outra. E é o
programa da vida cristã, proposto pelo Divino Mestre a todos os seus
discípulos, que São Luís Maria comenta sem artifícios, para uso dos seus
queridos “Amigos da Cruz”.
Ao
pregar em Nantes, em 1708, uma missão na paróquia de São Similiano, o Padre de
Montfort havia agrupado, numa Confraria dos Amigos da Cruz, os seus ouvintes
mais fervorosos. Ao passar por essa cidade, em várias ocasiões, os gavia
animado a perseverar em seu fervor primitivo. Bem cedo foi-lhe preciso reduzir
as conversas particulares o seu ministério junto a eles. Assim aconteceu
notadamente durante o decorrer do verão de 1714, quando o santo missionário
empreendeu sua viagem à Normandia. Não pôde com efeito, usar publicamente da
palavra; a interdição que pesava sobre ele, desde o incidente do Calvário de
Pont-Château, não havendo sido ainda levantada.
Rennes
era sua segunda etapa depois de Nantes. Lá também os Jansenistas vigiavam e
suas intrigas reduziram ao silêncio o seu temível adversário. A seu pedido, os
Padres Jesuítas abriram ousadamente a porta do colégio onde outrora havíam
formado sua jovem alma. O apóstolo aí se refugiou em retiro; durante oito dias
contemplou o mistério do Calvário. Incessantemente face a face e coração a
coração com o Homem das Dores e com sua Mãe Santíssima, hauriu novas luzes e as
mais ardentes chamas.
É
o fruto de sua contemplação que, “no seu último dia de retiro”, quis fazer
saborear aos seus fervorosos discípulos, nas páginas de uma carta em que o
ardor de apóstolo consumido de desejo de atrair as almas para o caminho da
cruz, se tempera sabiamente de prudência nos conselhos práticos que lhes
apresenta.
Quererá
isto dizer que se deva ver na “Carta Circular aos Amigos da Cruz” uma
improvisação? Decerto que Não; é ela que o santo viveu e pregou durante toda a
sua vida. São testemunhas disto os seus dois cânticos sobre “A força da
paciência” (39 estrofes e 8 versos) e “O triunfo da Cruz” (31 estrofes do mesmo
comprimento), que ele vinha rimando, segundo se julga, desde o Seminário, e
onde encontramos quase todos os elementos da Carta. É testemunha disto o lugar
que dá, no alto de seus 62 “Oráculos”, ao programa do Divino Mestre: “Se alguém
quiser vir após mim...”, e que aqui se encontra longamente desenvolvido. É
testemunha, disto, principalmente, o belo capítulo intitulado “O triunfo da
eterna Sabedoria na Cruz e pela Cruz”, capítulo XIV de “O Amor da Eterna
Sabedoria”, obra escrita, sem dúvida, em sua juventude sacerdotal.
Testemunham-no ainda os seus três planos
de sermões sobre “O Amor da Cruz”, e outro sobre “A Exaltação da
Santa Cruz”, seguido de “XV Práticas para se conduzir nas cruzes com
perfeição”. Testemunha-o, por fim, a Cruz coberta de máximas que fez erguer no
Hospital de Poitiers, “no meio da sala em que reuniu as primeiras Filhas da
Sabedoria”.
Ao
encontrar, na Carta-Circular, as riquezas da Escritura, dos Padres da Igreja e
dos teólogos, onde Montfort hauriu o melhor de sua doutrina, não se pode deixar
de reconhecer a parte de ifluência
exercida sobre ele pr M. Boudon, ilustre arcipreste de Evreux. “Les sainctes
voyes de la Croix ”,
por este autor, eram, segundo o testemunho de M. Blain, condissípulo de Luís
Maria, seu livro preferido no Seminário de São Sulpício. Encontramos na “Carta
ao Amigoa da Cruz” várias passagens extraídas do livro de M. Boudon. Já não
havia “Le sainct esclavage de la
Mère de Dieu”, pelo
mesmo autor, feito as delícias do Seminarista que deveria escrever um dia o
“Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem?”
Gostamos
- e a justo título - de ver em Montfort o grande apóstolo de Nossa Senhora. Sua
perfeita devoção a Maria, porém, é apenas um meio, -o meio por excelência,- de
conduzir a almas a Jesus. “Se estabelecemos a sólida devoção à Santíssima
Virgem é apenas para mais perfeitamente estabelecer a de Jesus Cristo, é apenas
para dar um meio fácil e seguro de encontrar Jesus Crito”(V.D., n° 62).
Procuremos
lembrar-nos disto ao ler e meditar a “Carta sobre a Escravidão à Santíssima
Virgem”e talvez também o seu luminoso tratado da “Verdadeira Devoção”. A presente
“Carta” lhes está ligada, ousmos dizer, como desenvolvimento, como complemento
do pensamento do santo autor, “no desígnio que Ele tem de formar um verdadeiro
devoto de Maria e um Verdadeiro discípulo de Jesus Cristo”(V.D., n° III).
Mal
acabava de ser escrita a “Carta Circular”, foi impressa, na própria Rennes,
graças aos bons ofícios de M. d’Orville. Espalhou-se ela assim, largamente,
entre os amigos da Cruz e as almas devotas. O manuscrito, entretanto, foi
piedosamente conservado. Em 1770, o Revmo. Pe. Besnard, superior geral da
Companhia de Maria e das filhas da Sabedoria, atesta que esse manuscrito se
acha em poder dos Missionários de Saint-Laurent-sur-Sèvre. Desde então,
entretanto, ignora-se o seu paradeiro. Terá ele desaparecido durante a guerra
da Vendéa?
Dada
a falta do manuscrito, cuja perda devemos lamentar, dada a falta mesmo de
antigos exemplares impressos, utilizamos para esta edição o texto de 1830,
publicado pelo Revmo. Pe. Delin, escritor geralmente fidelíssimo em suas
transcrições e que fez dessa fidelidade lei.
Permitimo-nos
apenas adotar pontuação e parágrafos mais conformes ao gosto do leitor moderno.
Pelo mesmo motivo foram postos em evidência os sumários sugeridos pelo texto,
que não trazia nem sub-títulos, nem divisões. Foram acrescentados em nota
alguns esclarecimentos úteis, bem como as principais referências das passagens
da Sagrada Escritura de que a “Carta” está repleta. Como para as outras obras
do santo, números entre colchetes, independentes da paginação, facilitarão as voltas
ao texto.
Foi
tomada para modelo, na apresentação desta “Carta”, a “Edição-Tipo” (1926) da
“Carta sobre a Escravidão à Santíssima Virgem”, ou “O Segredo de Maria” (I).
Assim as duas cartas irão juntas à conquista das almas, para maior glória de
Jesus e de sua Mãe.
A.P.D.
(1)
“O Segredo de Maria” e o “Método de Rezar o Rosário, também de Montfort.
Aos Amigos da Cruz
Introdução
Queridos Amigos da Cruz,
[1] Já que a divina Cruz me
esconde e me interdiz a palavra, não me é possível - e nem mesmo o desejo -
falar-vos para vos externar os sentimentos do meu coração sobre a excelência e
as práticas divinas de vossa União na Cruz adorável de Jesus Cristo(1).
Hoje, entretanto, último dia
de meu retiro, saio, por assim dizer, da atração do meu interior, para traçar
neste papel alguns leves dardos da Cruz, para com eles atravessar vossos
corações. Prouvesse a Deus fosse necessário, para acerá-los, o sangue de minhas
veias em lugar da tinta de minha pena! Mas, ai de mim! mesmo se ele fosse
necessário, é por demais criminoso. Que o Espírito do Deus vivo seja, pois, a
vida, a força e o teor desta carta; que sua unção seja a tinta de meu tinteiro;
que a divina Cruz seja minha pena e o vosso coração meu papel!(2)
Primeira Parte
Excelência da União dos Amigos da Cruz
Apelo à união dos espíritos e
dos corações.
[2] Estais reunidos, Amigos
da Cruz, como outros tantos soldados crucificados(3), para combater o mundo;
não fugindo, como os religiosos e religiosas, pelo medo de serdes vencidos; mas
como valorosos e bravos guerreiros no campo de batalha, sem largar o pé e sem
voltar as costas. Coragem! Combatei valentemente! Uni-vos fortemente pela união
dos espíritos e dos corações, infinitamente mais forte e mais temível ao mundo
e ao inferno do que o são, para os inimigos do Estado, as forças exteriores de
um reino bem unido. Os demônios se unem para perder-vos; uní-vos para
derrotá-los. Os avarentos se unem para traficar e ganhar ouro e prata; uni
vossos trabalhos para conquistar os tesouros da eternidade, encerrados na Cruz.
Os libertinos se unem para divertir-se; uni-vos pra sofrer.
1° - Grandeza do Nome de Amigos da Cruz
A) Este nome é grande e
glorioso
[3] Chamai-vos Amigos da
Cruz. Como é grande esse nome! Confesso-vos que ele me encanta e deslumbra. É
mais brilhante que o sol, mais elevado que os céus, mais glorioso e mais
pomposo que os títulos mais magníficos dos reis e dos imperadores. É o grande
nome de Jesus Cristo, a um tempo verdadeiro Deus e verdadeiro homem; é o nome
inequívoco de um cristão.
B) Mas quantas obrigações
encerra!
[4] Entretanto, se seu brilho
me encata, seu peso não me espanta menos. Quantas obrigações indispensáveis e
difíceis contidas neste nome e expressas por estras palavras do Espírito Santo;
“Genus electum, regale sacerdotium, gens sancta, populus acquisitionis (4)”!
Um amigo da Cruz é um homem
escolhido por Deus, entre dez mil que
vivem segundo os sentimentos e a razão, para ser unicamente um homem todo
divino e elevado acima da razão, e todo em oposição aos sentimentos, por uma
vida e uma luz de pura fé e por um amor ardente pela Cruz.
Um Amigo da Cruz é um rei
todo poderoso e um herói triunfante do demônio, do mundo e da carne em suas
três concupiscências. Pelo amor às humilhações, esmaga o orgulho de Satanás;
pelo amor à pobreza, triunfa da avareza do mundo; pelo amor à dor, amortece a
sensualidade da carne.
Um Amigo da Cruz é um homem
santo e separado de todo o visível, cujo coração está acima de tudo quanto é
caduco e perecível, e cuja conversa está no Céu (5); que passa pela terra como
estrangeiro e peregrino; e que, sem lhe dar o coração, a contempla com o olho
esquerdo com indiferença, calculando-a com desprezo aos pés (6).
Um Amigo da Cruz é uma
ilustre conquista de Jesus Cristo crucificado no Calvário, em união com sua
Santa Mãe; é um Benoni ou um Benjamin, filho da dor e da dextra (7), gerando em
seu dolorido coração, vindo ao mundo por seu lado direito atravessado e coberto
da púrpura de seu sangue. Dada a sua extração sangrenta, só respira cruz,
sangue e morte ao mundo, à carne e ao pecado, para estar totalmente oculto,
aqui na terra, com Jesus Cristo em Deus (8).
Enfim, um perfeito Amigo da
Cruz é um verdadeiro porta-Cristo, ou antes, um Jesus Cristo, de maneira que
possa, em verdade, dizer: “Vivo, ja no ego, vivit vero in me Christus: vivo,
mas não eu, é Jesus Cristo que vive em mim”(9)
Exame de consciência sobre essas obrigações.
