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segunda-feira, 23 de maio de 2016

Luz sobre a Idade Média Final.





CAPÍTULO XII

A VIDA QUOTIDIANA

No princípio da Idade Média, como é acima de tudo a segurança
que se procura, a vida encontra-se totalmente concentrada no domínio,
ou quase: regime de autarquia feudal, ou antes familiar, durante

o qual cada corte procura bastar-se a si própria, A disposição das
aldeias trai essa necessidade de se agrupar para efeitos de defesa;
encontram-se agarradas às encostas do domínio senhorial, onde os
servos se refugiarão em caso de alerta; as casas estão amontoadas
umas às outras, utilizam a mínima polegada de terreno, e não ultrapassam
as escarpas da colina na qual se ergue o torreão. Tal disposição
é ainda muito visível em castelos como o de Roquebrune,
perto de Nice, que data do século xi. Mas, assim que passa a época
das invasões, as residências dos camponeses afoitam-se pelos campos
fora, e a cidade destaca-se do castelo. Se a cidade primitiva não tem
senão ruelas estreitas, não é por gosto mas por necessidade, porque
era preciso que a população se anichasse, melhor ou pior, na cintura
das muralhas; o mesmo não acontece com os arrabaldes que se multiplicam
a partir do fim do século XI. Do mesmo modo, as ruelas são
tortuosas, é por seguirem o traçado das muralhas, determinado pela
configuração geral do local. Mas que não se pense que o alinhamento
das casas era deixado à exclusiva fantasia dos habitantes; a maioria
das cidades antigas são construídas de acordo com um plano bem
visível. Em Marselha, por exemplo, as vias principais, como a Rua
de São Lourenço, são estritamente paralelas às margens do porto, onde
vão desembocar as ruelas transversais. Quando estas ruas são muito
estreitas, pode-se estar certo de que isso acontece por razões muito
precisas: para defesa do vento, ou do sol, no Midi; é uma disposição
muito judiciosa: apercebemo-nos disso em Marselha, quando os adeptos
do barão Haussmann cortaram essa lamentável Rua da República,
vasto corredor glacial que desfigura a antiga colina dos Moinhos.
No Linguadoque, para protecção contra o terrível cersl, utili


(1) Vento do Baixo Linguadoque, semelhante ao mistral. (N. do R.)
http://saomiguel.webng.com


162 REGI NE PENOU

zou-se muitas vezes o plano central, como na pequena cidade de Bram,
onde as ruas giram em círculos concêntricos em torno da igreja. Mas,
sempre que podem, e que não são estorvados pelo clima ou pelas
condições exteriores, os arquitectos preferem um plano rectangular
semelhante ao da^ cidades mais modernas, as da América ou da
Austrália: grandes artérias cruzando-se em ângulo recto, com um
espaço reservado no interior do rectângulo para a praça pública,
na qual se erguem a igreja, o mercado e, se é caso disso, a câmara
municipal, e ruas secundárias paralelas às primeiras. Foi assim que foi
concebida a maioria das cidades novas: a de Monpazier, na Dordogne,

é muito característica a este respeito, com as suas ruas traçadas a
esquadria, recortando blocos de casario de uma absoluta regularidade,
cidades como Aigues-Mortes, Arcis-sur-Aube, Gimont no Gers, apresentam
a mesma simetria de desenho.

Este ambiente da rua é muito importante para o homem da Idade
Média, pois vive-:e muito na rua. É mesmo uma verificação assaz
curiosa de fazer: até então, e de acordo com o uso corrente na Antiguidade,
as casas eram iluminadas a partir de dentro e apresentavam
muito poucas ou nenhumas aberturas para o exterior. Na Idade
Média, abrem-se para a rua: é o índice de uma autêntica revolução
dos costumes. A rua torna-se um elemento da vida quotidiana, tal
como o haviam sido, no passado, a agora ou o gineceu. As pessoas
gostam de sair. Todos os lojistas têm um toldo, que montam todas
as manhãs, e expõem os seus artigos ao ar livre. A iluminação foi, até
ao século da electricidade, uma das grandes dificuldades da existência,
e a Idade Média, amante de luz, resolvia a questão tirando o maior
proveito da do dia. Um mercador de panos que arrastava os clientes
até ao fundo da loja era mal considerado: se não existisse qualquer
defeito nos seus tecidos, não teria receado expô-los em plena rua, tal
como o faziam todos os outros; o que o cliente quer é poder acotovelar-
se sob o toldo e examinar à sua vontade, em pleno dia, as peças
entre as quais fará recair a sua escolha, com os conselhos do seu
alfaiate, que o mais das vezes o acompanha para isso. O cordoeiro,

o barbeiro, mesmo o tecelão, trabalham na rua ou virados para ela;
o cambista instala as suas mesas sobre cavaletes, no exterior, e tudo
que a autoridade municipal pode fazer, para evitar estorvos, é
limitar a uma escala fixa a dimensão destas mesas.
Assim, as ruas são de uma animação extraordinária- Cada quarteirão
possui a sua fisionomia diferente, pois os corpos de ofício estão,
em geral, agrupados, o que é, aliás, assinalado pelos nomes das ruas:
em Paris, a Rua dos Cuteleiros (Rue de la Coutellerie), o Cais dos
Ourives (Quai des Orfèvres), o dos Peleiros (de la Mégisserie), onde
se situavam os curtidores, a Rua dos Tanoeiros (Rue des Tonneliers),

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

indicam bem quais os corpos de ofício que nelas se encontravam reunidos-
Os livreiros encontram-se quase todos agrupados na Rue Saint-
Jacques; o quarteirão Saint-Honoré é o dos carniceiros. Mas são
todos muito vivos porque as lojas, ao mesmo tempo oficinas e locais
de venda, transbordam e assaltam a rua; é um misto de souk tunisino
e de Ponte-Vecchio de Florença; no Paris actual, já só os cais da
margem esquerda, com as tendas dos alfarrabistas e o seu público
de ociosos e de clientes assíduos, conseguem dar uma ideia desses
tempos. Mas haveria que acrescentar a isto o «fundo sonoro», muito
diferente na Idade Média do que acontece hoje em dia: a serra dos
carpinteiros, o martelo dos ferreiros, os apelos dos marinheiros que
rebocam ao longo do rio as barcas carregadas de víveres, os pregões
dos mercadores, em lugar das buzinas dos táxis e da barulheira dos
autocarros. Porque tudo se «apregoa» na Idade Média: as novidades
do dia, as decisões de polícia ou de justiça, os levantamentos de
impostos, os leilões ao ar livre, na praça pública, e também, mais
correntemente, as mercadorias para venda; a publicidade, em vez de
se expor nas paredes em cartazes coloridos, é «falada», como na
rádio dos nossos dias; muitas vezes, as autoridades locais vêem-se
mesmo obrigadas a reprimir os abusos e a impedir os lojistas de
«darem vozes» de modo exagerado. O tipo mais popular deste género
é o pregoeiro das tabernas. Todo o taberneiro manda apregoar o seu
vinho a um personagem de poderoso gasganete, que se senta diante
de uma mesa e preside à degustação: os passantes aliciados mandam
vir um copázio e, para os que não têm tempo de entrar na taberna,
isso faz as vezes do «balcão» dos cafés parisienses. No leu de Saint-
Nicolas, este pregoeiro desempenha um papel importante:

Céans fait bon díner, céans
Ci a chaud pain et chaud hareng
Et vin d'Auxerre à plein tonnel2.


Ao correio do rei, que se detém um instante, serve um copo,
dizendo:

Tiens, ci te montem au chej [à la tête]
Bois bien, le meilleur est au fond!3

Há que imaginar isto nessas ruas medievais de que os antigos
bairros de Rouen ou de Lisieux dão ainda ideia, com as suas casas

(2) Aqui há bom jantar, aqui / Aqui bom pão e caldo arenque / E
vinho de Auxerre a escorrer da pipa.
(3) Vem, que te subirá à cabeça / Bebe bem, o melhor está no fundo!

164 REGINE PERNOUD

de vigas aparentes e envasamentos esculpidos, a que outrora se prendiam
cartazes em ferro forjado, e de onde surgia de repente a poderosa
arcatura de um pórtico de igreja, cuja flecha, levantando a cabeça,
se avistava lá no alto, elevada como um mastro por entre os telhados,
porque nessa época, longe de estarem isoladas, esmagadas pelos grandes
espaços vazios que nos habituámos a criar em torno delas, as igrejas
formam corpo com as habitações que se amontoam junto a elas e
parecem querer situar-se mesmo por baixo do seu campanário; ainda
se pode notar isto atrás de Saint-Germain-des-Prés. A própria disposição
exterior traduz pois a familiaridade em que vivem então o povo
e a sua igreja. As nossas catedrais góticas, muito diferentes nisto dos
templos da Antiguidade, são aliás concebidas para serem vistas deste
modo, em perspectiva vertical; é assim que adquirem o seu autêntico
valor; aquando da reconstrução da catedral de Reims, houve quem
se espantasse de encontrar, por entre as jóias da nossa escultura
medieval, estátuas de traços deformados, de uma fealdade espantosa;
mas bastou voltar a pô-las nos nichos, quase no topo da construção,
para compreender: tinham sido esculpidas de tal modo que, para o
espectador que olhava para elas desde baixo, os traços propositadamente
exagerados conservavam toda a sua expressão, adquirindo
uma beleza singular; era o fruto de um cálculo de geómetra, tanto
como de um trabalho de artista. Conjuntos como Salers em Auvergne,
Peille perto de Nice, com as suas numerosas arcadas: portões largos,
janelas alinhadas nos andares das casas, pontes cobertas lançadas
por sobre a rua, ligando entre si duas «ilhas», isto é, dois grupos
de habitações, permitem igualmente reconstituir assaz fielmente o
aspecto de uma cidade medieval.

Poderemos perguntar, perante estes testemunhos inegáveis, o que
é que terá sugerido a um Luchaire a estranha opinião segundo a qual
as casas medievais não passavam de «pocilgas fedorentas e as ruas
de cloacas»4; é verdade que não cita monumento nem documento
de espécie alguma em apoio da sua afirmação; concebe-se dificilmente
a razão pela qual, se tinham o hábito de viver em pocilgas, os nossos
antepassados puseram tanto cuidado em as ornar de janelas com
colunas dividindo-as ao meio, de arcaturas trabalhadas assentes em
finas colunetas esculpidas, que reproduzem muitas vezes a ornamentação
das capelas vizinhas, como ainda se pode ver em Cluny, na Borgonha,
em Blesle, em Auvergne, na pequena vila de Saint-Antonin, na
Gasconha, para não citar senão casas datadas da época romântica., quer
dizer, do século XI ou dos primeiros anos do século XII.

(4) La Société française ou temps de Philipye-Auguste, p. 6.
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

Quanto às ruas, longe de serem «cloacas», são pavimentadas desde
muito cedo: Paris foi-o desde os primeiros anos do reinado de Filipe
Augusto; por um procedimento semelhante ao da Antiguidade, as
pedras eram colocadas numa camada de cimento misturado com telhas
esmagadas; Troyes, Amiens, Douai, Dijon foram igualmente pavimentadas
em épocas variáveis, como quase todas as cidades de
França. E essas cidades possuíam também os seus esgotos, cobertos
a maior parte das vezes; em Paris, foram descobertos sob os terrenos
do Louvre e do antigo palácio da Trémoille, datando do século XIII,
e sabe-se que a Universidade e os arrabaldes da Cite tinham, duzentos
anos mais tarde, uma rede que compreendia quatro esgotos e um
colector; em Riom, em Dijon e em muitas outras cidades, foi igualmente
possível verificar a presença de esgotos abobadados, atestando

o cuidado com a salubridade pública. Onde não existia o «tudo para
o esgoto», tinham sido criados vazadouros públicos, cujas imundícies
eram despejadas nos rios — tal como se faz ainda hoje — ou queimadas.
Numerosas prescrições do ban referem-se ao asseio das ruas,
e os agentes de polícia de então, os banniers, tinham por missão fazê-las
respeitar. É assim que os estatutos municipais de Marselha ordenam
a cada proprietário que varra os terrenos em frente da sua casa e que
arranje maneira de as imundícies não poderem, em caso de chuva, ser
arrastadas pelas águas em direcção ao porto, pelas ruas inclinadas;
haviam, aliás, sido construídas na embocadura das ruas que davam
para o porto uma espécie de paliçadas destinadas a proteger as águas,
que a municipalidade entendia conservar muito limpo; não eram
consagradas menos de quatrocentas libras por ano para a sua manutenção,
e para as limpezas que eram efectuadas periodicamente tinha-se
imaginado um engenho composto por uma barca à qual estava fixada
uma roda de alcatruzes que vinham alternadamente raspar o fundo
e depunham a lama na barca, a qual era em seguida despejada ao largo.
Regulamentos particulares velam pela protecção dos locais que o
interesse público exige preservar especialmente contra a conspurcação:
a Carniçaria, a Peixaria, que deve ser lavada com água, diariamente,
de uma ponta à outra, a Pelaria, cujas águas nauseabundas devem ser
despejadas numa conduta escavada especialmente para o efeito-
Resulta de tudo isto que, na Idade Média como hoje, a salubridade
pública não era descuidada- O maior inconveniente que a isso
se podia opor provinha dos animais domésticos, então mais numerosos
do que nos nossos dias: não era raro ver um rebanho de cabras ou
de carneiros, ou mesmo uma manada de vacas, abrir passagem por
entre os tabuleiros dos vendedores, provocando desordens e atropelos;
foi-lhes pois fixado um limite a não franquear no perímetro da cidade;

o que, aliás, ainda se pode ver nalgumas cidades e, em Londres,

REGI NE PERNOUD

rebanhos de carneiros atravessam quotidianamente uma das praças
mais movimentadas para ir pastar nos parques. Havia sobretudo os
porcos —cada família criava então uma quantidade suficiente para
poder fornecer o consumo familiar—, que circulavam na calçada,
a despeito das repetidas proibições; o que não era totalmente mau,
pois devoravam todos os detrito:, comestíveis e contribuíam por conseguinte
para suprimir uma causa de insanidade.