[5] Sois, por vossas ações,
meus queridos Amigos da Cruz, aquilo que vosso grande nome significa? Ou pelo
menos, tendes verdadeiro desejo e vontade verdadeira de assim vos tornades, com
a graça de Deus, à sombra da Cruz do Cálvário e de Nossa Senhora da Piedade?
Entrastes no verdadeiro caminho da vida (10), que é o caminho estreito e
espinhoso do Calvário? Não estareis, sem o pensar, no caminho da perdição?
Sabeis bem que há um caminho que parece ao homem reto e seguro, e que conduz à
morte?
[6] Distinguís bem a voz de
Deus e de sua graça da voz do mundo e da natureza? Ouvís bem a voz de Deus,
nosso Pai, que, depois de ter dado sua tríplece maldição a todos os que seguem
as concupiscências do mundo: vae, vae, vae habitantibus in terra (11),
grita-vos amorosamente, estendendo-vos os braços: “Separamini, popule
meus”(12). Separai-vos, meu povo escolhido, queridos Amigos da Cruz de meu
Filho; separai-vos dos mundanos, malditos por minha Majestade, excomungados por
meu Filho (13) e condenados pelo meu Espírito Santo (14). Tomai cuidado para
não vos sentardes em sua cadeira toda empestada, não sigais os seus conselhos,
nem mesmo pareis em seu caminho (15). Fugi do meio da grande e infame Babilônia
(16); não escuteis outra voz e não sigais outras pegadas que não as de meu
Filho bem amado, que vos dei para que fosse vosso caminho, vossa verdade, vossa
vida (17) e vosso modelo: “Ipsum audite”(18).
Ouvís o amável Jesus, que,
carregando sua Cruz, vos grita: “Venite post me: vinde após mim; o que me segue
não anda em trevas (19); confidite, ego vici mundum, tende confiança, eu venci
o mundo (20)”?
2° - Os Dois Partidos
A) O partido de Jesus e do
mundo
[7] Eis aqui, meus caros
Confrades, eis aqui dois partidos (21) que se defrotam todos os dias; o de
Jesus Cristo e o do mundo.
O de nosso amável Salvador
está à direita, em aclive, num caminho estreito e que assim cada vez se tornou
devido à corrupção do mundo.
Caminha à frente o bom
Mestre, os pés descalços, a cabeça coroada de espinhos, o corpo todo
ensanguentado, e carregando uma pesada Cruz. Apenas algumas pessoas, e das mais
corajosas, o seguem, porque sua voz tão delicada não se ouve no meio do tumulto
do mundo; ou então, não se tem coragem para seguí-lo em sua pobreza, suas
dores, suas humilhações e suas outras cruzes, que necessariamente é preciso
carregar, a seu serviço, todos os dias da vida.
[8] À esquerda está o partido
do mundo, ou do demônio, que é mais o numeroso, o mais signífico e o mais
brilhante, pelo menos na aparência. Todos os indivíduos mais brilhantes correm
para ele; apressam-se, apesar de serem os caminhos largos, mais largos, do que
nunca em virtude das multidões que por eles passam como torrentes, e de estarem
juncados de flores, marginados de prazeres e divertimentos, cobertos de ouro e
de prata (22).
B) Espírito totalmente oposto
dos dois partidos.
[9] À direita, o rebanhinho
que segue a Jesus Cristo só fala em lágrimas, em penitências, em orações e em
desprezo do mundo; ouvem-se continuamente estas palavras (23), entrecortadas de
soluços: “Soframos, choremos, jejuemos, oremos, ocultemo-nos, humilhemo-nos,
empobreçamo-nos, mortifiquemo-nos; porque o que não tem o espírito de Jesus
Cristo, que é um espírito de cruz, não pertence a Ele; os que são de Jesus
Cristo mortificaram a carne com as suas concupiscências; é preciso ser conforme
à imagem de Jesus Cristo (24) ou condenar-se. Coragem! exclamam eles. Coragem!
Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Aquele que está em nós é mais
forte que o que está no mundo. O servo não é maior que o senhor. Um momento de
leve tribulação redunda em peso eterno de glória. Há menos eleitos do que se
pensa. Só os corajosos e os violentos arrebatam o céu de viva força; ninguém
será lá coroado se não houver combatido legitimamente, segundo o Evangelho, e
não segundo a moda. Combatamos, pois, vigorosamente, corramos depressa para
atingir a meta, a fim de ganharmos a coroa!” Eis uma parte das palavras divinas
com que os Amigos da Cruz mutuamente se
animam.
[10] Os mundanos, ao
contrário, gritam todos os dias, para animar-se a perseverar em sua malícia sem
escrúpulos (25) “Vida, vida! Paz, paz! Alegria, alegria! Comamos, bebamos,
cantemos, dancemos, brinquemos! Deus é bom, Deus não nos fez para que nos
danássemos; Deus não proíbe que nos divirtamos; Não nos danaremos por isso.
Nada de escrúpulos! Non moriemini. etc...”
C) Amoroso apelo de Jesus
[11] Lembrai-vos, meus caros
Confrades, que nosso bom Jesus nos olha neste instante e diz a cada um de vós
em particular: “Eis que quase todos me abandonaram no caminho real da Cruz. Os
idólatras cegos zombam de minha cruz como de uma loucura, os Judeus obstinados
se escandalizam (26) com ela, como se fosse objeto de horror, os herejes
quebraram-na e derrubaram-na como coisa digna de desprezo. Mas, e isto só posso
dizer com lágrimas nos olhos e com o coração transpassado de dor, os filhos que
criei em meu seio e que instruí em minha escola, os meus membros, que animei
com meu espírito, me abandonaram e desprezaram, tornando-se inimigos de minha
cruz! (27) - Numquid et vos vultis abire?(28) Quereis, vós também,
abandonar-me, fugindo da minha Cruz, como os mundanos, que nisto são outros
tantos anticristos: antichristi multi? (29) Quereis enfim, conformar-vos ao
século presente (30), desprezar a pobreza de minha Cruz, para correr após as
riquezas? Evitar a dor de minha Cruz para procurar aos prazeres? Odiar as
humilhações de minha Cruz, para ambicionar as honras? Tenho, na aparência,
muitos amigos que me fazem protestos de amor, e que, no fundo, me odeiam, pois
não amam minha Cruz; muitos amigos de minha mesa e pouquíssimos amigos de minha
Cruz (31)
[12] A este apelo amoroso de
Jesus, elevamos acima de nós mesmos; não nos deixemos seduzir pelos nossos
sentidos, como Eva; não olhemos senão o autor e consumador de nossa fé, Jesus
crucificado (32), fujamos da corrupção da concupiscência do mundo (33)
corrompido; amemos Jesus Cristo da melhor maneira, isto é, através de toda
sorte de cruzes. Meditemos bem estas admiráveis palavras de nosso amável
Mestre, que encerram toda a perfeição da vida cristã: “Si quis vult venire post
me, abneget semetpsum, et tollat crucem suam, et sequatur me! (34)
Segunda Parte
Práticas da Perfeição Divina Cristã
O programa do Divino Mestre
[13] Toda a perfeição cristã,
com efeito, consiste:
1°: em querer tornar-se
santo: “Se alguém quiser vir após mim”;
2°: em abster-se: “renuncie a
si mesmo”;
3°: em sofrer: “carregar sua
cruz”;
4°: em agir: “siga-me”
1° - Querer tornar-se Santo:
“Se Alguém Quiser Vir Após
Mim”
A) “Se alguém...”
“Si quis”, se alguém, alguém,
e não alguns, para marcar o pequeno número dos eleitos que se querem tornar
conformes a Jesus Cristo crucificado, carregando a cruz. É tão pequeno esse
número, tão pequeno, que se o soubéssemos ficaríamos pasmados de dor.
É tão pequeno que não há
apenas um em cada dez mil, como foi revelado a vários santos, - entre outros a
São Simeão Estilita, segundo narra o santo abade Nilo, bem como Santo Efrém,
São Basílio e alguns outros. (35) É tão pequeno que, se Deus quisesse
reuní-los, gritar-lhes-ia, como se outrora pela baca do profeta: Congregamini
unus et unus, reuni-vos de um a um, um desta provícia, outro deste reino...(36).
B) Se alguém quiser...
[15] Si quis vult, se alguém
tiver vontade verdadeira, firme e determinada, não pela natureza, o costume, o
amor próprio, o interesse ou o respeito humano, mas, por uma graça toda
virtuosa do Espírito Santo, que não se dá a todos: non omnibus datum est nosse
myterium(37). O conhecimento do mistério da Cruz, na prática, só é dado a
poucas pessoas. Para um homem subir ao Calvário e aí se deixar pregar na Cruz
com Jesus, em sua própria pátria, é preciso que seja um bravo, um herói, um determinado
elevado em Deus, que despreze o mundo e o inferno, seu corpo e sua vontade
própria; um determinado a deixar tudo, a tudo empreender e a tudo sofrer por
Jesus Cristo.
Sabei, queridos Amigos da
Cruz, que aqueles dentre vós que não têm esta determinação, andam com um pé só,
voam com uma só asa e não são dignos de estar no meio de vós, porque não são
dígnos de ser chamados Amigos da Cruz, que devemos amar, com Jesus Cristo, corde
magno et animo volenti (38). Basta uma meia vontade, neste caso, para por, como
uma ovelha preta, o rebanho a perder. Se em vosso aprisco já existe uma delas,
entrada pela porta má do mundo, em nome de Jesus Cristo crucificado expulsai-a
como a um lobo que estivesse entre os cordeiros!
C) ... Vir após mim
[16] Si quis vult post me
venire, se alguém quiser vir após mim, - que tanto me humilhei e aniquilei, que
me tornei mais semelhante a um verme que a um homem, ego sum vermis et non
homo(39); após mim, que só vim ao mundo para abraçar a Cruz, - ecce venio (40);
para colocá-la no centro de meu coração -im medio cordis (41); para amá-la
desde a minha juventude, hanc amavi a juventute mea; para suspirar por ela
durante a minha vida, quomodo coarctor? (42); para carregá-la com alegria,
preferindo-a a todas as alegrias do céu e da terra, proposito sibi gaudio,
sustinuit crucem (43); e que, enfim, só me contentei quando morri em seu divino
abraço. (44)
2° - Abster-se
“Renuncie a Si Mesmo!”
Longe dos Amigos da Cruz os
orgulhosos e os sensuais!
[17] Se pois, alguém quiser
vir após mim assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como eu, na
pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! abneget semetipsum,
renuncie a si mesmo!
Longe da Companhia dos Amigos
da Cruz os sofredores orgulhosos, os sábios do século, os grandes gênios e os
espíritos fortes, que são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos!
Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruido e colhem apenas o fruto
da vaidade! Longe daqui os devotos orgulhosos e que levam para toda parte o
“quanto a mim”do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” (45), que não podem
suportar que os censurem sem desculpar-se, que os ataquem sem defender-se, que
os rebaixem sem exaltar-se!
Tende bem cuidado para não
admitir em vossa companhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela,
que se queixam de mínima dor, que nunca provaram a crina, o cilício, a
disciplina e, entre as suas devoções em moda, misturam a mais disfarçada e
refinada delicadeza e falta de mortificação.