Nesta cidade ruidosa, onde fervilha uma população incessantemente
atarefada, a voz dos sinos contava as horas, e também isso
faz parte do «fundo sonoro»: o angelus, de manhã, ao meio-dia e à
noite, marca as horas de trabalho e de repouso, desempenhado o papel
das modernas sereias de fábrica. O sino anuncia os dias de festa, isto
é, de feriado, chama por socorro em caso de alarme, convoca o povo
para a assembleia geral, ou os almotacés para o conselho restrito;
toque a rebate de incêndio, dobre de finados, carrilhões de festas;
pode-se seguir durante todo o dia, pela sua voz, a vida da cidade,
até soar, à noite, o recolher; extinguem-se então as luzes das lojas,
os clarões dos assadores; recolhem-se os telheiros, fecham-se os portões;
se se teme qualquer surpresa, fecha-se a cidade, clausurando as
suas portas, levantando as pontes levadiças e baixando as grades;
por vezes é suficiente colocar correntes a atravessar as ruas, o que
tem igualmente a vantagem, nos bairros mal afamados, de cortar a
retirada aos malandrins; só permanecem iluminados os morrões que,
de dia e de noite, pestanejam diante das alminhas, as estatuetas da
Virgem e dos santos abrigadas em nichos à esquina das casas, e
diante dos Cristos no cruzamento das ruas enquanto fora da cidade,
nos portos, irradiam os faróis que marcam a entrada do ancoradouro
e os principais recifes.

Os viajantes retardatários só têm direito de circular munidos
de uma tocha; tolera-se, nas cidades marítimas, as idas e voltas dos
que estão à espera de embarque: em tempo de alarme, ou se se declara
um qualquer sinistro, incêndio, avaria grave num navio, perigo de
naufrágio, as autoridades mandam colocar tochas à esquina das ruas,
para permitir socorros rápidos e prevenir os acidentes.

A corte do senhor retira-se então para o interior das paredes da
casa — essas paredes em que houve a precaução de construir bem
espessas, muralhas contra o frio, contra o calor, contra os ruídos
importunos: sabe-se naquela época que não existe conforto sem
paredes espessas a servir de protecção. Segundo os recursos do local,
são construídas em tijolo, ou em pedra talhada, no caso dos ricos;
mas, na maior parte dos casos, mistura-se madeira c adobe, como
aconteceu um pouco por toda a parte até aos nossos tempos. Cons
trói-se no chão toda a armadura da fachada, cm vigas sabiamente

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

unidas umas às outras e, com a ajuda de cabrestantes, macacos e
polés, a seguir procede-:e ao seu levantamento, de uma só vez, para
depois se guarnecer os interstícios com tijolos, ou com o material
usado na região. As igrejas, que nos restam, dão em geral a nota do
aspecto das casas: no Linguadoque triunfa o tijolo rosa, que dá um
brilho tão particular às igrejas de Toulouse ou de Albi; em Auvergne
constrói-se em pedra, naquela sombria pedra de Volvic de que a
catedral do Puy ou a de Clermont-Ferrand fornecem imponentes
exemplos. Nas regiões de terra argilosa, como no Midi provençal,
casas e monumentos são cobertos de telhas, que tomaram ao sol
e-sa cor de mel tão característica em aldeias como Riez ou Jouques;
na Borgonha, esta telha é de preferência envernizada, e os telhados
rebrilham de cores ofuscantes —o hospício de Beane, Saint-Bénigne
de Dijon são alguns destes espécimes; na Touraine, no Anjou, utiliza-
se a ardósia extraída na região; e quando as igrejas, em vez de
serem abobadadas, são apenas emadeiradas, como acontece frequentemente
no Norte e em torno da bacia parisiense, é porque as florestas,
mais numerosas do que as pedreiras, tornavam este modo de revestimento
mais económico; nessas regiões, as residências dos particulares
eram quase sempre cobertas de colmo, mesmo na cidade, o que não
deixava de aumentar os riscos de incêndio. Um pouco em ioda a
parte, as autoridades municipais prescreviam aos habitantes medidas
de prudência para evitar os sinistros; o recolher não tinha outra razão
de ser. Em Marselha, recomenda-se aos armadores que, quando procedam
à operação da brusque, que consiste em aquecer a quilha do
navio em construção para o besuntar mais facilmente de pez, vú-icin
a chama, para esta não ultrapassar uma certa altura, pois, dizem os
estatutos da cidade: «Nem sempre está ao alcance do homem conter
as chamas que ele próprio ateou.» Após um incêndio, que em Limoges,
em 1244, destruiu vinte e duas casas, mandou-se construir vastos
reservatórios de água aonde os burgueses se vinham abastecer cm caso
de alerta. Quando se declarava um incêndio, era um dever de lodos
acorrerem ao toque a rebate com um balde de água; toda a gente
devia colocar outro diante da porta de casa, por precaução.

O elemento essencial da casa medieval, sobretudo no Norte da
França, é a sala; a sala comum em que se reúne toda a família às
horas das refeições e que preside a todos os acontecimentos: baptismos,
casamentos, veladas dos mortos; é na sala que se vive, é nela que a
família se reúne, à noite, sob o manto da grande chaminé, para se
aquecer contando histórias, antes de ir para a cama. F, isto tanto
nas casas dos camponeses como nos castelos. As outras divisões,
quartos ou outras, são apenas acessórios; o importante é a sala familiar,
aquela a que os Franco-Canadianos chamam ainda o «viveiro»


168 REGINE PERNOUD

(le vivoir). Quando o nível da casa o exige, a cozinha é separada;
por vezes mesmo, nos castelos, ocupa um edifício à parte, sem dúvida
para limitar os riscos de incêndio; as vastas cozinhas de mitra da
abadia de Fontevrault, as do palácio dos duques de Borgonha, em
Dijon, permaneceram tal e qual como estavam.

À parte isto, e sem falar das múltiplas salas de guarda, salas
de aparato e outras que pode comportar uma residência senhorial,
a casa burguesa inclui as oficinas de trabalho, se for caso disso, e os
quartos- Para entrar em todos os pormenores, não deixamos de encontrar,
adjacentes aos quartos, os redutos chamados privados, longaignes
ou retretes, quer dizer, aquilo que nos habituámos a designar pelo

nome de W. C. Por espantoso que possa parecer, não faltava em
nenhuma casa da Idade Média aquilo de que o Palácio de Versalhes
estava desprovido; a delicadeza ia mesmo muito longe neste aspecto,
pois parecia pouco refinado não possuir as suas retretes particulares;
a regra manda que, pelo menos nas casas burguesas, cada um tenha
as suas e seja o único a usá-las; os costumes só se tornaram grosseiros
neste ponto a partir do século XVI, que aliás viu serem desprezadas
quase todas as práticas de higiene que a Idade Média conhecia. A
abadia de Cluny, no século XI, não contava menos de quarenta latrinas
e, o que poderá parecer mais incrível, embora seja igualmente
verdadeiro, as latrinas públicas existiam na Idade Média; temos
provas disso em cidades como Rouen, Amiens, Agen; a sua instalação
e manutenção são objecto de deliberações municipais ou entram nas
contas da cidade. Nas casas particulares, as retretes situavam-se
muitas vezes no último andar; uma conduta, ao longo da escada,
corresponde aos esgotos ou vazadouros, ou ainda a fossas muito
semelhantes às usadas actualmente; utilizava-se mesmo um procedimento
vizinho do das mais modernas fossas sépticas, utilizando cinzas
de madeira, que têm a propriedade de decompor os detritos orgânicos;
encontramos assim menção de compra de cinzas destinadas às latrinas
do hospital de Nimes, no século xv; no Palácio de Avinhão, as condutas
desaguavam num esgoto que ia dar ao Sorgue. E sabe-se que
foi penetrando pelas fossas das retretes —o único ponto que não se
tinha pensado em fortificar! — que os soldados de Filipe Augusto
se apoderaram da fortaleza de Château-Gaillard, orgulho de Ricardo
Coração-de-Leão.

Os quartos são mobilados com mais conforto do que geralmente
se crê; o mobiliário compreende as camas «bem adornadas e cobertas
de colchas e de tapetes, com lençóis brancos e peles»(5), os tamboretes,
as cadeiras, de espaldar alto e esses baús e cofres esculpidos onde se

(5) Le Ménagier de Paris.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

guarda a roupa, e de que se podem ver ainda belos espécimes, nomeadamente
no hospício de Beaune. As madeiras desta época são muito
belas; preparadas e enceradas devidamente, não absorvem a poeira
e são um mau alvo para os insectos; há ainda as arcas para o pão,
os aparadores e guarda-louças; quanto às mesas, são simples tábuas
que se montam sobre cavaletes no momento de servir e que se guardam
seguidamente junto às paredes para não estorvarem. Em contrapartida,
faz-se muito uso de panos e tapeçarias, que protegem do frio
e abafam as correntes de ar; as que nos restam —por exemplo, o
admirável conjunto da Dame à la licorne conservado no Museu de
Cluny— dizem bem que partido delas se podia tirar para mobilar
e decorar os interiores; trata-se, evidentemente, de um luxo reservado
aos castelães e aos ricos burgueses, mas o hábito de usar tapetes
e xairéis0 era geral. Falando dos cuidados vários de uma dona de
casa, o Ménagier de Paris recomenda a Agnès, a Beata, que tem o
panei de intendente: «que ordene às serviçais que, logo de manhãzinha
cedo, as entradas da vossa casa, a saber a sala e os outros locais por
onde as pessoas entram e se detêm em casa para conversar, sejam
varridas e conservadas limpas, e os escabelos (tamboretes), bancos
e xairéis, os quais estão sobre as arcas, sacudidos e limpos do pó;
e sub equentemente os outros quartos limpos e ordenados para esse

dia, e de dia para dia, tal é próprio do nosso estado...»

Espantar-se-ão talvez de encontrar mencionados nos inventários,
como fazendo parte do mobiliário, o fundo-de-banho ou tapete-banheira,
espécie de moletão que guarnecia o fundo das banheiras, para
evitar as farpas quase inevitáveis quando o fundo é de madeira. É
que efectivamente a Idade Média, contrariamente ao que se julga,
conhecia os banhos e fazia largo uso deles; ainda aqui, conviria não
confundir as épocas, atribuindo indevidamente ao século XIII a porcaria
repelente do século xvi e dos que se lhe seguiram até aos nossos
dias. A Idade Média é uma época de higiene e limpeza. Um dito de
uso corrente fala bem daquilo que era considerado como um dos
prazeres da existência:

Venari, ludere, lavari, bibere,
Hoc est viverei7


Nos romances de cavalaria, vê-se que as leis da hospitalidade
ordenam que se dê um banho aos convidados que chegam de uma
longa viagem. É aliás um hábito corrente, o de lavar os pés e as mãos

(6) Espécie de coberturas (N. do T.)
( 7 ) Caçar, jogar, lavar, beber — isto é viver!

170 REGINE PERNOUD

quando se entra em casa; sempre no Ménagier de Paris, se recomenda
a uma mulher, para conforto e bem-estar do seu marido, que «tenha
um grande fogão para lhe lavar bastas vezes os pés, guarnição de
lenha para o aquecer, uma boa cama de penas, lençóis e cobertores,
barretes, almofadas, meias e batas limpas». Os banhos faziam parte,
bem entendido, dos cuidados a dar à pequena infância; Maria de
França recorda-o num dos seus lais:

Par les villes ou ils erroient
Sept fois le jour reposouoient
L'enfant faisoient allaiter,
Coucher de nouvel, et baigner 8.


Se não se tomava banho todos os dias na Idade Média (poder-se-ia
afirmar que :e trate de um hábito generalizado na nossa época?),
pelo menos os banhos faziam parte da vida corrente; a banheira é uma
peça do mobiliário; não passa muitas vezes de uma simples tina,
e o seu nome, dolium, que significa também tonel, pode prestar-se
a confusões. A abadia românica de Cluny, que data do século XI,
não comportava menos de doze salas de banho: células abobadadas
contendo outras tantas banheiras de madeira. Gostava-se muito de ir,
no Verão, folgar para os rios, e as Três riches heures du Duc de Berry
mostram aldeões e aldeãs a lavarem-se e a nadarem num belo dia
de Agosto, na mais simples indumentária, pois a ideia de pudor de
então era muito diferente da que temos hoje em dia, e tomava-se
banho nu, tal como se dormia nu entre os lençóis.

Existiam banhos ou estufas públicas, que eram muito frequentados;

o Museu Borély, em Marselha, conservou uma tabuleta de banhos
em pedra esculpida que data do século XIII. Paris, o Paris de Filipe
Augusto, contava vinte e seis banhos públicos, mais do que as piscinas
do Paris actual. Todas as manhãs, os proprietários dos banhos mandavam
«apregoar» pela cidade:
Oyez qu'on crie au point du jour:
Seigneurs, qu'or vous allez baigner
Et étuver sans délayer;
Les bains sont clauds, c'est sans mentir ( 9 ).


(8) Pelas cidades em que erravam / Bete veses ao dia repousavam /
A criança faziam aleitar, / Deitor de lavado, e banhar.
(9) Ouvi o pregão matinal: / Senhores, banhai-vos / E lavai-vos sem
delongas: / Os banhos estão quentes, e é sem mentir. Guilhaume cie
Villeneuve, Crieries de Paris.
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA 171

Alguns exageravam mesmo: no Livre des Métiers de Étienne
Boileau, prescreve-se: «Que ninguém apregoe nem mande apregoar
os seus banhos até ser de dia.» Estes banhos eram aquecidos por meio
de galerias e de condutas subterrâneas, procedimento semelhante ao
dos banhos romanos. Alguns particulares tinham mandado instalar
em sua ca^a um sistema deste género, e no palácio de Jacques Coeur,
em Bourges, ainda hoje se pode ver uma casa de banho, aquecida por
condutas muito vizinhas do moderno aquecimento central; mas trata-
se, evidentemente, de um luxo excepcional para uma casa particular.
É a disposição que se encontrou também nos banhos de Dijon, onde
as galerias correspondiam a três salas diferentes: a sala de banhos
propriamente dita, uma espécie de piscina e o banho de vapor; os
banhos, na Idade Média, são com efeito acompanhados de banhos
de vapor, tal como nos nossos dias as saunas finlandesas, e o nome
de estufas que lhes era dado indica suficientemente que uma coisa não
era separada da outra. Os cruzados trouxeram para o Ocidente o
hábito de acrescentar a isto salas de depilação, cujo uso aprenderam
em contacto com os Árabes.