3° - Sofrer
“Carregue a Sua Cruz!”
A) Sua cruz...
[18] Tollat crucem suam, que
carregue a sua cruz; suam, a dele! Que esse homem, que essa mulher raros, de
ultimis finibus pretium ejus (46) cujo preço toda a terra, de uma extremidade a
outra, não poderia pagar, tome com alegria, abrace com ardor e leve aos ombros,
com coragem, a sua cruz e não a de outro; a cruz que, com a minha sabedoria,
fiz para ele em número, peso e medida; sua cruz, a que, com minhas próprias
mãos, pus, com grande exatidão, suas quatro dimensões, a saber: sua espessura,
seu comprimento, sua largura e sua profundidade (47), - sua cruz que lhe talhei
de uma parte da que carreguei no Calvário, por um efeito da bondade infinita
que tenho para com ele; - sua cruz, que é o maior presente que possa fazer aos
meus eleitos na terra; - sua cruz, composta, em sua espessura, das perdas de
bens, das humilhações, dos desprezos, das dores, das enfermidades e das penas
espirituais que devem, por minha providência, chegar-lhe cada dia, até a morte,
- sua cruz, composta, em seu comprimento, de um certo número de meses ou de
dias em que ele deverá ser aniquilado pela calúnia, estar estendido num leito,
ser forçado a mendigar, e tornar-se presa das tentações, da aridez, do abandono
e de outras penas do espírito; - sua cruz, composta, em sua largura, das
circunstâncias mais duras e mais amargas, sejam elas causadas pelos amigos, os
criados ou os parentes; - sua cruz, enfim, composta, em sua profundidade, pelas
mais ocultas penas com que o afligirei, sem que possa encontrar consolação nas
criaturas que, por minha ordem, voltar-lhe-ão mesmo as costas e juntar-se-ão a
mim para fazê-lo sofrer.
B) “Leve-a!”
[19] “Tollat”, leve-a! E não
a arraste, nem sacuda, nem reduza e, ainda menos, a esconda! isto é:
leve-a bem alto na mão, sem impaciência
nem pesar, sem queixa nem murmuração voluntária, sem partilha e sem alívio
natural, sem envergonhar-se e sem repeito humano.
“Tollat”, que a coloque sobre
a fronte, dizendo com São Paulo: “Mihi absit gloriari nisi in cruce Domini
nostri Jesu Christi! Que eu me abstenha de gloriar-me de outra coisa que não a
Cruz de meu Senhor Jesus Cristo! (48)
Leve-a aos ombros a exemplo
de Jesus Cristo, a fim de que essa cruz se torne para ele a arma de suas
conquistas e o cetro de seu império: (imperium) principatus (ejus) super
humerum ejus (49).
Enfim, coloque-a, pelo amor,
em seu coração, para torná-la numa sarça ardente, que, sem consumir-se queime,
noite e dia, de puro amor de Deus.
C) ...A Cruz!
[20] Crucem, a cruz (50); que
ele a leve, pois nada existe que seja tão necessário, tão útil, tão doce ou tão
glorioso quanto sofrer alguma coisa por Jesus Cristo.
a) Nada tão necessário para
os pecadores!
[21] Com efeito, queridos
Amigos da Cruz, sois todos pecadores; não há um só dentre vós que não mereça o
inferno, e eu mais que ninguém. É preciso que nossos pecados sejam castigados
neste mundo ou no outro; se o forem neste, não o serão no outro.
Se Deus os castigar neste
munto de concerto conosco, sua punição será amorosa: quem há de castigar será a
misericórdia, que reina neste mundo, e não a justiça rigorosa; o castigo será
leve e passageiro, acompanhado de atenuantes e de méritos, seguido de
recompensas no tempo e na eternidade.
[22] Mas se o castigo
necessário dos pecados que cometemos for no tempo reservado para o outro mundo,
a punição caberá à justiça vingadora de Deus, que leva tudo a fogo e sangue!
Castigo espantoso, horrendum, inefável, imcompreensível: quis novit potestatem
irae tuae? (51) Castigo sem misericórdia, judicium sine misericorida (52), sem
piedade, sem alívio, sem méritos, sem limite e sem fim. Sim, sem fim: esse
pecado mortal de um momento, que cometestes; esse pensamento mau e voluntário,
que escapou a vosso conhecimento (53) essa palavra que o vento levou; essa
açãozinha contra a lei de Deus, que durou tão pouco, será punida eternamente,
enquanto Deus for Deus, com os demônios no inferno, sem que o Deus das
vinganças tenha piedade de vossos soluços e de vossas lágrimas, capazes de
fender as pedras! Sofrer para sempre sem mérito, sem misericórdia e sem fim!
[23] Será que pensamos nisto,
queridos Irmãos e Irmãs, quando sofremos alguma pena neste mundo? Como somos
felizes de poder trocar tão vantajosamente uma pena eterna e infrutífera por
outra, passageira e meritória, carregando nossa cruz com paciência! Quantas
dívidas temos a pagar! Quantos pecados temos, cuja expiação, mesmo após amarga
contrição e confissão sincera, será preciso que soframos no purgatório durante
séculos inteiros, porque nos contentamos, neste mundo, de penitências leves
demais! Ah! Paguemso neste mundo de forma amigável, levando bem nossa cruz!
Tudo deverá ser pago rigorosamente no outro, até o último ceitil, mesmo uma
palavra ociosa (54). Se pudéssemos arrebatar ao demônio o livro de morte, onde
anotou os nossos pecados todos e a pena que lhes corresponde, que grande
“debet” verificaríamos, e como nos sentiríamos encantados de sofrer durante
anos inteiros neste mundo, para não sofrer um só dia no outro!
Para os Amigos de Deus!
[24] Não vos ufanais, meus
Amigos da Cruz, de ser amigos de Deus, ou de tal querer-vos? Resolvei, pois,
beber o cálice que é preciso, necesssariamente, beber para se tornar amigo de
Deus. Calicem Domini biberunt et amici Dei facti sunt (55). O bem amado Bejamin
teve o cálice e seus outros irmãos tiveram apenas o frumento (56). O grande
favorito de Jesus Cristo teve o seu Coração, subiu o Calvário e bebeu do cálice
(57). Postetis biberi calicem? (58). É bom, desejar a glória de Deus; mas
desejá-la e pedi-la sem se resolver a tudo sofrer é fazer um pedido louco e
extravagante: necitis quid petatis (59)... Óportet per multas tribulationes
(60): é preciso, oportet, é necessidade, é coisa indispensável; é preciso que
entremos no reino dos céus por meio de muitas cruzes e tribulações.
Para os filhos de Deus!
[25] Gloria-vos, com razão,
de ser filhos de Deus. Gloriai-vos, pois, das chicotadas que esse bom Pai vos
deu e há de dar-vos no futuro, porque Ele chicoteia seus filhos (61). Se não
sois o número de seus filhos bem amados, sois - ó que desgraça, que golpe fulminante!
- sois, como o diz Santo Agostinho, do número dos réprobos. Aquele que não geme
neste mundo, como peregrino e estrangeiro, não se regozijará no outro, como
cidadão do céu, diz o mesmo Santo Agostinho (62). Se Deus não vos enviar, de
tempos a tempos, algumas boas cruzes, é que já não se preocupa convosco, é que
está irado contra vós; olha-vos tão somente como um estrangeiro fóra de sua
casa e de sua proteção, ou como a um filho bastardo, que, não merecendo sua
porção na herança de seu pai, não merece da parte dele nem cuidados nem
correção.
Para os que estudam um Deus
crucificado!
[26] Amigos da Cruz, que
estudais um Deus crucificado, o mistério da cruz é um mistério desconhecido dos
Gentíos, repelido pelos Judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus
católicos; é, porém, o grande mistério que deveis aprender praticamente, na
escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender.
Procurareis em vão, em todas as academias da antiguidade, um filósofo que vô-lo
haja ensinado; consultareis em vão a luz dos sentidos e da razão; não há senão
Jesus Cristo que, por sua graça vitoriosa, vos possa ensinar e fazer saborear
este mistério.
Tornai-vos hábeis, pois,
nesta ciência supereminente, sob a direção de tão grande mestre, e tereis todas
as outras ciências, pois ela as contém a todas soberanamente. É ela a nossa
filosofia natural e sobrenatural, nossa teologia divina e misteriosa, e nossa
pedra filosofal, que muda, pela paciência, os metais mais grosseiros em metais
preciosos, as dores mais agudas em delícias, as pobrezas em riquezas, as
humilhações mais profundas em glórias. Aquele dentre vós que melhor sabe levar
a sua cruz, mesmo que não conheça o A nem o B, é o mais sábio de todos.
Escutai o grande São Paulo,
que ao voltar do terceiro céu, onde conheceu mistérios ocultos aos próprios
Anjos, exclamava não saber e não querer saber senão Jesus Cristo crucificado
(63). Regozijai-vos, pobre idiota, ou pobre mulher sem espírito e sem ciência:
se souberdes sofrer alegremente, sabereis mais que um doutor da Sorbonne que
não soube sofrer tão bem quanto vós...
Para os Membros de Jesus
Cristo!
[27] Sois membros de Jesus
Cristo (64). Que honra! Mas quanta
necessidade de sofrer por causa disto! A cabeça está coroada de espinhos
e os membros estariam coroados de rosas? A cabeça esta escarnecida e coberta de
lama no caminho do Cálvário, e os membros estariam no trono, cobertos de
perfumes? A cabeça não tem um travesseiro para repousar e os membros estariam
delicadamente deitados entre plumas e arminho? Seria monstruosidade inaudita.
Não, não vos enganeis; estes cristãos que vedes de todos os lados, enfeitados
na moda, maravilhosamente delicados, excessivamente educados e circunspectos,
não são verdadeiros discípulos nem verdadeiros membros de Jesus Cristo Crucificado;
faríeis injúria a essa cabeça coroada de espinhos e à verdade do Evangelho se
acreditássemos o contrário. Ah! meu Deus! quantos fantasmas de cristãos se
consideram membros do Salvador e são meus mais traiçoeiros perseguidores,
porque, enquanto fazem com a mão o sinal da cruz, são, de coração, seus
inimigos!
Se sois conduzidos pelo mesmo
espírito, se viveis da mesma vida que Jesus Cristo, vosso Chefe coberto de
espinhos, não espereis senão espinhos, chicotadas, pregos, - numa palavra ,
cruz - porque é necessário que o discípulo seja tratado como o Mestre e o
membro como a cabeça. E se o Chefe vos apresentar, como a Santa Catarina de
Sena, uma cora de espinhos e outra de rosas, escolhei com ela a de espinhos,
sem hesitar, e ponde-a na cabeça, para vos assemelhar em Cristo.
Para os Templos do Espírito
Santo!
[28]Não ignorais que sois os
templos vivos do Espírito Santo (65) e que deveis, como outras tantas pedras
vivas (66), ser colocadas pelo Deus de Amor no edifício da Jerusalém celeste.
Disponde-vos, pois, a ser trabalhados, cortados e cinzelados pelo martelo da
cruz; de outra maneira permanceceríeis como pedras brutas que em nada são
empregadas, que são desprezadas e repelidas para longe. Tende cuidado para não
opor resistência ao martelo que vos bate; prestai atenção ao cinzel que vos
talha e à mão que vos molda! - Talvez o hábil e amoroso arquiteto queira fazer
de vós uma das primeiras pedras de seu edifício eterno e um dos mais belos
retratos de seu reino celeste. Deixai-o fazê-lo, pois. Ele vos amas, sabe o que
faz, tem experiência; todos os seus golpes são hábeis e amorosos, nenhum é
falso, a menos que o inutilizeis pela vossa impaciência.
[29] O Espírito Santo compara
às vezes a cruz a uma peneira, que purifica o grão da palha e das escórias
(67): sem resistir, deixai-vos pois, sacudir e agitar, como o grão na peneira;
estais na peneira do Pai de família e
dentro em pouco estareis em seu celeiro. Outras vezes Ele a compara ao fogo que
tira a ferrugem do ferro pela vivacidade de suas chamas; nosso Deus é um fogo
consumidor (68), que pela cruz, permanece numa alma, a fim de purificá-la, sem
a consumir, como outrora na sarça ardente (69). Outras vezes a cruz é comparada
ao cadinho de uma forja, onde o ouro bom se afirma (70) e o falso desaparece na
fumaça: o bom sofrendo pacientemente a provação do fogo, o falso erguendo-se
como fumaça contra as chamas. É no candinho da tribulação e da tentação que os
verdadeiros amigos da Cruz se purificam pela paciência, enquanto que seus
inimigos desaparecem na fumaça por causa de suas impaciências e murmurações.
É preciso sofrer como os
santos, como Jesus e Maria.
[30]Olhai, meus queridos
Amigos da Cruz, olhai diante de vós uma grande nuvem de testemunhas (71), que
provam sem nada dizer, o que vos digo. Vêde, de passagem, o justo Abel
assassinado por seu irmão; o justo Abraão estrangeiro na terra, o justo Lot
expulso de seu país; o justo Tobias atingido pela cegueira; o justo Jó
empobrecido, humilhado e coberto, dos pés à cabeça, por uma chaga.
[31]Olhai tantos Apóstolos e
Mártires cobertos com a púrpura de seu sangue; tantas Virgens e Confessores
empobrecidos, humilhados, expulsos, desprezados, que com S. Paulo, exclamam:
“Olhai nosso bom Jesus autor e consumador da fé (72) que temos nEle e na sua
Cruz; foi preciso que Ele sofresse a fim de, pela Cruz, entrar em sua glória
(73).
Vêde, ao lado de Jesus
Cristo, um agudo gládio que penetra, até o fundo, no coração terno e inocente
de Maria, que nunca tivera qualquer pecado, original ou atual. Como me pesa não
poder estender-me falando sobre a Paixão de um e de outro, para mostrar que o
que sofremos nada é em comparação do que sofreram!
[32]Depois disto, qual de vós
poderá eximir-se de levar sua cruz? Qual de vós não voará depressa para os
lugares onde sabe que a cruz o espera? Quem não exclamará, com Santo Inácio
Mártir: “Que o fogo, o patíbulo, as feras e todos os tormentos do demônio
desabem sobre mim, para que eu possa gazar de Jesus Cristo!?”
... ou como réprobos.
[34]Mas, enfim, se não
quereis sofrer pacientemente e, como os predestinados, carregar com resignação
a vossa cruz, levá-la-eis com murmurações e impaciência, como os réprobos.
Sereis semelhantes aos que arrastavam, gemendo, a Arca da Aliança (74).
Imitareis Simão de Cirene, que pôs, de má vontade, a mão na Cruz de Jesus
Cristo (75) e que murmurava enquanto a levava. Acontecer-vos-á, finalmente, o
que aconteceu ao mau ladrão, que, do alto da sua cruz, caiu no fundo do abismo.
Não, não, esta terra maldita
em que vivemos não torna ninguém bem-aventurado; não se vê bem neste país de trevas; nunca se está em
perfeita tranqüilidade neste mar tempestuoso; nunca se vive sem combates neste
lugar de tentação e neste campo de batalhas; nunca se vive sem pontadas nesta
terra coberta de espinhos. É preciso que os predestinados e os réprobos levem a
sua cruz, quer seja de boa ou má vontade. Guardai este quatro versos:
Escolhe uma só cruz das que
vês no Calvário.
Bem saibas escolher!
porquanto é necessário
Que sofras como santo, ou
como penitente,
Ou como condenado, eterno
descontente!
Quer isto dizer que, se não
quiserdes sofrer com alegria, como Jesus Cristo, ou com paciência, como o bom
ladrão, tereis, mesmo sem o querer, de sofrer como o mau ladrão. Será preciso
que bebais, até as fezes, o mais amargo cálice, sem nenhuma consolação da
graça, e que carregueis todo o peso da vossa cruz, sem nenhum auxílio poderoso
de Jesus Crito. Será preciso mesmo que leveis o peso fatal que o demônio
acrescentará à vossa cruz, pela impaciência em que vos lançará, e que, depois de
haverdes sido desgraçado na terra, como o mau ladrão, vades encontrá-lo nas
chamas.
b) Nada tão útil e tão doce
[34] Se, ao contrário, porém,
sofreis como o deveis, a cruz se tornará em jugo suavíssimo (76), que Jesus
Cristo carregará convosco; tornar-se-á as duas asas da alma que a levam para o
céu (77); tornar-se-á o mastro de navio que vos fará chegar ao porto da
salvação feliz e facilmente.
Levai vossa cruz com
paciência e, por esta cruz bem levada, sereis iluminados em vossas trevas
espirituais; pois o que não sofre pela tentação nada sabe (78).
Levai vossa cruz com alegria
e sereis abrasados pelo amor divino, porque
Ninguém pode viver sem dor
No puro amor do Salvador (79)
Só se colhem rosas entre
espinhos. Só a cruz alimenta o amor de Deus, como a madeira alimenta o fogo
(80). Lembrai-vos, pois, desta bela máxima do livro da “Imitação”: Quanto mais
vos fizerdes violência, sofrendo pacientemente, tanto mais progredireis (81) no
amor divino. Nada de grande espereis dessas almas delicadas e preguiçosas que
recusam a cruz quando delas se aproxima, e que só com discreção procuram uma
cruz. Trate-se de terra não cultivada, que só dará espinhos, porque não foi
sulcada, nem batida, nem removida por um lavrador experiente; trata-se de água
estagnada, que não serve para lavar nem beber.
Levai a vossa cruz
alegremente e nela encontrareis uma força vitoriosa, a que nenhum dos vossos
inimigos poderá resistir (82) e experimentareis uma sublime doçura à qual nada
se pode comparar. Sim, meus Irmãos, sabei que o verdadeiro paraíso terreste
consiste em sofrer alguma coisa por Jesus Cristo. Interrogai todos os santos:
dir-vos-ão que nunca provaram festim mais delicioso para a alma do que quando
sofreram os maiores tormentos. Que todos os tormentos do demônio desabem sobre
mim! dizia Santo Inácio Mártir. Ou sofrer, ou morrer, dizia Santa Madalena de
Pazzi. Sofrer e ser desprezado por Ti, dizia o bem-aventurado João da Cruz
(83); e muitos outros usaram de expressões semelhantes, como se lê em suas
vidas (84).
Crêde-me, por Deus, meus
caros Irmãos: Quando se sofre alegremente por Deus, diz o Espírito Santo, é
causa de toda sorte de alegrias (85) para toda espécie de pessoas. A alegria da
cruz é maior que a de um pobre a quem se cumulasse de todas as riquezas; do que
a de um camponês que fosse elevado ao trono; do que a de um negociante que
lucrasse milhões; que a dos generais após a vitória; que a dos cativos
libertados de seus ferros. Imaginai, finalmente, todas as maiores alegrias
deste mundo: a de uma pessoa crucificada, que sabe sofrer bem, contém-nas todas
e a todas ultrapassa.
c) Nada tão glorioso
[35] Regozijai-vos, pois, e
estremecei de alegria quando Deus vos der por partilha alguma boa cruz, pois o
que há de maior, no Céu e no próprio Deus, desce sobre vós sem que o percebais.
Que grande presente de Deus é a Cruz! Se o compreendesseis, faríeis celebrar
Missas, rezaríeis novenas diante dos túmulos dos santos e empreenderíeis longas
viagens, como os santos o fizeram, para obter do Céu este divino presente.
[36] O mundo a chama de
loucura, infâmia, tolice, indiscreção, imprudência. Deixai falar a estes cegos:
sua cegueira, que os faz olhar a cruz como homens, e toda deformada, constitui
uma parte de nossa glória. Todas as vezes que nos proporcionam algumas cruzes,
pelo seu desprezo e pelas suas perseguições, estão a nos dar jóias, a
colocar-nos em um trono e a coroar-nos de louros.
[37]Que digo? Nem mesmo todas
as riquezas, honras, cetros e coroas brilhantes dos potentados e dos
imperadores podem ser comparadas à glória da cruz, diz S. João Crisóstomo (86);
ela ultrapassa a glória de ser apóstolo e escritor sacro. “Deixaria de bom
grado o Céu, se pudesse escolher, -diz este santo homem iluminado pelo Espírito
Santo, - para sofrer pelo Deus do Céu (87). Preferiria os cárceres e as prisões
aos tronos do empíreo; não invejo tanto a glória dos Serafins quanto as maiores
cruzes. Estimo menos o dom dos milagres, pelo qual se ordena aos demônios, se
abala os elementos, faz-se parar o sol e dá-se vida aos mortos, do que estimo a
honra dos sofrimentos. S. Pedro e S. Paulo são mais gloriosos em seus cárceres,
com ferros aos pés, do que por se elevar ao terceiro céu e receber as chaves do
paraíso”.
[38] Com efeito, não foi a
Cruz que deu a Jesus Cristo “um nome acima de todo nome, a fim de que ao nome
de Jesus todo joelho se dobre, no céu, na terra e nos infernos?” (88) A glória
de uma pessoa que sofre bem é tão grande, que no céu, os anjos, os homens e o
próprio Deus do Céu a contemplam com alegria, como ao mais glorioso dos espetáculos,
e se os santos pudessem desejar alguma coisa, seria de voltar à terra para
carregar algumas cruzes.
[39] Se esta glória, porém, é
tão grande mesmo na terra, qual será então a do céu? Quem explicará e
compreenderá jamais o peso eterno de glória que resultará de um só momento em
que levarmos bem a cruz? (89) Quem compreenderá a glória que teremos no Céu por
causa de um ano e, às vezes, de uma vida inteira de cruzes e de dores?
[40] Seguramente, meus caros
Amigos da Cruz, o céu vos prepara para algo de grande, disse-vos um grande
santo, já que o Espírito Santo vos une tão estreitamente a uma coisa de que
todos fogem com tanto cuidado. Seguramente Deus quer fazer tantos santos e
santas quantos são os Amigos da Cruz, se fordes fiéis à vossa vocação, se carregardes
a vossa cruz como deveis e como Jesus Cristo a carregou.
4º - Nas Pegadas de Jesus Cristo: ... “E Me Siga!”
É preciso sofrer á maneira de
Jesus Cristo.