E os banhos públicos eram muito frequentados. Podemos me mo
espantar-nos de ver, no século XIII, alguns bispos censurarem as
religiosas das cidades latinas do Oriente por irem aos banhos públicos,
mas isso prova que, não tendo casas de banho instaladas nos seus
mosteiros, elas não deixavam por isso de conservar os seus hábitos
de limpeza. Em Provins, o rei Luís X mandou construir, cm I «)'),
novos banhos, uma vez que os antigos já não serviam, ob affluentiam
populi; em Marselha, tinha sido regulamentada a sua entrada e fixado
um dia especial para os judeus e outro para as prostitutas, paia evitar

o seu contacto com os cristãos e as mulheres respeitáveis.
A Idade Média conhecia igualmente o valor curativo das águas»
e o uso das curas termais; no Roman de Flamenca, vê-se uma dama
pretextar enfermidades e pedir ao seu médico que lhe prescreva os
banhos de Bourbon-1'Archambault, para poder ir juntar-se a um Mo
cavaleiro.
Tudo isto está evidentemente longe das ideias aceites acerca do
asseio na Idade Média, e contudo os documentos existem. O eito
proveio de uma confusão com as épocas que se seguiram c também
de certos textos cómicos que foram indevidamente tomados á leira.
Langlois fez acerca disto uma observação muito judiciosa: «Houve
quem se espantasse de encontrar, diz, no Chastoiement de Robe ri
de Blois, certos preceitos de asseio e de conveniência elementares
que podem parecer assaz inúteis para damas que se não devem supor
desprovidas de educação. 'Não limpem, diz por exemplo o poeta, os
olhos á toalha, nem o nariz; não bebam de mais.' Tais conselhos


REGI NE PERNO U D

fazem-nos hoje sorrir. Mas o que importa saber é se estamos perante
índices da grosseria intrínseca da antiga sociedade cortês, ou se não
terão sido formulados pelo seu autor, precisamente, para provocar

o sorriso, e se os homens do século XIII não sorririam disso como
nós»10. Não se deve tomar isto a sério, tal como não se poderia considerar
um rito tradicional da época o gesto recomendado por Villon:
C'est bien dîner quand on échappe
Sans débourser pas un denier
Et dire adieu au tavernier
En torchant son nez à la nappe (11).

É mais ou menos como se se dissesse hoje: «Se forem convidados
para uma recepção de embaixada, evitem cuspir no chão e apagar o
cigarro à toalha.» Há que contar com o humor, sempre presente na
Idade Média. Pelo contrário, o refinamento dos costumes foi bastante
avançado; não só eram gerais hábitos elementares como o de lavar
as mãos antes das refeições —na parábola do mau rico, vemos este
impacientar-se porque a mulher, lenta a lavar as mãos, o retarda
na ida para a mesa —, mas ainda eram apreciados certos preciosismos,
como o uso de taças para lavar as mãos na mesa. O Ménagier de Paris
dá assim uma receita «para fazer água de lavar as mãos à mesa»:
«Ponha-se a ferver salva, em seguida escorra-se a água e faça-se
arrefecer até mais do que morna- Ou se põe ao de cima camomila
ou manjerona, ou se utiliza rosmaninho, e se põe a cozer com cascas
de laranja. Também a3 folhas de loureiro são boas» Para que se tenha
sentido necessidade de fornecer tais receitas, é preciso que as donas
de casa tenham levado muito longe os cuidados com o interior da
casa e o sentido da apresentação.

A me ma obra fornece esclarecimentos sobre a maneira como
eram tratados os hóspedes ordinários do lar, quer dizer os criados,
cuja sorte não era para grandes lamentos, a julgar pelos textos da
época: «Às horas pertinentes, mandai-os sentar à mesa e dai-lhes
repasto de uma única espécie de carne, largamente e abundantemente,
e não de várias, nem deleitáveis ou delicadas, e servi-lhes uma só
bebida alimentícia e não molesta, vinho ou outra, e não várias; e
admoestai-os para que comam muito e bebam bem e abundantemente
[...] e após o seu segundo labor e nos dias de festa, que tenham
outra refeição, e seguidamente, a saber nas vésperas, que sejam saciados
abundantemente como antes, e largamente, e, se a estação o

(10) La Vie en France au Moyen Age, I, p. 161.
(11) Janta bem o que se escapa / Sem desembolsar moeda alguma /
E diz adeus ao taberneiro / Assoando o nariz à toalha.
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

requerer, que sejam aquecidos e postos a contento.» Em suma, três
refeições ao dia, uma alimentação simples, mas sólida, e, como bebida,
vinho. É o que sobressai igualmente dos romances de ofícios, onde
se vê os burgueses abastados comerem com os criados à mesa e alimentá-
los do mesmo modo que a si próprios, como já não se pratica
senão nos nossos campos. A dona de casa deve estender mais longe
a ^ua solicitude: «Se um dos vossos serviçais cai em enfermidade,
todas as coisas comuns postas de parte, pensai vós própria nele muito
amorosamente e caridosamente, e visitai-o variadas vezes, e penai
nele ou nela muito curiosamente, avançando a sua cura.»

Ela deve igualmente pensar nos «irmãos inferiores», nesses animais
domésticos que parece terem sido muito mais numerosos então
do que nos nossos dias: não há miniatura de cenas de interior ou
de vida familiar onde não figurem cães saltando ao pé dos donos.
rondando em volta das mesas nos banquetes, ou ajuizadamente estendidos
aos pés da dona ocupada a fiar; em todos os jardins se vêera
pavões desdobrarem ao sol a cauda luzidia. A"sim, o autor do Ménagier
recomenda à mulher que «mande cuidar principal, cuidadosa
e diligentemente dos animais domésticos, como cãezinhos e passarinhos
de gaiola: e pensai igualmente nos outros animais domésticos, pois não
podem falar, e por isso deveis falar e pensar por eles»12.

Se se gosta dos animais, não se aprecia menos as flores, e o
cenário habitual da vida é, com a rua e a casa, o jardim, de que
os manuscritos de iluminuras nos mostram inesquecíveis pinturas:
jardina cercados de muros a meia altura, sempre com um poço ou
uma fonte, e um riacho que corre nas margens dos relvados; muita.-,
vezes são parreiras, árvores em latadas onde acabam de amadurece; os
frutos, ou ainda esses bosques de verdura onde, nos romances, se encontram
cavaleiros e donzelas. O que é notável é que a época não
conhece a nossa distinção entre jardim hortícola e jardim floral; os canteiros
acolhem flores e legumes, e não restam dúvidas de que se achava
a baga desabrochada de uma couve-flor, a renda delicada das folhas
de cenoura e a abundante folhagem de uma planta de melão ou de
abóbora tão agradáveis à vista como uma frisa de jacintos ou de túlipas.
O pomar é objecto de passeio; é debaixo de uma velha pereira que
Tristão, nas noites de luar, espera a loura Isolda. O que não significa
que não se apreciem as flores de puro enfeite; a nossa literatura lírica
mostra-nos sem cessar pastoras e donzéis ocupados a entrançar «rosários
» de flores e de folhagem; numerosos quadros e tapeçarias têm
um fundo de florezinhas de cores suaves. Mas, se os autores das ilumi


(12) As reservas de aves eram numerosas e cada senhor ou burguês
linha o seu equipamento de caça ainda que reduzido: um cão ou uma
matilha, falcões, gaviões ou marelhões. (N. do R.)

RÉGINE PERNOUD

nuras semeiam de flores e pássaros os enquadramentos das páginas
dos manuscritos, não deixam de tirar partido das plantas hortícolas,
e a folha de alcachofra, estranhamente recortada, serviu de modelo
a gerações de escultores, nomeadamente na época da arte flamejante.

Uma lenda tenazmente arraigada fez do homem da Idade Média
um perpetuo morto-de-fome, a ponto de se poder perguntar como
é que uma raça subalimentada durante oito séculos e, o que é mais,
periodicamente devastada pelas guerras, as fomes e as epidemias
conseguiu sobreviver e produzir ainda rebentos razoavelmente vigorosos.
O erro provém em grande parte de uma má interpretação dos
termos então em uso. É exacto que na Idade Média as pessoas se
alimentavam de «ervas e raízes» — mas sempre assim foi, pois se
designa então por erva tudo o que cresce sobre a terra: couves, espinafres,
alfaces, alhos-porros, acelgas, etc., e por raiz tudo o que cresce
por baixo: cenouras, nabos, rabanetes, rábanos, etc.13 De igual modo,
houve quem se impressionasse por o cardo (chardon) passar então
por um prato apreciado, mas há que ler alcachofra (cardou), e assim
já não se trata senão de uma questão de gosto! Se o camponês ia
muitas vezes colher bolota, não era por se mostrar interessado nela
para si próprio, mas para alimentar os seus porcos. É possível que
em certos períodos de excepcional penúria, por exemplo durante as
lutas franco-inglesas que marcaram o declínio da Idade Média, quando
a peste negra veio acrescentar os seus horrores aos da guerra e os
bandos devastavam o país cuja defesa tinha deixado de estar organizada,
a farinha de bolota tenha servido, como nos nossos dias, como
produto de substituição, mas nenhum texto nos permite pensar que
isso tenha acontecido frequentemente.

De facto, não seria crível que a fome tivesse reinado em estado
endémico na Idade Média. A fazer fé em Raoul Glaber, cronista de
imaginação febril e que cede facilmente aos efeitos de estilo, tem-se
tendência para acreditar que não se passava quase ano nenhum em
que não se tivesse de recorrer à carne humana e aos cadáveres de
crianças, desenterrados de fresco, para apaziguar a fome, ao passo
que o monge medieval, ao relatar estes factos monstruosos, tem o
cuidado de não assumir a responsabilidade da afirmação, acrescentando
prudentemente: diz-se. É certo que houve fomes na Idade
Média e que essas fomes foram numerosas, como acontece sempre

(13) Este pormenor foi já posto em relevo, nomeadamente por Funck
Brentano.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

que a ausência ou a insuficiência dos meios de transporte não permite
prestar rapidamente auxílio a uma região ameaçada e trocar os produtos,
a nossa experiência pessoal esclarece-nos plenamente acerca
da questão. Durante a alta Idade Média, em particular, quando cada
domínio formava pela força das coisas um circuito fechado, as
estradas eram ainda pouco seguras e, para assegurar a sua manutenção,
eram exigidas portagens muitas vezes onerosas, bastava um
ano de seca para a penúria se fazer sentir. Mas é igualmente certo
que essas fomes eram localizadas e em geral não ultrapassavam a
extensão de uma província ou de uma diocese. Mesmo durante o
período áureo da Idade Média, no século XIII, quando a autarquia
dominial foi substituída por trocas fecundas e a circulação se tornou
fácil em toda a França, observam-se variações por vezes muito importantes
no preço dos géneros, sobretudo do trigo; cada província,
cada cidade fixa a sua tarifa de acordo com a colheita local. Os quadros
traçados por Avenel e Wailly mostram, no interior de uma mesma
região económica, oscilações que vão do simples ao dobro, ou mesmo
ao triplo, como aconteceu no Franco Condado, onde, só no ano de
1272. o hectolitro de trigo custou de 4 a 13 francos.

Por outro lado, é preciso ainda que nos entendamos sobre o que
s; designa por fome: um texto citado por Luchaire, pouco suspeito
de indulgência em relação à Idade Média, e numa obra onde acumula
expressamente documentos capazes de dar a ver a época a uma luz
das mais sombrias, é próprio para deixar perplexos os leitores do
ano 1943. «Nesse ano (1197), conta o cronista de Liège, faltou o
trigo. Da Epifania até Agosto, tivemos de gastar mais de cem marcos
para obter pão. Não tivemos nem vinho nem cerveja. Quinze dias
antes da colheita, ainda comíamos pão de centeio 14.» Se a penúria,
para eles, consistia em não ter senão pão de centeio, quanto não invejaríamos
nós a sorte dos nossos antepassados da Idade Média.

Na realidade, a alimentação medieval não era muito diferente
da nossa em épocas normais. A base era, naturalmente, o pão, que,
de acordo com a riqueza da região, era de trigo candial, de centeio
ou de mistura de trigo e centeio; mas verifica-se que mesmo regiões
não produtoras, como o Sul da França, utilizam o pão de trigo can-
dial. Em Marselha, onde o terreno é pobre em trigo e onde as medidas
de excepção para abastecer a cidade são frequentes, não se encontram
previstas, na regulamentação muito minuciosa da panificação, farinhas
secundárias; fabricam-se três espécies de pão: o pão branco, o pão
méjan, mais grosseiro, e o pão integral; os preços são fixados segundo
uma tarifa rigorosa estabelecida após exames feitos por três mestres


(14) La Société française au temps de Philippe-Auguste, p. 8.

REG1NE PERNOUD

-padeiros assistidos por um perito e por homens bons designados
pela comuna, tendo em conta os detritos resultantes da moedura,
a malaxagem da massa e a cozedura. Conheciam-se em Paris múltiplas
variedades de pães «de fantasia», das quais o de Chilly e o de Gonesse,
ou pãozinho mole, eram as mais estimadas. Nos locais muito pobres
comiam-se bolos de aveia, ainda hoje cara aos escoceses, ou de trigo-
mouro. Mas não havia região completamente desamparada, pois a
economia de então, a do vasto domínio, cobrindo uma grande região,
favorece a policultura; não se vê, na Idade Média, nenhuma região
unicamente consagrada à cultura do trigo, ou da vinha, e que importe

o resto dos produto • de que necessita; o regime de vastas explorações
permite variar suficientemente as culturas, ao mesmo tempo que são
consagradas a cada uma delas porções de terra equilibradas.
Roupnel, no seu estudo dos campos franceses15, observa que o
«manso», essa «ordem de grandeza local», que, segundo a riqueza
das regiões, mede de 10 ha a 12 ha modernos, é quase sempre composto
de três elemento~: campos aráveis, prados, bosques; estes apenas
representam uma porção muito reduzida, cerca de um décimo da
exploração total; as terras cultivadas têm uma extensão dupla da das
pastagens. «Este pequeno domínio manifesta-se», diz, «como um
conjunto, e aparece-nos construído à imagem reduzida e completa
do próprio território. E acrescenta: «Não é só a sua imagem; tem a
sua vitalidade e duração.» Os manuscritos de miniaturas, que se inspiram
na realidade, são a este respeito muito reveladores vemos em
toda a parte uma proporção sensivelmente igual de prados, campos
e vinhas.

A vinha é cultivada por toda a parte em França, o que responde,
aliás, a uma necessidade religiosa, tanto como económica, pois os
fiéis, até meados do século XIII, comungam sob as duas espécies,
de tal modo que o consumo de vinho para a missa é muito maior
do que nos nossos dias. Algumas das nossas colheitas são, desde essa
época, particularmente estimadas; as de Beaune, de Saint-Emilion,
de Chablis, d'Epernay; outras perderam nos nossos dias o renome
que outrora possuíam, por exemplo o vinho de Auxerre ou de Mantes-
sur-Seine. Torna-se necessário, quase em toda a parte, defender a
produção local contra a importação estrangeira e, numa cidade como
Marselha, são tomadas medidas draconianas contra a importação de
vinhos ou de uvas provenientes de outros territórios; só os condes
tinham direito de os importar para seu consumo pessoal, tratava-se
provavelmente, neste ca:o, de vinhos finos de Espanha ou de Itália;
um navio que entrasse no porto com um carregamento de vinhos

(18) Histoire de la Campagne française, p. 366.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

ou de uvas expunha-se a vê-lo atirado ao chão, e as uvas espezinhadas.
Nas feitorias ou entrepostos estabelecidos no estrangeiro, é igualmente
proibido introduzir vinho da região antes de os mercadores marselheses
terem vendido o seu. A cultura da vinha estava pois muito mais
desenvolvida na região marselhesa do que nos nossos dias, e os estatutos
da cidade asseguram-lhe uma protecção muito particular: proibição
de caçar nas vinhas, excepto nas que forem propriedade do
próprio, proibição de o lavrador levar mais de cinco cachos por dia
para seu consumo pessoal, etc.

É que o vinho foi a bebida essencial da Idade Média; conhecia-se
a cerveja, principalmeste a cerveja gaulesa, feita de cevada, já fabricada
por Gauleses e Germanos, e também o hidromel; mas nada
era mais apreciado que o vinho, que se encontra em todas as mesas,
desde a do senhor à dos criados. O vinho é ao mesmo tempo uni
prazer e um remédio; são-lhe reconhecidas toda a espécie de virtudes
fortificantes e entra na composição de inúmeros elixires e produtos
farmacêuticos, de geleias e xaropes. São também muito apreciados os
diversos vinhos licorosos ou licores, vinho em que se puseram a
macerar plantas aromáticas: absinto, hissopo, rosmaninho, mirto, a
que se adiciona açúcar ou mel. Antes de se irem deitar, era corrente
a absorção de uma mistura escaldante de vinho e leite coalhado, a
que na Inglaterra e na Normandia se chamava o posset, ao qual a
literatura gaulesa do tempo atribuía toda a espécie de poderes, cuja
enumeração faria corar as pessoas pudibundas. Em todo o caso,
fornecia o calor que faltava então aos apartamentos; é certo que o
vinho era, com os exercícios violentos lai como a caça. o que permitia
suprir a insuficiência dos me:os de aquecimento, o no entanto
não parece que os males do alcoolismo se tenham feito sentir, nem

a degenerescência que o acompanha: is o deve-se sem dúvida ;m la.:o
de nenhuma preparação química, nenhum subproduto adulterado ser
então servido como bebida, ou à observação geral das leis eclesiásticas,
que permitiam o uso e reprimiam o abuso.

Com o pão e o vinho, havia aquilo a c;uc no Midi catalão se
chamava o acompanhamento isto é, iodos os outros alimentos. Contrariamente
à opinião generalizada, o consumo de carne era então
abundante, e, das investigações levadas a cabo, conclui-se que o gado
francês era no século XIII sensivelmente mais importante do que hoje
em dia. Uma pequena localidade pirenaica, que hoje não conta mais
de uma dezena de animais de chifres, contava outrora duzentos e
cinquenta e, se bem que as proporções não sejam as mesmas cm Ioda
a parte, longe disso, não restam dúvidas de que a criação de pado eia
praticada de modo muito mais intensivo cm França até ao dia em
que a introdução do gado da América, de menor preço de custo,

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178 REGINE PERNOUD

tornou impossível a concorrência para os nossos criadores. No que diz
respeito ao carneiro, por exemplo, não havia então quinta que não
tivesse o seu rebanho, tanto mais que este fornecia aos campos um
adubo natural que hoje se julgou mais cómodo substituir por adubos
químicos, o que teve como consequência fazer baixar consideravelmente
o nosso gado ovino. Sobretudo os porcos eram muito numerosos;
tanto na cidade como no campo, não havia família, por mais
pobre, que não criasse pelo menos um ou dois para seu consumo, e
a matança do porco, que fornecia carne e gordura para o ano inteiro,
é uma cena tradicional, nos calendários do; meses tantas vezes esculpidos
nos pórticos das nossas igrejas ou pintados nos nossos manuscritos;
eram conhecidos os processos de salga e de fumeiro ainda hoje
utilizados. Matar o porco era a tal ponto um acontecimento da vida
familiar que só muito tarde se vê aparecerem os salsicheiros; mesmo
assim, estes não passam, a princípio, de comerciantes de «pratos
preparados», antes de se especializarem na confecção de salsichas
e presuntos. Pelo contrário, a corporação dos carniceiros é poderosa
desde o início da Idade Média, e é sabido o papel por ela desempenhado
nos movimentos populares dos séculos xiv e XV. Segundo

o Ménagier de Paris, o consumo semanal feito nesta cidade ter-se-ia
elevado a 512 bois, 3130 carneiros, 528 porcos e 306 veados — sem
contar o consumo dos palácios reais e principescos, os abatimentos
familiares e as diversas feiras de presuntos e outras que tinham lugar
na capital e suas redondezas imediatas. Também em Mar elha é surpreendente
o número de prescrições relativas aos animais pertencentes
a proprietários da cidade, ou destinados ao consumo dos burgueses.
A isto teremos de acrescentar as aves de capoeira, que eram engordadas
como se fazia desde a mais alta Antiguidade: os fígados de
ganso e as carnes em conserva faziam, então tal como hoje, parte
das ementas de festa.
Enfim, a caça fornecia abundantes recursos, em florestas mais
extensas do que hoje em dia e muito ricas em caça. Há então uma
infinidade de processos para apanhar a caça, desde os laços ou
vulgares anéis até às ave^ de rapina especialmente treinadas, passando
pelas diversas armadilhas, redes e engenhos tais como o arco, a sarabatana,
a arbaleta. Apanhavam-se também as perdizes com isco e
caçavam-se com cães o veado e o javali. Assim, a montaria fazia
parte da alimentação corrente; se o senhor, em fins da Idade Média,
tende a reservar para si o direito de caça no seu domínio, como hoje
em dia os proprietários e o próprio Estado, o seu pessoal de monteiros,
falcoeiros e criados e os camponeses que o auxiliam
durante as grandes batidas participam dos benefícios das suas realizações;
isso vê-se correntemente nos romances e quadros da época.

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

Os lacticínios fazem igualmente parte da alimentação, e as nossas
manteigas e queijos adquirem já desde então o seu renome: queijos
gordos de Champagne ou de Brie, anjinhos da Normandia. Nesta
região, a manteiga é praticamente a única matéria gorda empregada
na cozinha, e como o uso de toda a gordura animal é proibido durante
a Quaresma, os habitantes obtêm dispensas especiais por não lhes ser
possível obter óleo em quantidade suficiente; as esmolas prescritas
para garantir esta dispensa serviram por vezes para a edificação das
igrejas, é a esta origem que a Torre da Manteiga, em Ruão, deve o
seu nome. Mas trata-se de um caso particular, pois a oliveira encontra-
se aclimatada quase em todo o lado em França, e o azeite é muito
apreciado; entra, como o vinho, na composição de vários remédios.
Só ele é autorizado nos dias magros, então numerosos e de severa
abstinência, que se estende igualmente aos ovos; durante a Quaresma
endurecem-se os que as galinhas põem para os conservar, e foram
estes ovos que, apresentados à bênção do padre durante as cerimónias
de Sexta-Feira Santa, deram origem ao costume dos ovos da Páscoa.

As mesmas necessidades da abstinência conduziam os nossos
antepassados a consumirem muito peixe; todos os castelos possuem
então um viveiro anexo onde percas, tenças, enguias e cadozes são
objecto de uma autêntica cultura; também os lagos são cultivados,
tal como ainda hoje se pratica numa província como a Brenne, e
a pesca nos lagos é seguida por um repovoamento metódico. Nas
costas a pesca marítima é uma indústria muito viva; as associações
de pescadores desempenham um papel importante quase em toda a
parte; nas margens do Mediterrâneo são editadas numerosas prescrições
em sua intenção e, para proteger o seu comércio contra o dos simples
revendedores, assegura-se-lhes uma espécie de monopólio da venda
do peixe; em Marselha, por exemplo, os revendedores só podem
oferecer as suas mercadorias a partir do meio-dia; é contudo deixada
livre a venda dos pequenos peixes ou peixes de rede, pescados com
uma rede de malha fina chamada bourgin: sardinhas, girelas, que se
distinguem dos peixes maiores como a cavala ou a dourada e sobretudo
do atum, cuja pesca é muito abundante nas redondezas imediatas
do porto. Sabe-se conservar o peixe e a carne, e os «mercadores de
água» que remontam o Sena trazem todos os dias para Paris barris
cheios de arenques salgados ou fumados; um prato comum na época
é então o craspois, sem dúvida uma variedade de baleia.

Vêm por fim os legumes, que lisonjeiam menos o palato, e são
por isso a alimentação mais ou menos exclusiva dos monge., a quem

o seu estado prescreve a sobriedade e as mortificações. Comia-se
então muitas favas e ervilhas, que desempenhavam o papel das nessas
batatas. Para se queixar do seu mau casamento e exprimir a mal;g

REGI NE PERNOUD

nidade da sua mulher, Mahieu de Boulogne não sabe dizer nada
de melhor que a estrofe seguinte:

Nous sommes comme chien et leu [loup]
Qui s'entrerechignent ès bois,
Et si je veux avoir des pois
Elle fera de la purée!16


São conhecidas diversas variedades de couves: brancas, repolhos,
orelha-de-burro, e de alfaces; o Ménagier de Paris cita a alface de
França e a alface de Avinhão como sendo das mais apreciadas. Espinafres,
azedas, acelgas, abóboras, alhos-porros, nabos, rábanos fazem
parte da alimentação corrente, e temos de lhes acrescentar as plantas
condimentares então muito utilizadas para realçar o sabor das carnes
e dos legumes: salsa, manjerona, segurelha, basilisco, funcho, hortelã,
sem contar as especiarias, mandadas vir cada vez em maiores quantidades
do Oriente, sobretudo a pimenta, tão preciosa que se verá
por vezes nela uma espécie de moeda e algumas comunas mercantis
dela se servirão para fazerem os seus pagamentos, por exemplo às
casas das ordens militares.

Os frutos são então muito apreciados: peras e maçãs, das quais

se sabe extrair a cidra e a perada; o marmelo, que passa por ser

uma planta medicinal e do qual se faz uma refinada compota; sobre


tudo em Orleães, as cerejas, as ameixas, que se põem a secar, tal

como as uvas e os figos, e que são usados nos pôtés e nas conservas

de carne, costume que se manteve até aos nossos dias nalgumas

regiões, principalmente no Norte de França; o pêssego e o alperce,

introduzidos pelos Árabes, eram já muito apreciados no tempo das

Cruzadas, mas os morangos e as framboesas permaneceram por muito

tempo selvagens e só foram cultivados a partir do século xvi; muito

ante- dessa época, já se vendiam castanhas nas ruas de Paris, e desde

o século xiv que se tentava aclimatar as laranjeiras ao nosso solo.
Também as amêndoas, nozes e avelãs tinham uma especial preferência
e serviam para a confecção de manjares. Enfim, de de a Antiguidade
que os recursos da floresta: castanhas, frutos da faia-do-norte, morangos,
abrunhos, etc, eram apreciados.
O regime geral das refeições variava muito com as regiões, estando
muito mais dependente dos recursos locais do que hoje em dia.
É certo que as trocas eram numerosas e mais extensas do que :e
poderia acreditar, uma vez que os figos de Malta e a uva da Arménia

(16) Somos como cão e lobo / Que se disputam nos bosques, / E se
eu quero ter ervilhas / Ela fará puré!
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

eram apregoados em Paris; os comerciantes italianos e provençais
traziam para as grandes feiras da Champagne e da Flandres os produtos
exóticos e, num plano mais restrito, os mercados atraíam negociantes
de quase todas as regiões de França. Mas essas trocas eram
naturalmente menos generalizadas do que nos nossos dias e no campo,
se exceptuarmos o movimento comercial criado em torno do castelo
senhorial, vivia-se à base das produções locais. Não eram utilizados
processos de cultura artificiais para fazer avançar as estações e como,
por outro lado, os dias de jejum e abstinência eram muito numerosos,
a alimentação mudava de época para época, muito mais do que hoje
em dia: durante toda a Quaresma, compunha-se unicamente de legumes,
de peixe e de caça de água, temperados com azeite, e o me mo
acontecia nas virgílias ou nas vésperas de dias santos, quer dizer, uma
quarentena de dias por ano. Deve-se, aliás, observar que e.4as prescrições
eclesiásticas estavam perfeitamente de acordo com os preceitos
da higiene: o jejum da Primavera, o das mudanças de estação, nos
Quatro-Tempos, corresponde a uma necessidade de saúde, enquanto
a grande época das festas, que se traduzem inevitavelmente em comezainas,
se situa nos meses mais frios do Inverno, quando se sente

necessidade de uma alimentação rica.