[41] Não é, porém, suficiente
sofrer: o demônio e o mundo tem, seus mártires; é preciso sofrer e levar a cruz
nas pegadas de Jesus Cristo: - sequatur me! que me siga! - ou seja, da maneira
que Ele a carregou. E eis, para isto, as regras que deveis seguir:
As quatorze regras
Não procurar cruzes
propositadamente ou pela própria culpa.
[42] 1º: Não procureis cruzes
propositadamente ou por vossa culpa; não se deve fazer o mal para que dele
resulte um bem (90); não se deve, sem inspiração especial, fazer as coisas de
maneira má, para atrair sobre si mesmo o desprezo dos homens. É antes preciso imitar
Jesus Cristo, de quem se disse fez bem todas as coisas (91), não por amor
próprio ou por vaidade, mas para agradar a Deus e conquistar a alma do próximo.
E se executardes os vossos trabalhos o
melhor que puderdes, não vos hão de faltar contradições, perseguições, nem
desprezos, que a Divina Providência vos enviará contra vossa vontade e sem vos
consultar.
Consultar o bem do próximo.
[43] 2º: Se praticais algum
ato indiferente, mas do qual o próximo se escandaliza, ainda que fora de
propósito, abstende-vos dele, por caridade, para que cesse o escândalo dos
pequenos; o ato heróico de caridade que praticardes nessa ocasião vale
infinitamente mais do que aquilo que fazíeis ou pretendíeis fazer.
Se, entretanto, o bem que
fazeis é necessário ou útil ao próximo, e escandalizar, sem razão, algum
fariseu ou mau espírito, consultai uma pessoa prudente, para saber se o que
fazeis é necessário e muito útil ao bem do próximo; e, se ela assim o julgar,
continuai e deixai falar, contanto que vos deixem agir, e respondei, em tais
ocasiões, o que Nosso Senhor respondeu a alguns de seus discípulos que vieram
dizer-lhe que os Fariseus se haviam escandalizado com as suas palavras e ações:
“Deixai-os falar. São cegos”. (92).
Admirar, sem pretender
atingí-la, a sublime virtude dos santos.
[44] 3º: Apesar de alguns
santos e pessoas importantes terem pedido, procurado e, por meio de ações
ridículas, atraído sobre si mesmos, cruzes, desprezos e humilhações, adoremos e
admiremos apenas a ação do Espírito Santo sobre suas almas e humilhemo-nos
diante de tão sublime virtude, sem ousar voar tão alto, um vez que, comparados
a essas rápidas águias e rugidores leões, não passamos de criaturas sem coragem
e sem força de vontade. (93)
Pedir a Deus a sabedoria da
Cruz.
[45] 4º: Podeis, entretanto,
e mesmo o deveis, pedir a sabedoria da cruz, que é uma ciência saborosa e
experimental da verdade, que nos faz ver, à luz da fé, os mais ocultos
mistérios, entre os quais o da cruz, e isto só se obtem mediante grandes
trabalhos, profundas humilhações e orações fervorosas. Se precisardes do
espírito principal (94), que nos faz levar corajosamente as mais pesadas
cruzes; do espírito bom (95) e manso, que nos faz saborear, na parte superior
da alma, as mais repugnantes amarguras; do espírito são e reto (96), que
procura só a Deus; da ciência da cruz, que encerra todas as coisas; numa
palavra, do tesouro infinito cujo bom emprego torna a alma participante da
amizade de Deus (97), pedi a sabedoria; pedi-a incessante e fortemente, sem
hesitar (98), sem receio de não a obter, e ela vos será dada, infalivelmente, e
em seguida vereis claramente, por experiência própria, como pode ser possível
desejar, procurar e saborear a cruz.
Humilhar-se das próprias
faltas, sem se perturbar.
[46] 5º: Quando, por ignorância
ou mesmo por vossa culpa, cometerdes algum erro de que resulte para vós alguma
cruz, humilhai-vos imediatamente diante de vós mesmos, sob a mão poderosa de
Deus (99), sem vos perturbar voluntariamente, dizendo: “Eis, Senhor, uma peça
que me pregou meu ofício”! E se houver pecado na falta que cometestes, aceitai
a humilhação de vosso orgulho. Algumas vezes, e até muitas veses, Deus permite
que seus maiores servos, os mais elevados em graça, cometam as faltas mais
humilhantes, a fim de humilhá-los aos seus próprios olhos e aos olhos dos
homens, a fim de tirar-lhes a vista e o pensamento orgulhoso das graças que
lhes dá e do bem que fazem, a fim de que, segundo a palavra do Espírito Santo,
nenhuma carne se glorifique diante de Deus (100).
Deus nos humilha para
purificar-nos
[47] 6º: Ficai bem
persuadidos de que tudo o que existe em nós está inteiramente corrompido (101)
pelo pecado de Adão e pelos pecados atuais; e não apenas os sentidos do corpo,
mas todas as potências da alma; e que, logo que o nosso espírito corrompido
olha, refletida e complacentemente, algum dom de Deus em nós, esse dom, ação ou
graça fica todo poluído e corrompido e Deus dele desvia os seus olhos divinos.
Se os olhares e os pensamentos do espírito do homem estragam assim as melhores
ações e os mais divinos dons, que diremos dos atos da própria vontade, que são
ainda mais corrompidos que os do espírito? (102)
Não é de espantar, depois
disto, que Deus sinta prazer em esconder os seus no segredo de sua face (103),
para que não sejam manchados pelos olhares dos homens e pelos seus próprios
conhecimentos. E, para escondê-los assim, o que não faz e não permite este Deus
ciumento?! Quantas humilhações lhes proporciona!
Em quantas faltas os deixa
cair! De que tentações permite sejam atacados, como S. Paulo! (104) Em que
incertezas, trevas e perplexidade os deixa! Ah! como Deus é admirável nos seus
santos e nos caminho pelos quais os conduz à humildade e à santidade!
Evitar nas cruzes, o perigo
do orgulho.
[48] 7º: Procurai bem,
portanto, evitar crer, como os devotos orgulhosos e cheios de si, que vossas
cruzes são grandes, que são provas de vossa fidelidade e testemunhas de um
singular amor de Deus para convosco. Esta armadilha do orgulho espiritual é
muito sutil e delicada, mas cheia de veneno. Deveis crer: 1) que vosso orgulho
e moleza vos levam a considerar palhas como se fossem traves; picadas como se
fossem chagas, um rato como se fosse um elefante; e uma palavrinha no ar, - um
nada, na verdade, - como se fosse uma injúria atroz e um cruel abandono; 2) que
as cruzes que Deus vos envia são antes castigos amorosos de vossos pecados, - e
de fato o são, - que sinais de especial benevolência; 3) que, seja qual for a
cruz que Ele vos enviar, ainda assim vos poupa infinitamente, em virtude do número
e da enormidade dos vossos crimes, que só deveis considerar à luz da santidade
de Deus, que nada de impuro tolera e que atacastes; à luz de um Deus moribundo
e aniquilado de dor, por causa de vosso pecado, e à luz de um inferno sem fim,
que merecestes mil vezes e talvez cem mil; 4) que na paciência com que sofreis
há muito mais de humano e natural do que o julgais: provam-no as pequenas
mitigações; as procuras secretas de consolação; as aberturas de coração, - tão
naturais, - a vossos amigos e, talvez, ao vosso diretor; as desculpas tão finas
e prontas; as queixas, ou melhor, as maledicências tão bem urdidas e tão
caridosamente expressas, contra os que vos fizeram algum mal; as referências e
complacências delicadas para com vossos males; a crença de Lúcifer de que sois
algo de grande (105), etc. Nunca terminaria se me fosse necessário descrever as
voltas e reviravoltas da natureza, mesmo nos sofrimentos.
Tirar maior proveito dos
pequenos sofrimentos que dos grandes.
[49] 8º: Tirai proveito dos
pequenos sofrimentos e mesmo mais que dos grandes. Deus não olha tanto o
sofrimento quanto a maneira por que se sofre. Sofrer muito e mal é sofrer como
condenado; sofrer muito e corajosamente, mas por uma causa má, é sofrer como
mártir do demônio; sofrer pouco ou muito, mas sofrer por Deus, é sofrer como
santo.
Se é verdade que se pode
escolher as cruzes, isto é mais certo quanto às cruzes pequenas e escondidas
quando nos vêm paralelamente às grandes e visíveis (106). O orgulho da natureza
pode pedir, procurar e mesmo escolher e abraçar as cruzes grandes e visíveis;
mas escolher e levar bem alegremente as cruzes pequenas e ocultas só pode ser o
efeito de uma grande graça e de uma grande fidelidade a Deus. Fazei, pois, como
o comerciante com o seu negócio: tirai proveito de tudo, não deixeis perder-se
a mínima parcela da verdadeira Cruz, mesmo que seja uma picada de mosca ou de
alfinete, a indelicadeza de um vizinho, uma injúria por descuido, a perda de um
níquel, uma perturbaçãozinha da alma, um leve cansaço do corpo, uma dorzinha
num dos membros, etc. Tirai proveito de tudo, como o merceeiro em sua
mercearia, e, assim como ele enriquece em dinheiro, juntando moeda por moeda em
seu cofre, breve estareis ricos em
Deus. Ao menor contratempo que sobrevier, dizei: “Deus seja
bendito! - (107) Meu Deus, eu Vos agradeço”, depois escondei na memória de
Deus, que é vosso cofre, a cruz que acabais de ganhar, e só vos lembreis dela
para dizer: Obrigado! ou Misericórdia!
Amar a cruz, não com amor
sensível, mas racional e sobrenatural.
[50] 9º: Quando vos dizemos
para amar a cruz, não falamos em amor sensível, que é impossível à natureza.
Distingui bem, portanto, estes três amores: o amor sensível, o amor racional, o
amor fiel e supremo; ou, em outras palavras: o amor da parte inferior, que é a
carne; o amor da parte superior, que é a razão; e o amor da parte suprema, ou
cimo da alma, que é a inteligência esclarecida pela fé.
[51] Deus não vos pede que
ameis a cruz com a vontade da carne. Sendo ela inteiramente corrompida e criminosa,
tudo o que dela se origina é corrompido e ela não pode, por si mesma, estar
sujeita à vontade de Deus e à sua lei crucificadora. Eis por que, ao falar dela
no Horto da Oliveiras, Nosso Senhor exclama: “Meu Pai, seja feita a Vossa
vontade e não a minha!” (108) Se a parte inferior do homem em Jesus Cristo , ainda
que santa, não pôde amar a cruz sem desfalecimento, com mais forte razão a
nossa, que é toda corrompida, há de a repelir. Podemos, é verdade,
experimentar, por vezes, até mesmo alegria sensível pelo que sofremos, como
aconteceu a vários santos; mas essa alegria não vem da carne, ainda que nela
esteja; vem apenas da parte superior, que se acha tão cheia da divina alegria
do Espírito Santo, que a faz estender-se até à parte inferior, de tal sorte que
em tal ocasião até mesmo a pessoa mais crucificada pode dizer: Meu coração e
minha carne estremeceram de alegria no Deus vivo! (109)
[52] Há outra espécie de
amor, que denomino racional, e que se acha na parte superior, que é a razão.
Este amor é todo espiritual e, como nasce do conhecimento da felicidade de
sofrer por Deus, é perceptível e mesmo percebido pela alma, rejubilando-a
interiormente e fortificando-a. Este amor racional e percebido, porém, -apesar
de bom, e de muito bom, - nem sempre é necessário para que se sofra alegre e
divinamente.