Em qualquer dos casos, dos tratados de cozinhas guardadas nas
nossas bibliotecas e de obras tais como esse precioso Ménagier de
Paris, conclui-se que a mesa era na Idade Média muito cuidada, para
não dizer muito refinada. Dá-se grande importância à apresentação
dos pratos e à ordenação geral das refeições. Nas residências senhoriais,
os convivas sentam-se em mesas compridas assentes cm cavaletes
e recobertas de toalhas brancas; o chão está muitas vezes, nos dias
de festa, juncado de flores e de folhagens recém-apanhadas; as mesas
são dispostas em quadrado ao longo das paredes e não existe o face-a
-face, de modo que o pessoal doméstico possa ir c vir c pôr diante
de cada conviva aquilo de que este necessitar. Os convidados são
sempre numerosos, pois é hábito de todos os barões ter mesa aberta.
Robert de Blois indigna-se com o pensamento de que alguns senhores
mandam fechar a porta das salas onde comem, em vez de as manterem
abertas a quem chega; a hospitalidade é então um dever sagrado,
e estende-se tanto à populaça como aos iguais; por outro lado, a corte
do senhor compreende todos os escudeiros ligados ao seu serviço, os
filho; dos seus vassalos, grande parte dos seus parentes. De tal modo
que, ao lado da grande mesa, onde o suserano se senta cm lugar de
honra, há, mais ou menos bem colocados segundo os seus títulos de
precedência, toda uma multidão de comensais Este costume explica
por que e que os cavaleiros do rei Artur, entre os quais reina uma
perfeita igualdade, se sentam em redor de uma mesa redonda, ou


182 REGINE PERNOUD

antes desenhando uma espécie de ferradura, de modo que todos os
lugares sejam igualmente honrosos, sem no entanto se tornar impossível
servir os convivas.

De facto, a maior parte dos pratos não são postos em cima
da mesa; as carnes põem-se num pequeno trinchante e o mesmo se
passa com as bebidas. Cortam-se para cada convidado porções de
carne: é o papel reservado ao escudeiro trinchador, em geral um
jovem gentil-homem, e, nos romances de cavalaria, como Jean de
Dammartin et Blonde d'Oxjord, obra de Beaumanoir, o cavaleiro
servidor da dama cumpre esse papel. Depõem-se os pedaços sobre
fatias de um pão especial, mais compacto do que o pão corrente,
dito pão de trinchar, ou directamente sobre o prato. Este costume
substituiu nalgumas regiões de Inglaterra, onde os pratos de carne
não aparecem à mesa. O mesmo acontece com as bebidas: os jarros
que as contêm estão sobre um aparador, e o copeiro enche, uns após
outros, jarros e taças, à vontade dos convivas. Todas as cenas de
banquete representam assim escudeiros e servidores indo e vindo
durante a refeição, enquanto as damas permanecem sentadas, tal
como o" senhores de alta posição, e os hóspedes familiares da casa,
galgos de formas esguias ou pequenos caniches, volteiam à procura
de um pedaço para comer. Os festins são muitas vezes separados por
entremezes, no decurso dos quais os jograis recitam poemas ou
executam números de acrobacia; por vezes é mesmo toda uma pantomima
ou uma peça de teatro que se desenrola aos olhos dos convivas.

É posto um cuidado extremo na apresentação dos pratos: pavões
e faisões são postos de pé, revestidos com as suas penas; e nas
geleias traça-se toda a espécie de cenários. O serviço compreende
em primeiro lugar as sopas, de uma grande variedade, desde os caldos
complicados, muitas vezes temperados com ovos batidos, pedaços de
pão torrado e condimentos inesperados como o verjus (licor de uva),
até às papas de farinha, de sêmola ou de cevada, que se comem ainda
nos nossos campos e que formavam o fundo da alimentação dos
camponeses. Os Franceses eram reputados como grandes comedores
de sopas, tal como hoje em dia. Eram igualmente famosos pela excelência
dos seus pâtés e das suas tartes; a corporação dos pasteleiros
de Paris alcançou uma justa reputação: pâtés de montaria ou de
aves, que se vendiam quentinhos na rua, tartes de legumes ou de
compotas, realçadas com ervas aromáticas, tomilho, rosmaninho, louro.
Nos festins dados pelos príncipes por oca" ião de qualquer recepção,
sobretudo a partir do século XVI, certos pâtés monstruosos encerram
cabritos-monteses inteiros, sem prejuízo dos capões, pombos e láparos
que o: temperam, entremeados de gordura de porco, apaladados com
cravinho e açafrão. Eram também muito apreciadas as carnes grelha-

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA 183

das e assadas, bem como os molhos, de que cada cozinheiro possuía
uma especialidade, sendo o mais apreciado o molho de alho, vendido
já preparado para uso das donas de casa. Cremes e pratos doces
terminam a refeição; alguns bolos, como as filhoses e bolos de amêndoa
e o maçapão, contam-se entre aqueles que ainda hoje apreciamos;
como presente, gostava-se das compotas de frutos, sobretudo da marmelada,
então muito estimada, e de bombons; eram as goluseimas
mais correntes, juntamente com as compotas e os xaropes.

Tudo isto está evidentemente a milhas das «ervas» e «raízes».

A alimentação e o refinamento que nela se põe variam, é claro, com

o grau de fortuna, mas está fora de dúvida que não se venderiam nas
ruas coscorões, pâtés e produtos exóticos como os figos de Malta se
não houvesse ninguém que os comprasse, ou se só estivessem ao alcance
dos ricos burgueses, cujo abastecimento se fazia a outra escala e que
tinham em casa os seus cozinheiros. Nos romances de ofício vêem-se
jovens aprendizes comprar regularmente pequenos pâtés quando vão
de manhã buscar água à fonte para o consumo da casa, quer dizer,
pois, que o seu preço não era inabordável para a sua bolsa. E a vida
no campo, embora talvez menos variada, não devia ser menos à larga
que na cidade, muito pelo contrário, pois a cultura dos campos c a
criação de gado davam aos camponeses facilidades que o citadino não
tinha; quando se quer criar uma cidade, é-se obrigado, para atrair
habitantes , a prometer-lhes isenções e privilégios, o que não seria
necessário se o camponês fosse miserável ou, como nos nossos dias,
desfavorecido em relação ao citadino. Há todas a> razões para crer
que é da Idade Média que datam as sãs tradições gastronómicas que
estabeleceram tão solidamente em todo o mundo a reputação da
cozinha francesa.
*

O que surpreende, nos trajos da Idade Média, é a cor; o mundo
medieval é um mundo colorido, e o espectáculo da rua devia ser
então um encantamento para os olhos; perante este cenário de fachadas
pintadas e de tabuletas rutilantes, o movimento destes personagens,
todos vestidos de tons vivos, homens e mulheres, com os
quais contrasta a túnica negra dos clérigos, o burel castanho dos
irmãos mendigantes e a brancura extrema de uma coifa, não é possível,
no mundo moderno, imaginar uma tal festa de cores, a não ser
nos desfiles ainda há pouco conhecido, em Inglaterra, por ocasião
do casamento de um príncipe ou da coroação de um rei, ou cm certas
cerimónias eclesiásticas, como as que se desenrolam no Vaticano. Não
se trata apenas de indumentária de luxo; os simples camponeses
vestem-se com cores claras, vermelhas, ocres, azuis. A Idade Média


RÉGINE PERNOUD

parece ter tido horror dos tons sombrios, e tudo o que nos legou,
frescos, miniaturas, tapeçarias, vitrais, é testemunho desta riqueza
de colorido tão característica da época.

Não se deve contudo exagerar o pitoresco ou a excentricidade
do trajo medieval; alguns pormenores, que associamos inevitavelmente
aos quadros do tempo, só excepcionalmente fizeram parte da indumentária:
os sapatos de ponta revirada, por exemplo, estiveram na
moda durante uma cinquentena de anos, não mais, no decorrer do
século xv, que não assistiu a poucos exageros vestimentares; Charles
d Orléans critica os «gorgias», jovens elegantes que usam mangas
«recortadas» — mangas de fenda lateral que deixam aparecer dobras
impressionantes. Do mesmo modo, a coifa longa e pontiaguda, irresistivelmente
evocada pela palavra «castelã», foi muito menos usada
do que a coifa quadrada ou arredondada que enquadra o rosto e é
muitas vezes acompanhada de uma fita sob o queixo, moda corrente
no século xiv.

De um modo geral, as mulheres da Idade Média usam roupas
que seguem a linha do corpo, com um busto muito justo e amplas
saias de curvas graciosas. O corpete abre-se frequentemente sobre a
chainse ou camisa de tecido e as mangas são por vezes duplas, detendo-^
as primeiras, as da sobreveste ou trajo de cima, nos cotovelos
e indo as de baixo, de tecido mais ligeiro, até aos pulsos. O pescoço
é sempre bem destacado, enquanto as saias arrastam pelo chão, presas
por um cinto onde por vezes sobressai uma fivela de joalharia.

O trajo masculino quase não se distingue do trajo feminino, pelo
menos nos primeiros séculos da Idade Média, mas é mais curto, o
calção deixa ver as meias, e por vezes as bragas ou calções; no
decurso do século XII, sob a influência das Cruzadas, adoptam-se
roupas compridas e flutuantes, moda vivamente censurada pela Igreja
como sendo efeminada. Os camponeses usam uma espécie de romeira
com capuz e os burgueses cobrem a cabeça com um carapuço de
feltro ou de tecido pregueado. São muito apreciadas as peles, desde
o arminho reservado aos reis e príncipes de sangue, a marta ou o
esquilo, até às simples raposas e carneiros, de que os aldeões confeccionam
sapatos, gorros e por vezes casacos compridos. No século xv,
os grandes senhores, como o duque de Berri, gastarão fortunas para
comprarem peles preciosas, e é também nessa época que o trajo se
complica, que os calções se tornam estreitos e justos e a vasquinha
exageradamente curta e franzida na cintura e os seus ombros acolchoados.


A roupa interior existe desde o início da Idade Média, e o exame
das miniaturas mostra que é usada tanto pelos camponeses como
pelos burgueses; havia por toda a parte, em França, canhameirais

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA !8í

cuja fibra era fiada e tecida em casa, fornecendo um belo tecido
resistente. Em contrapartida, a roupa de noite não existe e o seu uso
só muito tarde é introduzido. Para a indumentária, circula em toda
a França uma grande variedade de tecidos, através das grandes feiras.
Vendem-se nas cidades mediterrânicas todas as especialidades da
indústria têxtil das Flandres e do Norte da Franca: tecidos de Châlons,
estamenha forte de Arras, lençóis de lã de Douai, de Cambiai, de
Saint-Quentin, de Metz, panos vermelhos d'Ypres, estanjorts de Inglaterra,
tecidos finos de Reims, feltros e capas de Provins, sem
contar as especialidades locais como a brunette de Narbona e os
panos cinzentos e verdes de Avinhão. Por outro lado, o comércio
das cidades do litoral, Génova, Pisa, Marselha, Veneza, permitia a
importação dos produtos exóticos da África do Norte e mesmo da
Índia e da Arábia; alguns registos de mercadores que frequentavam
a feira da Champagne são tão sugestivos como uma página das Mil
e Uma Noites: panos de ouro de Damasco, sedas e veludos de Acra,
véus bordados da índia, algodões da Arménia, peles da Tartária,
couros e cordovões de Tunes ou de Bougie, peles trabalhadas de
Orão e de Tlemcen. A seda e o veludo foram durante muito tempo
apanágio da nobreza, sendo os nobres os únicos suficientemente ricos
para poderem adquiri-los. E tudo isto era objecto dos presentes dos
príncipes: em ocasiões de grande regozijo, distribuem-se gostosamente
ao seu séquito, independentemente do grau, trajos mais ou menos
sumptuosos. Mas o luxo excessivo não foi caracterítico da realeza
capetiana; a corte só se tornou magnífica sob os Valois, e sobretudo
com os príncipes apanagiados, duques de Berri, de Borgonha e de
Anjou. É sabido, pelo contrário, que um Luís, o Jovem, um São I 11 is,
um Filipe Augusto se faziam notar pela sobriedade do trajo, frequentemente
mais simples que o dos seus vassalos.

No que respeita ao trajo militar, seria cometer um erro imaginar

o cavaleiro medieval sob as pesadas armaduras complicadas que se
vêem nos nossos museus, e que não aparecem antes do fim do século
XIV, quando as armas de fogo necessitam de um aparelho defensivo
aperfeiçoado. Nos séculos XII e XIII, a armadura consisle essencialmente
na cota de malha, que desce até pouco acima do joelho, e no
elmo, que, pesado e maciço a princípio, se aperfeiçoa e suaviza depois
com viseiras e fitas sob o queixo móveis com nasal e frontal. Sobre o
lorigão ou cota de malha, para lhe atenuar o brilho, passava-se uma
sobreveste de tecido, pano fino ou outro; as grevas e esporões completavam
a farpela. Não é possível fazer melhor ideia da indumentária
de guerra da época do que através da bela estátua do Cavaleiro de
Bamberg, obra-prima de harmonia e máscula simplicicidade. Mas é
necessário um esforço suplementar para reconstituir o espectáculo

186 REGINE PERNOUD

deslumbrante que deviam apresentar os exércitos de então: essa

multidão de cascos, lanças e espadas chamejando ao sol, a ponto de

a sua reverberação ter sido muitas vezes uma causa de derrota para

aqueles que se encontravam desfavoravelmente orientados.