[53] É porque há outro amor,
do cimo ou ápice da alma, dizem os mestres da vida espiritual, - ou da
inteligência, afirmam os filósofos, - pelo qual, sem experimentar qualquer
alegria dos sentidos, sem perceber nenhum prazer racional na alma, é possível
amar e saborear, pela visão da fé pura, a cruz que carregamos, muito embora
tudo esteja em guerra e estado de alarme na parte inferior, que geme, se
queixa, chora e procura lenitivo, de tal sorte que se possa dizer, como Jesus
Cristo: “Meu Pai, seja feita a Vossa vontade e não a minha!” ou, com a
Santíssima Virgem: “Eis aqui a escrava do Senhor. Faça-se em mim segundo a
Vossa palavra!” É com um desses dois amores da parte seperior que devemos amar
e aceitar a cruz.
Sofrer toda sorte de cruzes,
sem excepção e sem escolha.
[54] 10º: Decidi-vos,
queridos Amigos da Cruz, a sofrer toda sorte de cruzes, sem excepção e sem
escolha: toda pobreza, toda injustiça, toda humilhação, toda contradição, toda
calúnia, toda aridez, todo abandono, toda pena interior ou exterior, dizendo
sempre: Meu coração está preparado, meu Deus, meu coração está preparado (110).
Preparai-vos, pois, para ser abandonados pelos homens, pelos anjos e pelo
próprio Deus; para ser perseguidos, invejados, traídos, cluniados,
desacreditados e abandonados por todos; para sofrer fome, sêde, mendicidade,
nudez, exílio, prisão, tortura e todos os suplícios, ainda que não os tenhais
merecido pelos crimes que vos impuserem (111). Imaginai enfim que, depois de ter
perdido vossos bens e vossa honra, de haver sido lançados para fora de vossa
casa, como Jó e Santa Isabel, rainha da Hungria, vos joguem na lama, como
àquela santa, e vos arrastem por sobre o estrume, como a Jó, todo purulento e
coberto de úlceras, sem vos darem ataduras para vossas chagas ou, para
comerdes, um pedaço de pão que não recusariam a um cavalo ou a um cão; e que,
além desses males extremos, Deus vos deixe à mercê de todas as tentações dos
demônios, sem derramar sobre vossa alma a mínima consolação sensível.
Crêde firmemente que esse é o
ponto supremo da glória divina e a felicidade perfeita de um verdadeiro e
perfeito Amigo da Cruz (112).
Os quatro estimulantes do bom
sofrimento.
[55] 11º: Para ajudar-vos a
sofrer bem, tomai o santo hábito de olhar quatro coisas:
1º) O olhar de Deus
Primeiramente o olhar de
Deus, que, como um grande rei, do alto de uma torre, olha complacentemente e
louvando-lhe a coragem, o seu soldado que peleja.
Que olhará Deus na terra? Os
reis e imperadores em seus tronos? Muitas vezes Ele os contempla com desprezo.
As grandes vitórias dos exércitos do Estado? As pedras preciosas? Numa palavra:
as coisas que são grandes aos olhos dos homens? O que é grande aos olhos dos
homens é abominação diante de Deus (113) Que olhará Ele então com prazer e
complacência e de que pedirá notícias aos anjos e aos próprios demônios? Um
homem que, por Deus, se bate com a sorte, o mundo, o inferno e ele próprio, um
homem que carrega alegremente a sua cruz. Não viste na terra uma grande maravilha
que todo o céu contempla com admiração?, disse o Senhor a Satanás: “Não viste
meu servo Jó”(114), que sofre por mim?
2º) A mão de Deus
[56] Em segundo lugar,
considerai a mão deste poderoso Senhor, que permite todo o mal que da natureza
nos advém, desde o maior até o menor; a mão que colocou um exército de cem mil
homens no campo de batalha (115) e faz cair as folhas das árvores e os cabelos
de vossa cabeça (116); a mão que, havendo rudemente atingido Jó, vos toca
docemente pelo pouco sofrimento que vos envia. Com essa mão Ele formou o dia e
a noite, o sol e as trevas, o bem e o mal; permitiu os pecados que se cometem e
que vos melindram; não lhes fez a malícia, porém lhes permitiu a ação.
Assim, quando virdes um Sémei
injuriar-vos e apedrejar-vos, como ao rei Davi, (117) dizei a vós mesmos: “Não
nos vinguemos. Deixemo-lo, porque o Senhor lhe ordenou de agir assim. Sei que
mereci toda sorte de utrajes e é justo que Deus me castigue. Parai, braços
meus: Parai, língua minha. Não ataqueis. Nada digais. Este homem ou esta mulher
me injuriam por palavras ou por obras; são embaixadores de Deus, que vêm de sua
misericórdia, para exercer vingança amistosa. Não irritemos sua justiça
usurpando os direitos de sua vingança; não desprezemos a sua misericórdia resistindo
às suas amorosas chicotadas, para que ela não nos reconduza, por vingança, à
pura justiça da eternidade.”
Olhai uma das mãos de Deus,
que, onipotente e infinitamente prudente, vos sustenta, enquanto a outra vos
atinge; com uma das mãos Ele mortifica e com a outra vivifica; rebaixa e
exalta, e, com seus dois braços, doce e fortemente, alcança, de um polo ao
outro, a vossa vida (118); docemente, não permitindo que sejais tentados e
provocados acima de vossas forças: - fortemente, secundando-vos com graça
poderosa e correspondente à violência e duração da tentação e da aflição;
fortemente, ainda uma vez, tornando-se Ele próprio, segundo o diz pelo espírito
de sua Santa Igreja, “vosso apoio à borda do precipício perto do qual vos
encontrais, vosso companheiro no caminho onde vos perdeis, vossa sombra no
calor que vos caustica, vossa vestimenta na chuva que vos molha e no frio que
vos enregela; vossa carruagem na fadiga que vos aniquila, vosso socorro na
adversidade que vos visita, vosso bastão nos caminhos escorregadios e vosso
porto no meio das tempestades que vos ameaçam de ruína e naufrágio”(119).
3º) As chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado
[57] Em terceiro lugar, olhai
as chagas e as dores de Jesus Cristo Crucificado. Ele mesmo vô-lo diz: “Ó vós
que passais pelo caminho espinhoso e crucificado por que passei, olhai e vêde:
olhai com os próprios olhos do vosso corpo e vêde, com os olhos de vossa
contemplação, se vossa pobreza, vossa nudez, vosso desprezo, vossas dores,
vossos abandonos são semelhantes aos meus; olhai-me, a mim que sou inocente, e
queixai-vos, vós que sois culpados!” (120).
O Espírito Santo nos ordena,
pela boca dos Apóstolos, esta mesma contemplação de Jesus Crucificado (121);
ordena que nos armemos com este pensamento(122) mais penetrante e terrível para
todos os nossos inimigos que todas as outras armas. Quando fordes atacados pela
pobreza, pela abjeção, pela dor, pela tentação e pelas cruzes, armai-vos com um
escudo, uma couraça, um capacete e uma espada de dois gumes (123), a saber: o
pensamento de Jesus Crucificado. Eis a solução de toda dificuldade e a vitória
sobre qualquer inimigo.
4º) Ao alto, o céu; em baixo o inferno.
[58] Em quarto lugar olhai,
ao alto, a bela coroa que vos espera no céu, se carregardes bem vossa cruz. Foi
esta recompensa que sustentou os patriarcas e os profetas em sua fé e nas
perseguições; que animou os Apóstolos e os Mártires em seus trabalhos e
tormentos. Preferimos - diziam os Patriarcas, com Moisés - sofrer aflições com
o povo de Deus, para ser feliz com Ele eternamente, que gozar de um prazer
criminoso por um só momento (124). Sofremos grandes perseguições por causa da
recompensa (125), diziam os profetas com Davi.
Somos como vítimas destinadas
à morte, como espetáculo para o mundo, os anjos e os homens pelos nossos
sofrimentos, como a escória e o anátema do mundo (126), diziam os Apóstolos e
os Mártires com São Paulo, por causa do peso imenso da Glória eterna que este
momento de breve sofrimento produz em nós (127).
Olhemos sobre nossas cabeças
os anjos que nos dizem, em alta vos: “Tende cuidado para não perderdes a coroa
marcada pela cruz que vos é dada, se a levardes bem. Se não a carregardes bem,
outro o fará e vos arrebatará vossa coroa (128). Combatei fortemente, sofrendo
com paciência, dizem-nos todos os santos, e entrareis no reino eterno (129)”.
Ouçamos enfim Jesus Cristo, que nos diz: “Só darei minha recompensa àquele que
sofrer e vencer pela paciência (130)”.
Olhamos embaixo o lugar que
merecemos e que nos espera no inferno com o mau ladrão e os réprobos, se, como
eles, sofremos com murmurações, despeito e vingança. Exclamemos com Santo
Agostinho: “Queimai, Senhor, cortai, talhai e retalhai neste mundo para
castigar meus pecados, contanto que os perdoeis na eternidade”!
Nunca se queixar da
criaturas.
[59] 12º: Nunca vos queixeis
voluntariamente e entre murmurações, das criaturas de que Deus se serve para
vos aflingir. Distingui, para tanto, três espécies de queixas nos sofrimentos.
- A primeira é involuntária e
natural: é a do corpo que geme, suspira, se queixa, chora e se lamenta. Quando
a alma, como já disse, está resignada com a vontade de Deus, em sua parte
superior, não há nenhum pecado.
- A segunda é razoável; é
quando alguém se queixa e descobre seu mal aos que podem e devem tratá-lo, como
um superior ou o médico. Esta queixa pode ser imperfeita, quando for muito
insistente; mas não é pecado.
- A terceira é criminosa: é
quando alguém se queixa do próximo para se isentar do mal que ele nos faz
sofrer, ou para se vingar; ou quando alguém se queixa da dor que sofre,
consetindo nessa queixa e juntado a ela a impaciência e a murmuração.
Receber sempre a cruz com
reconhecimento.
[60] 13º: Nunca recebais
nenhuma cruz sem beijá-la humildemente e com reconhecimento; e quando Deus,
todo bondade, vos houver favorecido com alguma cruz um pouco considerável,
agradecei-lhe de maneira especial e fazei-o agradecer por outros, a exemplo
daquela pobre mulher, que, tendo perdido todos os seus bens em virtude de um
processo injusto que lhe moveram, fez celebrar imediatamente uma Missa, com
o dinheiro que lhe restava, a fim de
agradecer a Deus a ventura que lhe era concedida (131).
Carregar suas cruzes
voluntárias.
[61] 14º: Se quereis
tornar-vos dignos de receber as cruzes que vos hão de vir sem vossa participação
e que são as melhores, carregai outras voluntárias, seguindo os conselhos de um
bom diretor.
Por exemplo: Tendes em casa
algum móvel inútil pelo qual tendes afeição? Dai-o aos pobres, dizendo:
quererias o supérfluo quando Jesus é tão pobre?
Tendes horror a algum
alimento? A algum ato de virtude? A algum mau odor? Provai-o, praticai-o,
aspirai-o. Vencei-vos.
Amais alguém ou algum objeto
um pouco terna e insistentemente demais? Ausentai-vos, privai-vos, afastai-vos
do que vos lisonjeia.