Podem-se conceber os gritos de admiração arrancados aos cronistas
por essas hostes rutilantes, com as suas bandeirolas e estandartes,
os cavalos carapaçonados, as sedas brilhantes abrindo-se sobre as
cotas de aço, cada corte agrupada em torno do seu senhor e usando
as suas cores. De facto, é na mesma época, em princípios do século
XII, que aparece o brasão. Os termos e a maior parte das peças foram
tirados do oriente árabe, mas o costume generalizou-se rapidamente
na Europa, expandido pela prática dos torneios, nos quais, para
seguir a evolução dos cavaleiros em campos frequentemente muito
extensos, os espectadores se fiavam nas suas armas, como hoje nas
cores de um jóquei. Este brasão, que conhece hoje uma voga renovada,
faz parte integrante da vida medieval: traduz, sob uma forma articulada,
a divisa de um senhor ou de uma família; é ao mesmo tempo
grito de guerra e sinal de aliança. É sabido que cada cor, ou antes
cada esmalte, tem a sua significação, como cada móvel a que está
aposto; o azul é símbolo de lealdade, o goles, de coragem, o areia,
de prudência e o sinople, de cortesia; dos dois metais, a prata significa
pureza, o ouro, ardor e amor. O brasão foi-se complicando ao correr
dos séculos, mas desde o seu aparecimento que constitui uma ciência
e uma espécie de linguagem hermética, traduzindo, sob essa forma
rica e colorida que tanto apraz à Idade Média, todo o feixe de tradições
e de ambições que compõe a personalidade moral de cada corte.

Os instrumentos de trabalho são, na Idade Média, sensivelmente
os mesmos de que nos servimos até ao século XIX, antes do desenvolvimento
do maquinismo e da motorização da agricultura. É necessário
contudo mencionar que o carro de mão, esse carro de mão
cuja invenção é atribuída a Pascal por uma tradição bem estabelecida,
existia já na Idade Média, em tudo semelhante àquele de que nos
servimos actualmente. É possível ver manuscritos do século xiv cujas
iluminuras mostram trabalhadores transportando pedras ou tijolos em
carros de mão, dos quais sustentam um dos braços por meio de uma
corda passada sobre o ombro, para poderem transportar mais facilmente
a carga; o processo continua a ser usado pelos nossos operários.

Devem-se várias invenções à Idade Média, e a sua importância
tornar-se-ia demasiado grande com o andar dos tempos para que possam
ser passadas em silencio: a albarda dos cavalos, por exemplo. Até
então, a atrelagem concentrava todo o esforço sobre o peito do animal,
de tal modo que, com uma carga um pouco mais importante, existia

o risco de sufocação: foi no decurso do século x que apareceu a
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

engenhosa ideia de atrelar as bestas de carga de modo a que fosse

o corpo inteiro a suportar o peso e o esforço requeridos 17. Esta inovação
deveria introduzir uma profunda renovação dos costumes:
a tracção humana havia sido até então superior à tracção animal; ao
inverter a ordem das coisas, tornava-se fácil e possível praticamente
a supressão da escravatura, necessidade económica na Antiguidade.
A Igreja tinha lutado para que o escravo fosse considerado como
um homem e para que os direitos da pessoa humana lhe fossem
reconhecidos — o que constituía já uma revolução social nos costumes.
Essa revolução foi definitiva a partir do dia em que cavalos e
burros se encarregaram de uma parte do trabalho humano. O mesmo
se deu com a invenção do moinho: moinho hidráulico, depois moinho
de vento, deveria fazer dar um passo considerável à humanidade, suprimindo
a imagem clássica do escravo atrelado à mó. De alcance
menos profundo, mas de incontestável comodidade, o processo que
permite a uma viatura girar facilmente sobre si própria, graças ao
dispositivo que torna as duas rodas da frente independentes das rodas
de trás, não deveria contribuir menos para o progresso e o conforto:
pense-se apenas no espaço que devia ser necessário aos grandes carros
carregados de cereais ou de forragem para virar e nos atropelos daí
resultantes! É mais que certo que estas invenções tiveram mais efeito
do que nenhuma outra sobre o bem-estar da arraia-miúda e contribuíram,
sem sobressaltos nem despesas, para melhorar eficazmente
a sua sorte.
A estas invenções, que deviam modificar radicalmente as condições
do trabalho humano, é preciso acrescentar as da bússola e da
barra do leme, não menos importantes na história do mundo. Os progressos
da navegação foram por elas decuplicados, o que explica.
pelo menos em parte, essa intensa circulação a que «e assiste no
sécuo XIII.

O ritmo da jornada de trabalho varia muito na Idade Média,
segundo as estações. É o sino da paróquia ou do mosteiro vizinho
que chama o artesão à oficina e o camponês aos campos, e as horas
das trindades mudam com a duração do dia solar; as pessoas deitam-
se e levantam-se, em princípio, ao mesmo tempo que o Sol: no
Inverno, o trabalho começa pois por volta das oito ou nove horas,
para terminar às cinco ou seis; de Verão, em contrapartida, a jornada
começa a partir das cinco ou seis da manhã, para só terminar às
sete ou oito da noite. O que faz, com as duas interrupções para as
refeições, jornadas de trabalho que variam de oito a nove horas,
no Inverno, até doze ou treze, ou por vezes quinze horas, no Verão,

(17) Cf. Lefebvre des Noettes, L'attelage à travers les ages. Paris,
1931.

188 REGINE PERNOUD

o que é ainda o regime habitual das famílias camponesas. Mas isto
não se verifica todos os dias. Em primeiro lugar, pratica-se aquilo
a que se chama a semana inglesa; todos os sábados e nas vésperas
dos feriados, o trabalho cessa à uma hora da tarde, em certos ofícios,
e para toda a gente nas vésperas, quer dizer, o mais tardar por volta
das quatro horas. Aplica-se o mesmo regime às festas que não são
feriados, isto é, uma trintena de dias por ano, tais como o dia de
Cinzas, das Implorações, dos Santos Inocentes, etc. Repousa-se igualmente
no dia da festa do padroeiro da confraria, do da paróquia e,
bem entendido, feriado completo ao domingo e nos dias de festas
obrigatórias. Estas são muito numerosas na Idade Média: de trinta
a trinta e três por ano, segundo as províncias; às quatro festas que
conhecemos hoje em dia em França vêm acrescentar-se, não só o dia
dos Mortos, a Epifania, as segundas-feiras de Páscoa e do Pentecostes,
e três dias na oitava do Natal, mas ainda numerosas festas que passam
mais ou menos desapercebidas actualmente, tais como a Purificação,
a Invenção e a Exaltação da Santa Cruz, a Anunciação, o São
João, o São Martinho, o São Nicolau, etc. O calendário litúrgico
regula assim todo o ano, introduzindo uma grande variedade, tanto
mais que se dá a estas festas muito mais importância do que nos
nossos dias. É pelas suas data^., e não pelos dias do mês, que se mede
o tempo: fala-se do «Santo André» e não do 30 de Novembro, e diz-se
três dias depois do São Marcos, de preferência a: o 28 de Abril. Em
sua honra são igualmente preteridas exigências de ordem social, tais
como as da justiça, por exemplo. Os devedores insolúveis, aos quais
é designada uma residência forçada — regime que faz lembrar a
prisão por dívidas, embora sob uma forma mais doce —, podem
abandonar esta e ir e vir livremente desde a Quinta-Feira Santa até
à terça-feira de Páscoa, do sábado à terça-feira de Pentecostes, e desde
a véspera de Natal até à Circuncisão. Estamos perante noções que
nos é difícil hoje em dia compreender perfeitamente.
No total, havia cerca de noventa dias por ano de feriados completos,
com setenta dias e mais de feriados parciais, quer dizer, cerca
de três meses de férias repartidas ao longo do ano, o que garantia
uma variedade inesgotável na cadência do trabalho. Em geral, as
pessoas queixar-se-iam mesmo, como o sapateiro de La Fontaine, de
terem demasiados dias feriados.

A organização dos lazeres é de base religiosa: todo o feriado é
dia de festa e toda a festa começa pelas cerimónias do culto. Estas
são frequentemente longas e sempre solenes. Prolongam-se em espectáculos
que, dados primitivamente na própria igreja, não tardaram
em se ver rechaçados para o adro: são as cenas da vida de Cristo, das
quais a principal, a Paixão, suscita obras-primas redescobertas pela

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

18')

nossa época: a Virgem e os santos inspiram também o teatro, e toda
a gente conhece o Miracle de Théophile [Milagre de Teófilo], que
teve uma voga extraordinária. Estes espectáculos são essencialmente
populares; têm o povo como actor e auditório — auditório activo,
vibrando ao menor pormenor dessas cenas que evocam nele sentimentos
e emoções de uma qualidade muito diferente das do teatro
actual, uma vez que não são apenas o intelecto ou a sentimentalidade
que entram em jogo, mas também crenças profundas, capazes de
transportar esse mesmo povo até às costas da Ásia Menor por apelo
de um papa. É parte integrante sua, como sempre, a nota paródica,
levada muito longe: não se vai ao ponto de subir ao púlpito para

debitar gracejos apimentados com ditos dos mais picantes, por altura
dos «sermões alegres»? Os clérigos não vêem mal nenhum nessas
excentricidades, que nos nossos dias fariam escândalo, e tomam galhardamente
parte nelas.

Não existe, aliás, apenas o teatro propriamente religioso, e, sobre
as bancadas levantadas na praça, representam-se frequentemente farsas
e sotias, ou ainda peças de assuntos romanescos ou históricos;
quase todas as cidades possuem a sua companhia teatral; a dos clérigos
da Basoche, em Paris, ficou célebre. Os festejos públicos têm também

o seu lugar ao lado das festas da Igreja: são por vezes magníficos
cortejos que desfilam pelas ruas, por ocasião das assembleias e
cortes gerais convocadas pelos reis numa ou noutra das suas residências,
em Paris, em Orleães, fazendo lembrar os campos de Março
e campos de Maio, para os quais Carlos Magno convocara a nobreza
do país, em Poissy ou Aix-la-Chapelle. Nessas ocasiões, a corte de
França, tão simples em geral, compraz-se numa certa ostentação, e,
como para as entradas de reis ou de grandes vassalos nas cidades,
estas são decoradas com todo o fausto imaginável: tapeçarias estendidas
ao longo das paredes, casas ornadas de folhagens e de verdura,
ruas juncadas de flores. Assim acontece, nomeadamente, aquando da
coroação de um rei; as cidades por onde passa após as cerimónias
de Reims apressam-se a prestar-lhe uma recepção solene; e essa
recepção nada tem de rígido nem de pomposo; é acompanhada de
cortejos grotescos, nos quais saltimbancos e folgazões de profissão,
misturados com o público, fazem mil números que pareceriam incompatíveis
com a majestade real; só aquando da entrada do rei Henrique
II em Paris é que se decidiu suprimir essas festas e «palhaçadas
do tempo antanho». Eram ocasião de munificências por vezes inauditas,
sobretudo sob o reino dos Valois: fontes debitando vinho, para
as quais se preparavam cozinhas ambulantes, sobre as quais as carnes
se amontoavam em enormes espetos. Foi na mesma época que se
tomou gosto pelas mascaradas ou bailes de máscaras, um dos quais


190 REGINE PERNOUD

ficou tragicamente na memória sob o nome de Bal des Ardents

[Baile dos Ardentes]: aquele em que o jovem rei Carlos VI havia
envergado, com mais quatro companheiros, um disfarce de selvagem,
feito de estopa besuntada com pez e coberto de penas, e no qual,
tendo-se o grupo aproximado imprudentemente de uma tocha, se lhes
pegou fogo; teria morrido sem a presença de espírito da duquesa de
Berri, que o envolveu nas pregas do seu manto, abafando assim as
chamas; mas o perigo a que acabava de escapar não deixou de influir
sobre o cérebro já de si fraco do infortunado monarca e sobre a
enfermidade que o iria atingir.

Todos os acontecimentos que atingem a família real, ou apenas
a família senhorial do local: nascimentos, casamentos, etc, são ocasião
para distracções e festividades. Também as feiras comportam a sua
dose de diversões. É nessas ocasiões que os jograis exibem os seus
talentos, desde os que recitam, ao som do alaúde ou da viola, fragmentos
de canções de gesta, até aos simples lutadores que, com as
suas carantonhas, acrobacias e malabarismos, atraem um círculo de
pacóvios; por vezes efectuam pantominas —antepassados de Tabarin
—, mostram animais inteligentes, ou fazem equilíbrio sobre uma
corda esticada a alturas impressionantes.

Depois do espectáculo, seja de que género for, a distracção preferida
na Idade Média é a dança. Não há banquete que não seja
seguido por um baile: danças dos donzéis nos castelos, carolas aldeãs,
rondas em torno da árvore de Maio; nenhum passatempo é mais
apreciado, sobretudo pela juventude: romances e poemas fazem-lhe
frequentes alusões. Aprecia-se a mistura de cantos e de danças, e certos
refrães servem de pretexto para bailar e cantarolar, tal como as
fogueiras de São João para saltar e fazer rondas. Também as competições
desportivas possuem os seus adeptos: lutas, corridas, saltos
em altura e em comprimento, tiro ao arco são objecto de concursos
nas aldeias, entre os burgos, e também entre os pajens e escudeiros
que compõem a corte de um senhor. A caça, ocasião de festins e de
regozijo, permanece o desporto favorito e, bem entendido, justas
e torneios são as principais atracções dos dias de festa ou de grandes
recepções. As crianças, como em todas as sociedades do mundo,
imitam nos seus jogos os dos adultos, ou fazem intermináveis jogos
de escondidas e de malha.

Os divertimentos de interior não faltam. É sobretudo o xadrez;
durante as Cruzadas era jogado com fervor, tanto no exército cruzado
como no exército sarraceno, e são numerosos os tratados manuscritos
nas nossas bibliotecas. É sabido que o Velho da Montanha, o terrível
.senhor tios Assassinos, fez dom a São Luís de um magnífico tabuleiro
de marfim c ouro. Menos sábios, os jogos de mexas, quer dizer, de

LUX SOBRE A IDADE MEDIA

damas ou gamão, tinham também os seus adeptos. Mas eram sobre


tudo os dados que faziam furor; vadios e jograis arruinavam-se com
eles: Rutebeuf fez mais de uma vez essa amarga experiência e conta
em termos patéticos as esperanças incessantemente iludidas e o despertar
angustioso dos infelizes jogadores arruinados; joga-se aos dados
mesmo na casa real. Como é frequente o emprego de imprecações
nesta espécie de jogos, as autoridades tomam medidas contra os blasfemos:
em Marselha, aqueles que tinham esse mau hábito eram mergulhados
por três vezes num fosso lodoso, próximo do Vieux-Port.
Puniam-se igualmente aqueles que utilizavam dados viciados ou faziam
batota de qualquer outro modo. As crianças, essas, jogavam aos
ossinhos. Mais distintos e praticados na sociedade cortês eram os
diversos jogos de espírito: adivinhas, anagramas, pedaços rimados.
Christine de Pisan deixou-nos jogos para vender, pequenas peças
improvisadas, no género de: «Vendo-vos o meu cestinho» — plenos de
encanto e de poesia ligeira.