Tendes uma natureza muito
inclinada a ver? A agir? A aparecer? A ir a algum lugar? Parai, calai,
escondei-vos, desviai os olhos.
Odiais naturalmente algum
objeto? Alguma pessoa? Procurai-a frequentemente. Dominai-vos.
[62] Se sois verdadeiramente
Amigos da Cruz, o amor, que é sempre industrioso, vos fará assim encotrar mil
pequenas cruzes, com que vos enriqueceis insensívelmente, sem temor da vaidade,
que se mistura tão frequentemente à paciência com que suportamos as cruzes
muito visíveis; e porque fostes assim fiéis em pouca coisa, o Senhor vos
estabelecerá em muito (132), como o prometeu; isto é, em muitas cruzes que vos
enviará, em muita glória que vos preparará (133) ...
Cântico (134)
O Triunfo da Cruz (135)
I
É a Cruz, sobre a terra,
mistério profundíssimo, que não se conhece sem muitas luzes. Para compreendê-lo
é necessário um espírito elevado. Entretanto, é preciso entendê-la para que nos
possamos salvar.
II
A natureza a abomina, a razão a combate; o sábio a ignora e o demônio a aniquila. Muitas vezes o próprio devoto não a tem no coração e, embora diga que a ama, no fundo é um mentiroso.
A natureza a abomina, a razão a combate; o sábio a ignora e o demônio a aniquila. Muitas vezes o próprio devoto não a tem no coração e, embora diga que a ama, no fundo é um mentiroso.
III
A cruz é necessária. É
preciso sofrer sempre: ou subir o Calvário ou perecer eternamente. E Santo
Agostinho exclama que somos réprobos se Deus não nos castiga e nos prova.
IV
Vai-se para a Pátria pelo
caminho das cruzes, que é o caminho da vida e o caminho dos reis; toda pedra é
talhada proporcionalmente para ser colocada na Santa Sião.
V
De que servirá a vitória ao
maior conquistador, se não tiver a glória de vencer-se sofrendo, se não tiver
por modelo Jesus morto na Cruz, se, como um infiel, o lenho repelir?
VI
Jesus Cristo por ela
acorrentou o inferno, aniquilou o rebelde e conquistou o universo; e Ela a dá
como arma aos seus bons servidores; ela encanta ou desarma as mãos e os
corações.
VII
Por este sinal vencerás,
disse Ele a Constantino. Toda vitória insigne se encontra nela. Lêde, na
história, seus efeitos maravilhosos, suas vitórias estupendas na terra e nos
céus.
VIII
Embora contra os sentidos e a
natureza, a política e a razão, a verdade nos assegura que a cruz é um grande
dom. É nesta princesa que encontramos, em verdade, graça, sabedoria e
divindade.
IX
Deus não pôde defender-se
contra sua rara beleza. A Cruz o fez baixar à nossa humanidade. Ao vir ao mundo
Ele disse: “Sim, quero-a, Senhor. Boa Cruz, coloco-vos bem dentro do coração”.
X
Pareceu-lhe tão bela que nela
pôs a sua honra, tornando-a a sua eterna companheira e a espôsa de seu Coração.
Desde a mais terna infância seu Coração suspirava unicamente pela presença da
cruz que amava.
XI
Desde a juventude, ansioso a
procurou. De ternura e de amor, em seus braços morreu. “Desejo um batismo”,
exclamou Ele um dia: “a Cruz querida que amo, o objeto de meu amor!”
XII
Chamou a São Pedro Satanás
escandaloso, quando ele tentou desviar Seus olhos da Cruz aqui na terra. Sua
Cruz é adorável, sua mãe não o é. Ó grandeza inefável, que a terra desconhece!
XIII
Esta cruz, dispersa por
tantos lugares da terra, será ressuscitada e transportada para os Céus. A cruz,
sobre uma nuvem cheia de brilho rutilante, julgará, por sua visão, os vivos e
os mortos.
XIV
Clamará vingança contra seus
inimigos, alegria e indulgência para todos os seus amigos. Dará glória a todos
os bem-aventurados e cantará vitória na terra e nos céus.
XV
Durante sua vida os santos só
procuraram a cruz, seu grande desejo e sua escolha única. E, não contentes de
ter as cruzes que lhes dava o céu, a outras, inteiramente novas, cada um se
condenava.
XVI
Para São Pedro, as cadeias
constituíam honra maior do que ser o vigário de Cristo na terra. “Ó boa Cruz”,
exclamava, cheio de fé, Santo André: “Que eu morra em ti, para que me dês a
vida!”
XVII
E vêde, São Paulo esquecia
seu grande êxtase para se glorificar tão somente na cruz. Sentia-se mais
honrado em seus cárceres horrendos que no êxtase admirável que o arrebatou aos
céus.
XVIII
Sem a cruz a alma se torna
lenta, mole, covarde e sem coração. A cruz a torna fervorosa e cheia de vigor.
Permanecemos na ignorância quando nada
sofremos. Temos inteligência quando sofremos bem.
XIX
Uma alma sem provações não
tem grande valor. É a alma nova ainda, que nada aprendeu. Ah! que doçura
suprema goza o aflito que se rejubila com sua pena e dela não é aliviado!
XX
É pela Cruz que se dá a
bênção, é por ela que Deus nos perdoa e concede remissão. Ele quer que todas as
coisas tragam este selo, sem o qual nada lhe parece belo.
XXI
Colocada a cruz em algum
lugar, torna-se sagrado o profano e desaparecem as manchas, porque Deus delas
se apodera. Ele quer a Cruz em nossa fronte e em nosso coração, antes de todos
os atos, para que sejamos vencedores.
XXII
Ela é nossa proteção,
segurança, perfeição e única esperança. É tão preciosa que uma alma que já está
no céu voltaria alegremente à terra para sofrer.
XXIII
Tem este sinal tantos
encantos, que no altar o sacerdote não se vale de outras armas para atrair Deus
lá do céu. Faz sobre a hóstia vários sinais da Cruz e, por esses sinais de
vida, dita-lhe suas leis.
XXIV
Por este sinal adorável
prepara-lhe um perfume cujo odor agradável nada tem de comum; é o incenso que
lhe dá uma vez consagrado, e é com esta coroa que desejaria ser ornado.
XXV
A Eterna Sabedoria procura,
ainda hoje, um coração bem fiel, digno deste presente. Quer um verdadeiro
sábio, que goste apenas de sofrer e, com coragem, leve a sua cruz até morrer.
XXVI
Devo calar-me, ó Cruz,
rebaixo-te ao falar. Sou um temerário e um insolente; já que te recebi de
coração constrangido e não te conheci, perdoa meu pecado!
XXVII
Ó Cruz querida, já que nesta
hora te conheço, faze de mim tua morada e dita-me tuas leis. Cumula-me, ó
princesa minha, com teus castos amores, e faze que eu conheça os teus mais
secretos encantos!
XXVIII
Ao ver-te tão bela, bem
queria possuir-te, mas meu coração infiel me prende ao meu dever; se queres,
Senhora minha, animar meu langor e sustentar minha fraqueza, dou-te o meu
coração.
XXIX
Tomo-te para minha vida, meu
prazer e minha honra, minha única ventura. Imprime-te, eu te rogo, em meu
coração e no meu braço, na minha fronte e na minha face. Não me envergonharei
de ti!
XXX
Tomo, para minha riqueza, tua
rica pobreza, e, por ternura, tuas doces austeridades. Que tua prudente loucara
e tua santa desonra sejam toda a glória e grandeza de minha vida!
XXXI
Minha vitória estará em ser
derrotado por tua virtude e para tua maior glória. Não sou, porém, digno de
morrer sob teus golpes, nem de ser contrariado por todos.
Índice
Prefácio...............................................................................................................................
Aos Amigos da Cruz..........................................................................................................
Cântico: O Triunfo da
Cruz.............................................................................................
Notas
explicativas..............................................................................................................
NOTAS EXPLICATIVAS
(1) Este primeiro parágrafo foi retirado do manuscrito do
R.P., Besnard. As duas expressões “a excelência” e “as práticas” anunciam
imediatamente a intenção do apóstolo, bem como as “duas partes” da carta que
escreve aos seus queridos Amigos da Cruz, dada a impossibilidade de falar-lhes.
Como bom filósofo, dir-lhes-á, antes de mais nada, o que são pela graça de
Deus, a fim de levá-los a agir como verdadeiros Amigos da Cruz. - Que este
vocábulo não amedronte o leitor! -
“É este, dirá Montfort, o nome inequívoco de um cristão”.
Dirige-se ele, com efeito, a cristãos que compreenderam a grandeza de sua
vocação e a ela querem conformar sua vida. A “Carta” tem como fim único
ajudá-los a compreender melhor e a melhor viver o programa da perfeição cristã.
Possa ela ainda achar, em nossos dias, numerosos leitores ávidos de realizar a
verdade de seu cristianismo! As próprias almas consagradas, apesar de esta
“Carta” não ter sido escrita em sua intenção, poderão nela alimentar seu
fervor.
(2) - Que confiança inspira o escritor que emprega tal
linguagem!
(3) Hoje falaríamos cruzados. Essa idéia de cruzada obceca a
grande alma de Montfort (cfr. “O Segredo admirável do Santo Rosário” e a
“Oração abrasada”, principalmente nas últimas páginas).
(4) Sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação
santa, um povo que Deus formou”(I Pedro, 2-9). Estas palavras inspiradas, que
caracterizam o povo cristão em sua sublime vocação, Montfort as aplica
especialmente a essa elite que seus discípulos devem constituir. “Na literatura
espiritual poucas páginas tem tanto brilho quanto aquela em que ele se esforça
para definir o que é um Amigo da Cruz”. (Mons. Villepelet, bispo de Nantes”.
“Carta de Quaresma”, 1942).
(5) Fil., 3, 20.
(6) Montfort, tal como São Francisco de Assis, tinha um
coração apaixonado pela beleza e, em sua gruta de Mervent, cantou
deliciosamente a natureza. Não prende, porém, a ela a sua alma: ama-a tão
somente na medida em que ela o eleva a una a Deus.
(7) Aplicação de dois nomes dados ao último filho do
Patriarca: um por sua mãe Raquel, outro por seu pai Jacó (Gen., 35, 18).
(8) Estais mortos, com efeito, e vossa vida é toda oculta em
Deus com Jesus Cristo (Col., 3, 3).
(9) Gal., 2,20.
(10) Prov., 6, 23, 10, 17, 15, 10; Jer., 21, 8.
(11) Maldição, maldição, maldição aos habitantes da terra...
(Apoc., 8, 13).
(12) Is., 48, 20; 52, 51; Jer., 50, 8; 51, 6, 9, 45; Apoc.,
48, 4.
(13) “Não peço pelo mundo..” (Jo., 17-9)
(14) Ele convencerá o mundo do pecado, da justiça e do
julgamento (Jo., 16, 8-12).
(15) Comparai o Salmo 1, 1: “Feliz o homem que não anda
segundo o conselho dos maus e que não permanece no caminho dos pecadores, nem
se senta nunca no lugar de corrupção”.
(16) Is.,
48, 20; Jer., 51, 6.
(17) Jo.,
14,6.
(18) Mat.,
17, 5; Luc., 9,35; Mrc., 9, 6; II Ped., I, 17.