RÉGINE PERNOUD

evolução da arquitectura, manifesta es,:e espírito positivo, realista,
que por vezes fez tratar os nossos antepassados de «prosaicos» —

o que é talvez excessivo, mas mais próximo da verdade do que a
tendência romântica para ver neles seres fantasistas e descabelados.
Objectar-se-á o seu gosto pela poesia. Mas é que ao contrário
dos modernos, que viram nela de preferência um capricho, uma
«evasão», e no poeta uma espécie de boémio, um ser à parte, ou
um heredo-sinfilítico, os homens da Idade Média consideram a poesia
como uma forma natural de expressão; para eles, ela faz parte da
vida, ao mesmo título que as necessidades materiais ou, mais exactamente,
como as faculdades próprias do homem como o pensamento
e a linguagem. O poeta não é para eles um anormal, é ao
contrário um homem completo, mais completo do que aquele
que não é capaz de criação artística ou poética; não pensariam, como
Platão, em bani-lo da República, porque a poesia desempenha o seu
papel na sua república, tal como a eloquência na Grécia antiga.

Este sentido prático traduz-se, entre outras coisas, por uma
grande prudência perante a vida. Faz-se uso de tudo, mas com mesura.
O homem teve, na Idade Média, uma espécie de desconfiança instintiva
das suas próprias forças — que coexiste curiosamente com o entusiasmo
e a audácia dos grandes empreendimentos a que a época
assistiu. Um dos adágios que explicam este tempo é o de Roger Bacon:

Natura non vincitur, nisi parendo. [Só se pode vencer a natureza
obedecendo-lhe.] Professa-se então um grande respeito pela tradição,
pelo estado de facto, pelo costume, que pouco mais é que a constatação
desse estado de facto; tudo o que é consagrado pelo tempo
torna-se indestrutível, e as descobertas, em arte, em arquitectura, na
vida corrente, só se impõem quando apoiadas na experiência. Não se
procura inovar, mas sim, pelo contrário, fortificar aquilo que nos
é legado pelo passado, aperfeiçoando-o. A Idade Média é urna época
de empirismo: a vida não assenta sobre princípios determinados de
antemão, são os princípios directores da existência que resultam das
condições a que esta é obrigada a adaptar-se.

Existe um ponto de acusação muito revelador deste aspecto da
mentalidade medieval: é aquilo a que os juristas chamam: crime de
novidade. Designa-se deste modo tudo o que vem romper violenta e
brutalmente o curso natural das coisas, ou o seu estado tradicional,
desde a quebra de uma vedação até à desposessão de um direito de
que se gozava até então pacificamente. Esta «nova força», este acto
que rompe com um passado que havia dado as suas provas, temem-se
as suas consequências imprevisíveis; trata-se de uma espécie de humildade
perante a Criação: sabe-se que o homem pode ser ultrapassado
pelos acontecimentos por si próprio desencadeados e, a este título,

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

desconfia-se de tudo o que não foi sancionado pela tradição. Em
compensação, o modo de investigação ou de justificação mais corrente
consiste em fazer apelo à memória dos testemunhos mais idosos:
quando se prova que o direito contestado está em uso desde há
tempos imemoriais, todos se inclinam. É em virtude da mesma tendência
que um rendeiro que se instala numa terra e a cultiva tranquilamente
durante o tempo da prescrição acaba por ser considerado
legítimo proprietário seu: estima-se que aqueles que teriam fundamento
para oposição deveriam ter-se apercebido no decurso do prazo legal
de «ano e dia», durante o qual a novidade se transmutou em estado
de facto.

Mais significativa é ainda a noção que se tinha então da liberdade
individual. Ela não aparece, na Idade Média, como um direito ou um
bem absoluto. Seria antes considerada como um resultado: aquele
cuja segurança está assegurada, aquele que possui terras suficientes
para poder enfrentar os agentes do fisco e defender ele próprio o seu
domínio, esse é reputado livre, porque tem, de facto a possibilidade
de fazer o que lhe apraz. Os outros têm, por princípio; segurança
primeiro, e não parecem, aliás, sofrer de outro modo com a restrição,
imposta pela necessidade, à sua liberdade de movimento, nem reivindicar
esta como um direito preestabelecido. Não se trata aqui,
bem entendido, senão da liberdade individual, «atómica», segundo a
expressão de Jacques Chevalier, pois os direitos do grupo ao qual se
pertence, e que são considerados indispensáveis à sua existência, são
ao contrário encarniçadamente defendidos: liberdades familiares, corporativas,
comunais e outras são, se necessário, defendidas de armas
na mão.

Este sentido prático, este horror inato da abstracção e da ideologia
completam-se com um sentido do humor que vai muito longe. O homem,
na Idade Média, diverte-se com tudo; com ele, o desenho trans-
forma-se facilmente em caricatura e a emoção convive com a ironia.
É uma característica a não perder de vista quando se estuda a época,
pois mais de uma vez, ao levar certos textos demasiado a sério, mais
não se conseguiu do que desfigurá-los e torná-los pejados. Julgou-se
ver amostras dessa famosa «ingenuidade» medieval ou certas segundas
intenções surdas de vingança do fraco sobre o forte em passagens
em que o autor procurava divertir-se, e nada mais. Quando se esculpem
nas cadeiras do coro de uma igreja freiras de traços grotescos
em posturas ridículas, quando certo cronista, ao falar do fogo grego,
exclama, a propósito dessa «água» que irradiava o fogo: «(Ela) custa
mui caro, tal o faz bom vinho!», quando, nos fabliaux, o cura recebe
pauladas, não se deve ver nisso mais do que o sentido do ridículo,

o prazer de rir e de fazer rir. Nada escapa a esta tendência, nem

196 REGINE PERNOUD

mesmo aquilo que é julgado pela época como o mais respeitável;
chocamo-nos por vezes com essas cenas de taberna, de conversas
galhofeiras, introduzidas nos Mystères [Mistérios], e seria totalmente
impossível, nos nossos dias, reconstituir certas cenas religiosas ou oficiais
sem escandalizar o público habituado a mais gravidade. É sobretudo
percorrendo os manuscritos que se torna mais sensível essa
faculdade de misturar o sorriso com as mais austeras preocupações,
essa espécie de travessura natural que tornava os nossos antepassados
incapazes de se manterem sérios até ao fim: no seguimento de um
grave tratado sobre os diferentes pesos em uso e as suas equivalências,
encontramos, por exemplo, esta conclusão inesperada, acrescentada de
sua própria autoridade por um copista que torcia por certo o nariz
à sua tarefa: et pondus est mensura, et mensuram odit anima mea
[e o peso é a medida, e eu detesto a medida]! Outro, no seguimento
de uma obra de filosofia, formula tranquilamente este desejo sem
vergonha: Scriptori pro pena sua detur pulchra puella. [Pudesse o
copista, pela sua pena, ser presenteado com uma bela rapariga]!

Tudo isto sem transição, na mesma escrita que o resto da obra, e em
manuscritos destinados a graves personagens. Se passarmos aos desenhos
e miniaturas que ornam as páginas, são incontáveis os exemplos
de malícia ou ironia semeados aqui e ali, com uma veia que jorra
interminavelmente e que encontra o meio de se exercer mesmo nos
mais doutos tratados de filosofia.

Este humor medieval está, aliás, curiosamente ligado à fé religiosa
que anima a época e que há que ter presente também nos mais pequenos
pormenores da história ou da vida corrente. A sua fé ensina-
lhe, com efeito, a originalidade da pessoa divina, a quem nada
é impossível e que pode por conseguinte inverter as situações a seu
bel-prazer. O Credo quia absurdum, atribuído a Santo Agostinho,
faz parte da própria essência da vida medieval, para a qual a acção
divina acrescenta a todas as probabilidades da existência terrestre um
campo propriamente ilimitado de «impossíveis» realizáveis. As pequenas
cenas nas quais escultores e imagistas, do tempo se deleitaram
a representar, por exemplo, um galo arrastando unia raposa, ou unia
lebre deitando ao chão um caçador, não fazem mais do que traduzir
esse estado de espírilo, no qual a nota humorística está intimamente
ligada à crença num Deus Todo-Poderoso tornado homem.

Sc tentarmos resumir as preocupações da época, aperceber-nos-
emos de que elas cabem em duas palavras, dois pólos contrários,
mas não contraditórios: residência e peregrinação. Toda a existência
está então ferozmente centrada no lar, na família, na paróquia, no
domínio, no grupo a que pertence. Não há costume ou parte alguma
sua que não tenda a reforçar essa ligação, ou a fazer respeitá-la. Uma

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

cidade defende tão ciosamente as suas liberdades como um senhor
a sua castelania; as associações mostram-se tão intransigentes relativamente
aos seus privilégios como um pai de família em relação ao
seu feudo, por muito exíguo que seja; a residência (manoir), o local
em que se reside, é considerado como um santuário; isto sobressai
de tudo o que nos é possível conhecer da história medieval: direito
privado, instituições familiares e municipais — e a própria formação do
domínio real, resultado de uma paciente tenacidade, de sábias combinações
de heranças e de casamentos, nada mais é do que uma prova
entre outras desse espírito positivo e realista dos nossos antepassados
quando se trata de fortificar e de salvaguardar o seu património.

E, contudo, esses seres apegados à terra, ligados aos seus antepassados
e aos seus descendentes, estiveram em movimento perpétuo.
A Idade Média é ao mesmo tempo uma época em que se constrói
e uma época na qual as pessoas se movimentam — duas actividades
que poderão parecer inconciliáveis, e que no entanto coexistiram, sem
dramas nem dilacerações. Assistiu às maiores deslocações de multidões,
à mais intensa circulação conhecida na história do mundo,
exceptuada a nossa época. Que são as empresas coloniais, as dos
Gregos e as do século passado, ao lado desses êxodos de população
que marcaram as Cruzadas? E trata-se de êxodos fecundos, sem nada
de comum com esses lamentáveis rebanhos que são para nós uma
multidão em marcha. Ainda mal instalados numa costa hostil, conquistada
em feroz luta, esse punhado de senhores transplantados da
sua província da Flandres ou do Linguadoque revelam-se construtores,
juristas, administradores, com um espantoso génio de adaptação,
em países onde a língua, os costumes e o clima lhes eram desconhecidos
apenas alguns meses antes. Dois séculos bastaram para
ver nascer, viver e extinguir-se uma civilização original, forjada peça
a peça, e cujos restos ainda hoje nos maravilham.

Sabemos medir o trabalho que representa uma fortaleza como a
de Château-Gaillard ou uma catedral como a de Albi, mas o que é
difícil de imaginar é que uma e outra tenham sido edificadas por
personagens cuja vida inteira foi idas e voltas: desde o mercador que
abandona a sua loja Para ir às feiras da Champagne ou da Flandres,
ou para traficar nos entrepostos de África ou da Ásia Menor, até ao
abade que se vai embora inspeccionar os seus mosteiros, desde os
estudantes em marcha de uma universidade para outra até aos senhores
que visitam o seu condado ou aos bispos em visita à sua diocese,
desde os reis que partem para a cruzada até à populaça que marcha
para Roma ou Santiago de Compostela — todos eles, em maior ou
menor grau, participam nessa febre de movimento que faz do mundo
medieval um inundo em marcha. Quando Guillaumc, de Rubruquis,


198 REGINE PERNOUD

a convite de S. Luís, se desloca à corte do cã dos mongóis, pouco
se espanta de aí encontrar um ourives parisiense, Guillaume Boucher,
cujo irmão tinha loja no Pont au Change, e que, instalado na Horda
de Ouro, construía para os seus mecenas asiáticos uma «árvore mágica
», na qual serpentes douradas, enroladas à volta do tronco, serviam
leite, vinho e hidromel. O arquitecto Villard de Honnecourt vai até
ã Hungria, semeando pelos ares, se se pode dizer, a opus francigenum,
e é um francês, Étienne de Bonneuil, que constrói, na Suécia, a catedral
de Upsala.

Esta facilidade das partidas estava bem enraizada nos costumes.
A partir do momento em que é capaz de agir, quer dizer, desde a
idade de catorze ou quinze anos, o indivíduo tem, de acordo com
os costumes familiares, o direito e a possibilidade de se afastar, de
fundar uma família, de exercer uma actividade própria, e nada do
que lhe advém da herança paterna pode ser-lhe subtraído. Por muito
extraordinário que possa parecer, são os próprios laços que o fixam
ao solo que asseguram a sua liberdade. Um pai de família pode partir
para a cruzada, deixando para trás a terra, a mulher e os filhos: os
seus bens pertencem mais à família do que a si próprio, e pode ser
substituído por outros no seu ofício de gerente. O vagabundo que
existe nele não prejudica em nada o administrador, e nada se opõe
a que invista um após o outro os dois papéis. Este gosto da aventura
é tal que mesmo o servo, preso à gleba, tem permissão de a abandonar
para ir em peregrinação. Do mesmo modo que os costumes retêm

o homem no lugar que a natureza lhe fixou, assim também o espírito
do tempo compreende a necessidade de evasão que corrige e compensa
o sentido da estabilidade. Certos costumes autorizam mesmo o viajante
a apoderar-se pelo caminho daquilo que lhe for necessário para
se alimentar, a si e à sua montada, e os deveres de hospitalidade são
em toda a parte considerados dos mais sagrados que existem: recusar
asilo aos errantes é visto como uma falta grave, provocando uma
espécie de maldição.
A Idade Média conheceu, aliás, excessos nesta ordem de coisas:
são disso prova as medidas que a Igreja se viu obrigada a tomar
contra os clérigos vagabundos. E esta aptidão do camponês para
partir do lar provocou os movimentos de «pastorinhos» que se entregaram
por vezes às piores desordens. Mas não é menos verdade que
esta alegria das partidas era uma garantia de vida, uma fonte de
dinamismo incomparável. Foi assim que as troais se multiplicaram
na cristandade medieval, tal como entre a Europa e o Oriente. A época
das grandes descobertas é a Idade Média; foi então que se aclimataram
na nossa terra os frutos bizarros e magníficos: a laranja, o limão,
a romã, o pêssego e o alperce; foi graças aos cruzados que a Europa

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

conheceu o arroz, o algodão, a cana-de-açúcar, que aprendeu a servir-
se da bússola, a fabricar o papel, e também, infelizmente, a pólvora
dos canhões; ao mesmo tempo implantavam na Síria as nossas indústrias:
vidraria, tecelagem, tinturaria; os nossos mercadores exploravam

o continente africano, um arquitecto europeu construía a grande mesquita
de Tombuctu, e os Etíopes faziam apelo aos nossos artífices de
arte, pintores, cinzeladores, carpinteiros. Viu-se na Idade Média um
pacífico burguês de Toulouse, Anselme Ysalguier, trazer para a sua
cidade uma princesa negra que havia desposado em Gao, ao mesmo
tempo que um médico vindo das margens do Níger, ao qual recorria
o delfim, o futuro Carlos VII. Residência e peregrinação, realismo e
fantasia, tais são os dois pólos da vida medieval, entre os quais o
homem evolui sem o menor incómodo, unindo um e outro e passando
de um ao outro com uma facilidade que não voltou a recuperar desde
então.
Do conjunto sobressai uma confiança na vida, uma alegria de
viver de que não encontramos equivalente em mais nenhuma civilização.
Essa espécie de fatalidade que pesa sobre o mundo antigo, esse
terror do Destino, deus implacável ao qual os próprios deuses estão
submetidos, o mundo medieval ignorou-a totalmente. Podemos aplicar-
Ihe estes versos do poeta latino:

[...] metus omnes et inexorabile Fatum
Subjecit pedi bus [...].

Na sua filosofia, na sua arquitectura, na sua maneira de viver,
jorra por toda a parte uma alegria de existir, um poder de afirmação
perante as quais vem à memória a frase trocista de Luís VII, a quem
censuravam a sua falta de fausto: «Nós, na corte de Franca, só lemos
pão, vinho e alegria.» Frase magnífica, que resume a Idade Média,
época em que se soube, mais que em nenhuma outra, apreciai as
coisas simples e sãs e alegras: o pão, o vinho e a alegria.


:


PEQUENO DICIONÁRIO DA IDADE MÉDIA
TRADICIONAL


AMÉRICA (Descoberta da). — Remonta a cerca do ano 1000; deve-se aos
Viquingues, que levavam de seis a sete dias para ir da Noruega à
Gronelândia, onde foi criado um bispado. Os Gronelandeses, aquando
do apelo à Cruzada lançado pelo papa João XXII em 1327, enviaram
a Roma um carregamento de dentes de morsa e de peles de foca
para participarem nos custos da empresa.

ANO MEL (Terrores do). — Não mereceriam os historiadores do século
xvi, aos quais remonta esta invenção, ser conhecidos pelo seu sentido
do romanesco, pelo menos tanto como Michelet, que a eles foi buscar
a sua inspiração?

ARTE GÓTICA. — A palavra gótico, aplicada à arte medieval, permanece

o único aspecto «tenebroso» desta época, uma vez que não deve nada
aos Godos nem aos outros bárbaros e viu o dia na Ilha de França
nos meados do século XII.
ASILO (Direito de). — O direito da Idade Média assenta em bases totalmente
diferentes das do nosso. Essa diferença aparece com mais
evidência do que em qualquer outro lado nesse direito de asilo que
dá uma oportunidade mesmo ao criminoso; a nossa época, pelo
contrário, considera o priori todo o acusado como culpado, donde
a prisão porventura, à qual, pelo menos em princípio, tanto se expõe

o inocente como o criminoso.
BELPRAZER (Pois é este o nosso). — O primeiro soberano a fazer uso
desta fórmula não é outro senão Napoleão.

BURGUESIA. — Nasce cerca dos fins do século xi, aquando da extensão
das cidades; só começa a tomar parte efectiva no poder central em
fins do século XIII; o seu aparecimento coincide com o declínio da
Idade Média.

B0BSOI,A.— Aparece no Ocidente no século XII; descrita em 1269 por
Pérégrin de Maricourt; aperfeiçoada no século xiv.

CARRO DE. MÃO. — Empregue correntemente na Idade Média. A atribuição
da nua descoberta a Pascal, que nada acrescenta à glória deste, não
terá «Ido uma piada de mau gosto?

CATEDRAL DE ORLEAES. — Citada como o modelo do género pelos românticos;
data do século XVIII.


202 REGINE PERNOUD

CORPORAÇÕES. — A palavra data do século XVIII; Salvo algumas excepções,
de fins do século xv, pelo menos na sua forma estrita e exclusiva,
pois a burguesia, que sempre deu provas de mais espírito de casta
do que a nobreza, sem possuir os mesmos cargos, reserva paia si,
desde muito cedo, o monopólio da mestria.

CRUZADAS. — Não se reduzem, como se poderia pensar, a oito expedições.
Imagine-se uma Sociedade das Nações assente numa fé comum, em
lugar de num encontro provisório de interesses, e organizando expedições
além-mar.

EMPAREDAMENTO. — Os emparedados de Carcassona forneceram a um dos
nossos pintores académicos mais apreciados o tema de uma obra
comovedora pela boa vontade de que dá prava. Designava-se na
Idade Média, pelo termo emparedamento, a pena de prisão.

EPIDEMIAS. — Se fosse possível fazer uma lista das suas vítimas na
Idade Média e compará-la com as da tuberculose e do alcoolismo
no século passado, não é certo que o balanço fosse favorável ao
último (tendo-se ambos abatido sobre o povo, tal como a peste no
século xvi, não merecerão 0 nome de epidemias?).

FEITIÇARIA, FEITICEIROS. — Os abusos dos processos de feitiçaria foram
estigmatizados numa obra do P. von Spee, S. J., a Cautio criminalis,
aparecida em 1631. Espantar-se-ão talvez com esta data: é que os
processos em questão, se começaram a aparecer com o declínio da
Idade Média, no fim do século xv, só se tornaram realmente numerosos
no princípio do «Grande Século».

FEUDALISMO. — A única sociedade no mundo na qual a base das relações
de homem a homem tenha sido a fidelidade recíproca e a protecção,
devidas pelo senhor às gentes humildes do seu domínio. É difícil de
explicar por que é que o termo foi empregado a propósito dos trusts,
pois é impossível encontrar nos textos o menor esboço de entendimento
entre estes senhores para a exploração do povo.

FOMES. — Foram numerosas, sobretudo no século XI, mas é difícil fazermos
uma ideia exacta do que possam ter sido, porque as do nosso
tempo abarcam uma vasta região, ao passo que na Idade Média
são sempre localizadas: o valor de um ou dois departamentos, no
máximo, atingidos por um ano de más colheitas.

GRAÇA DE DEUS (Rei pela). — Os dois sentidos tomados por esta fórmula
são muito reveladores, pela sua oposição, da evolução da monarquia.
Na boca de um São Luís, esta expressão, «rei pela graça de l>eu«\
é uma fórmula de humildade que reconhece a mão do Criador nas
diversas tarefas atribuídas às suas criaturas; na boca de um
Luís XIV, a mesma fórmula torna-se a proclamação de um privilégio
de predestinado.

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA 2
IENE. — «Ser recebido pelo rei sentado na sua cadeira é um privilégio
conferido por uma autorização especial, a 'licença de demanda*
(Lavisse, Histoire de France [História de França]); o castelo do
Versalhes não comporta casa de necessidades, e Luís xiv só tomou
um único banho em toda a sua vida. Estas breves rememorações
do século XVII mostram a amplitude da evolução que se produziu
nos costumes no decurso do Renascimento. Bastará recordar que

o Paris de Filipe Augusto compreendia vinte e seis estabelecimentos
de banhos públicos.
HOMEM PROBO. — Represente o ideal medieval, tal como o homem honesto
do século XVII. Segundo Ménage, este deve possuir «a justeza do
espírito e a equidade do coração; uma é uma virtude do espírito que
combate os erros, a outra uma virtude do coração que impede o
excesso das paixões, quer para bem quer para mal». Na Idade Média,
as qualidades requeridas do homem probo (prud'homme) resumem se
nos versos seguintes:

Tant est prud'homme, si com semble
Qui a ces deux choses ensemble:
Valeur de corps et bonté d'âme (1).

INGENUIDADE. — «O Sr. Bédier fez-me rever o preconceito da inconsciência
e da ininteligência dos autores das canções de gesta. Porque
supor, com efeito, que não desejaram ou compreenderam aquilo que
fizeram?» (G. Lanson, Histoire illustrée de la littérature française
[História Ilustrada da Literatura Francesa], 2.ª ed.)

INOCENTES (Ossário dos). — Cf. «Pátio dos Milagres».

INQUISIÇÃO. — A pena do fogo foi aplicada pela primeira vez aos heréticos
por Frederico II, monarca «esclarecido», céptico, vária* ve/,n*
excomungado e tido por todos os historiadores como um precursor
do Renascimento. Foi no decurso desse mesmo Renascimento que
a Inquisição tomou, especialmente em Espanha e nos Países Baixos,

o carácter que guardou na história e na tradição.
MASMORRA. — Não existe nos documentos autênticos nenhum esboço de
explicação para o curioso mal-entendido que levou os romancistas
de imaginação a confundirem a prisão, de que todo o castelo feudal
estava aliás provido, com as suas caves de armazenamento.

MONGES. — Lembremos que os maiores sábios, os maiores artistas, os
maiores filósofos da Idade Média foram monges. (Cf. São TOMÁS
de Aquino, Roger Bacon, Frei Angélico, etc.)

(1) É homem probo, como parece, / Quem possui estas duas coisas
ao mesmo tempo: / Valor de corpo e bondade de alma.

204 RÉGINE PERNOUD

MORGADIO (Direito de). —Foi o método mais seguro que a Idade Média
encontrou para evitar o parcelamento provocado pela deserção dos
campos e para excitar, nos benjamins da família, o espirito de iniciativa.
Não terá sido ao direito de morgadio que a Inglaterra ficou
a dever o ter possuído o maior império do mundo?

NOTRE-DAME DE PARIS. — As multilações dos sans-culottes i não nos devem
fazer esquecer que é à Revolução Francesa que devemos a conservação
da sua fachada, se não Intacta nos seus pormenores, pelo
menos tal como está no conjunto: projectava-se com efeito, nos
últimos anos do século XVIII, demoli-la, para construir outra no
género da do Panteão.

NOTRE-DAME DE PARIS. — As mutilações dos sans-culottes (1) não nos devem
dos historiadores para quem a Idade Média cabe entre o Pátio dos
Milagres e o Ossário dos Inocentes. Pode se lamentar que não tenha
vivido o suficiente para conhecer essas flores da civilização que
são a zona dos arredores de Paris e certos subúrbios das nossas
grandes cidades; teria achado ai um tema mais autêntico para os
seus talentos de evocação.

PATRIOTISMO. — Se o nacionalismo remonta inegavelmente à Revolução
Francesa, o patriotismo já existia muito antes de Joana d'Arc, provam.
no os companheiros de Carlos Magno morrendo de rosto virado
para «France la doulce».

PERNADA (Direito de). — Perante certas interpretações, fundadas em
jogos de palavras (cf. «Bel-Prazer», «Emparedamento», «Feudalismo
»), das quais o «direito de pernada» é um exemplo impressionante,
poderemos perguntar-nos se a Idade Média não terá sido
vítima de uma conspiração de «historiadores».

QUIMERAS DA NOTRE-DAME. — Acrescentadas por Viollet-le-Duc aquando da
restauração do edifício no século XIX.

RAPOSA (Romance da). — Exemplo de criação popular, cuja fortuna foi
tal que a alcunha de Raposa chegou a substituir o nome do goupil,
e que Goethe não desdenhou adapta lo. Permanece como um espécime
desse gosto da mistificação, desse sentido de humor de que não 6
exagerado dizer se que é a chave da Idade Média. Humor gratuito
porque, ao contrário das fábulas antigas, não comporta nenhuma
intenção moralizadora.

RÃS. — Cf. «Tanques».

» Nome dado ao povo pelas classes abastadas da nobreza e burguesia
no Antigo Regime, pelo facto de as gentes do povo não usarem cal<;a.i
mas sim meias, aliás, geralmente de lã ou calções de burel «sem calças»

(N. do R.)
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

SERVIDÃO. — A diferença entre a servidão e a escravatura permite captar
ao vivo a oposição entre a sociedade antiga e a sociedade medieval,
pois, ao contrário do escravo, tratado como uma coisa, o servo é
um homem que possui família, lar, propriedade e se encontra livro
para com o seu senhor no momento em que paga a renda, em troca
da qual está protegido contra o desemprego, o serviço militar e os
agentes do fisco.
Suscitou vivos protestos: os dos servos, quando os quiseram
libertar em massa. Estes, pela sua resistência a essa medida, ficaram
na história sob o nome de «servos recalcitrantes».

TANQUES. — «O servo passa as noites a bater na sua água para fazer
calar as rãs que perturbam o sono do senhor.» O autor, que passou
duas horas durante a noite a bater a água de um charco para tentar
calar as rãs, oferece uma grossa recompensa a quem possa demonstrar
a verosimilhança da asserção do Sr. Devinat (Manuel d'histoire,,
Cours Moyen [Manual de História, Curso Médio], p. 11).


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RlCHÉ (Pierre), De l'éducation antique à 1'éducation chevalcresque,

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RICHÉ (Pierre), Éducation et culture dans l'Occident barbare, Le Seuil,

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ROUSSET (Paul), Histoire des croisades, Payot, 1957.
Sièole (Le) de Savnt Louis. Hachette, 1970. Ouvrage collectif sous la
direction de R. Pernoud.
ZUMTHOR (Paul), Histoire littéraire de la France médiévale, P. U. F., 1954.
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