(19) Jo., 8, 12.
(20) Jo., 16, 33.
(21) Estas páginas comovente sobre os dois partidos - o de
Jesus Cristo e do Mundo - evocam, em paralelo, a meditação dos dois
estandartes, dos Exercícios espirituais. Santo Inácio e São Luís Maria pregam,
cada um à sua maneira, a necessidade de tomar partido, ou por Jesus, ou por
Satanás, príncipe deste mundo.
(22) Este quadro dos dois partidos é o comentário exato da
lição do divino Mestre: “O caminho que conduz à perdição é espaçoso e são
numerosos os que nele entram. A via que conduz à vida ... é estreita, e pequeno
é o número dos que a encontram” (Mat., VII. 13,14)
(23) Esta palavras dos discíspulos de Jesus são quase todas
tiradas dos livros santos. Ver particularmente Rom., 8, 9; Gal., 5, 24; Rom.,
7, 29-31; II Cor., 4, 17; Jo., 13, 16; 25, 20; Mat., 20, 16; Luc., 13, 23;
Mat., 11, 12; III Tim., 2, 5; I Cor., 9, 24-25.
(24) São Paulo (Rom., 8, 29) estabelece, com efeito, a
predestinação dos fiéis na conformidade à imagem do Filho de Deus. Os
comentadores modernos o entendem geralmente quanto ao estado de glória; é
mistér, entretanto, não esquecer que o estado de glória é o coroamento do
estado de graça, e é , para cada um, proporcional a este último.
(25) Os sentimentos dos mundanos aqui revelados foram
igualmente tirados da Sagrada Escritura: Is., 22, 13; Jer., 6, 14; 8, 11; Cor.,
15, 32; Gen., III, l.
(27) Cf. Is., 1, 2; Fil., 3, 18.
(28) Jo., 6, 68.
(29) I Jo., 2, 12.
(30) Rom., 12, 2 .
(31) Estas palavras resumem o belo capítulo da “Imitação de
Cristo” que tem por título: “Do pequeno número dos que amam a Cruz de Jesus
Cristo” (liv. II, cap. XI).
(32) Hebr.,
12, 2.
(33) II
Ped., 1, 4.
(34) Mat.,
16, 24; Luc., 9, 23. “Se alguém quiser vir após mim, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz e me siga!” A partir deste ponto, tôda a “Carta”é o
comentário deste programa de perfeição cristã, proposto pelo Divino Mestre a
todos os seus discípulos: convocata turba (Marc. 8, 34) ad omnes ... (Luc.,
ibid). O parágrafo seguinte nos fornece a divisão deste impressionante
comentário.
(35) Esta frase, inédita pelo menos nas edições que vieram
até nós, foi extraída das citações da “Carta” feitas por Picot de Clorivière,
em sua “Vida de S. Luís Maria Grignion de Montfort”, p. 389.
(36) O pequeno número dos eleitos, de restrição
verdadeiramente assustadora, que aqui avalía o santo autor, não lança em o
número dos réprobos a imensa multidão dos cristãos menos perfeitos, que a
misericórdia divina quer, entretanto, salvar. Segundo o diz o próprio Montfort,
trata-se da elite que escolhe o caminho seguro da cruz. O profeta citado (Is.
27, 12) anuncia o reagrupamento dos judeus em sua pátria.
(37) Mat., 13, 11.
(38) II Mac., 1, 3: “De coração largo e de bom grado”.
(39) Sl.,
21, 7.
(40) Sl.,
39; Hebr., 10, 7-9.
(41) Sl.,
39, 9.
(42) Sab.,
8, 2.
(43) Luc., 12, 50. - Os comentadores modernos, cercando de
mais perto o sentido destas palavras, concordam em ver nelas expressa a
angústia do Salvador diante da perspectiva da Paixão. Longe de enfraquecer o
pensamento de Montfort, esta interpretação dá-lhe ainda mais força,
substituindo ao desejo da cruz a tortura que oprime o seu coração pela visão
contínua dessa cruz, que escolheu para nossa salvação.
(44) Heb., 12, 2.
(45) “Não sou como os outros...” são as palavras do fariseu:
Luc., 18,2.
(46) Alusão à descrição da mulher forte, de onde foram
tiradas estas palavras (Prov., 31, 10-31).
(47) Ef., 3, 18; “A reunião destas 4 dimensões, onde se quis
descobrir um gnosticismo cheio de mistério, tem por fim único realçar a
magnitude do dom divino” (J. Huby). Montfort, algumas linhas adiante, aplica-as
de maneira felicíssima ao dom da cruz.
(48) Gal., 6, 14.
(49)Is., 9, 6.
(50) Tal como deveria fazê-lo, o santo autor deu amplo
desenvolvimento a esta parte do seu comentário.
(51) “Quem conhece o poder de tua cólera?” ( Sl., 89, 2).
(52) Jac., 1, 13.
(53) Isto é, que esquecestes por falta de exame.
(54) “No dia do castigo deveremos dar conta de toda palavra
ociosa que horvermos dito” (Mat., 12, 36).
(55) “Beberam o cálice do Senhor e se tornaram amigos de
Deus”. Este texto, inspirado em várias passagens da escritura, foi tirado do
Ofício comum dos Apóstolos, responsório breve da 7ª lição.
(56) V. Fen., 44; 1-14.
(57) Aqui se reconhece o Apóstolo amado, São João
Evangelista.
(58) “Podeis beber o cálice que eu beberei?” (Mat., 20, 22;
Marc., 10, 38).
(59) Atos, 14, 21.
(60) Prov., 3, 2; Heb., 12, 5-6; Apoc., 3, 19.
(61) Prov., 3, 2; Heb., 12, 5-6; Apoc., 3, 29.
(62) Ver especialmente o sermão 31, 5-6.
(63) I Cor., 1, 2.
(64) I Cor., 6, 15, 12, 27; Ef., 5, 30.
(65) I Cor., 6, 19.
(66) I Pd., 2, 5 e Ofício da Dedicação das Igrejas.
(67) Mat., 3, 13; Luc., 3, 19.
(68) Deut., 4, 24; 9, 3; Heb., 7, 29.
(69) Ex., 3, 2-3.
(70) Prov., 17, 3; Ecles., 2, 5.
(71) Hebr., 12, 1-2.
(72) Hebr., 12, 2.
(73) Luc., 24, 26.
(74) I Reis, 6, 12.
(75) “Eles o forçaram a carregar a Cruz de Jesus” (Mat., 27,
32; Marc., 15, 21).
(76) “Meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mat., 11, 30).
(77) Comparação tirada de Santo Agostinho (in Sl. 59, 8) e
de Santo Agostinho Passim (cf. carta 385, 3).
(78) Ecles., 34, 9.
(79) Nestes dois lindos versos, o missionário poeta
conservou muito bem o rítmo da sentença “Quia sine dolore non vivitur in amore”
( Imit. de Cristo, liv. III cap. 5, 7)
(80) Uma bela frase de Soror Isabel da Trindade se aproxima
deste pensamento: “Não há madeira como a da cruz para acender na alma do fogo
do amor”.
(81) Imit., Liv. I, cap. 15, 11.
(82) Luc., 21, 15.
(83) São João da Cruz foi canonizado posteriormente à época
em que viveu o santo autor (NT).
(84) Entre os santos que “usaram de expressões semelhantes”
devemos colocar o próprio Montfort, este grande amante da cruz, para quem o
maior dos sofrimentos era estar privado de sofrimento, e cuja exclamação
“Nenhuma cruz, que cruz!”, proferida num dia de sucesso extraordinário, merece
ser acrescentada às belas fórmulas citadas por ele.
(85) “Considerai-vos felizes, meus irmãos, de estar sujeitos
a tribulações de toda sorte” (Jac., 1, 2).
(86) Montfort resume aqui as palavras do grande autor
oriental em várias de suas homilias e especialmente na oitava, sobre a Epístola aos Efésios.
(87) Este trecho está transcrito, palavra por palavra, das
“Sainctes Voyes de la Croix ”
(Os santos caminhos da Cruz), de M. Boudon (liv. I, cap. VI).
(88) Fil., 2, 9-10.
(89) Cf. 2; Cor., 4, 17.
(90) Axioma bem conhecido dos antigos, aos quais se refere
S. Paulo (Rom., 3, 8).
(91) Marc., 7, 37.
(92) Mat., 15, 14.
(93) (No original: “... des poules mouilées et des chiens
morts”).
(94) Sl., 50, 14.
(95) Lc., 11, 13.
(96) Sl., 50, 12.
(97) Sab., 7, 14.
(98) Toda esta alínea é um comentário sobre Tg., 5-6.
(99) I Pd., 5, 6.
(100) I cor., 1, 29.
(101) Num trecho paralelo do “Tratado da verdadeira Devoção
à Santíssima Virgem”, Montfort atenuou esta declaração, acrescentando
posteriormente esta útil correção: “O pecado de nosso primeiro pai nos deixou a
todos quase inteiramente...corrompidos.”
(102) O santo autor desmascara aqui o amor-próprio “que se
insinua insensívelmente nas melhores ações” (V. D., nº 146).
(103) Sl.,
30, 21.
(104) II
Cor., 12, 7.
(105) Cf.
At., 8,9.
(106) Isto é: aquelas, dentre as cruzes, que são pequenas e
obscuras, se comparadas com as grandes e muito visíveis.
(107) Montfort compôs sobre este tema um belo cântico de
vinte e duas estrofes, intitulado “O pobre de espírito”. Os 2º e 4º versos de
cada estrofe são, invariavelmente: “Deus seja bendito! Deus seja bendito!”
(Cânticos: 19º Tradicional).
(108) Lc., 22, 42.
(109) Sl., 83, 3.
(110) Sl., 107, 2;l Sl., 56, 8.
(111) Isto é, que vos “imputarem”.
(112) Nestas linhas sublimes, em que transparece a santa
loucura da Cruz, não julgaríamos estar a ouvir São Francisco de Assis dizendo
ao Irmão Leão, diante do quadro dos piores desprezados: “Aí está a perfeita
alegria”?
(113) Lc., 16, 15.
(114) Jó., 2, 3.
(115) Montfort, sem dúvida, faz aqui alusão ao extermínio do
exército de Senaquerib por um Anjo do Eterno, que dizimou, numa noite, cento e
oitenta e cinco mil homens. (IV Reis, 19, 35).
(116) Lc., 21, 18.
(117) II Reis, 16, 5-11.
(118) Sab., 8, 1.
(119) Cf. Itinerário dos clérigos.
(120) Parafr. de Jeremias: Lament., I, 12.
(121) Gal., 3, 1.
(122) I Ped., 4, 1.
(123) Ver. Efes., 6, 12-18.
(124) Heb., 11, 25-26.
(125) Ps., 68, 8; 118, 112.
(126) I Cor., 4, 9 e 13.
(127) Cf. II Cor., 4, 17.
(128) Alusão à defecção do 40º martir de Sebaste.
(129) Escritura e Liturgia, passim.
(130) Cf. Apoc., 2, 6, 11, 17, 26; 3, 5, 12, 21; 21, 7.
(131) Cf. Boudon: “Les sainctes voyes de la croix”, liv IV,
cap. VI.
(132) Mat., 21, 21 e 23.
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