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segunda-feira, 16 de maio de 2016

Luz sobre a Idade Média V



CAPITULO VI

AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A Idade Média, tal como se apresentava, corria o risco de
nunca conhecer senão caos e decomposição. Nascida de um império
desmoronado e de vagas de invasões sucessivas, formada por povos
desarmónicos que tinham cada um os seus usos, os seus quadros,
a sua ordem social diferentes, quando não opostos — e quase todos
um sentido muito vivo das castas, da sua superioridade de vencedores,
ela deveria apresentar, e não apresentou, de facto, nos seus começos,
senão o mais inconcebível esboroamento.

Contudo, verificamos que nos séculos XII e XVIII esta Europa tão
dividida, tão perturbada aquando do seu nascimento, atravessa uma
era de harmonia e de união tal como ela nunca conhecera e não
conhecerá talvez mais no decorrer dos séculos. Vemos, por oca ião
da primeira Cruzada, príncipes sacrificar os seus bens e os seus interesses,
esquecer as suas querelas, para tomarem juntamente a Cruz —
os povos mais diferentes reunirem-se num único exército, a Europa
inteira estremecer à palavra de um Urbano II, de um Pedro, o Eremita,
mais tarde de um São Bernardo ou de um Foulques de Neuilly.
Vemos monarcas, preferindo a arbitragem à guerra, submeter-se ao
julgamento do papa ou de um rei estrangeiro para regularizar as
suas dissensões. Encontramo-nos, facto ainda mais notável, perante
uma Europa organizada; ela não é um império, não é uma federação;
ela é: a cristandade.

É preciso reconhecer aqui o papel representado pela Igreja e
pelo papado na ordem europeia; eles foram, com efeito, factores
essenciais de unidade; a diocese, a paróquia, confundindo-se frequentemente
com o domínio, foram, durante o período de decomposição
da Alta Idade Média, as células vivas a partir das quais se reconstituiu
a nação. As grandes datas que deviam para sempre marcar a Europa
são as da conversão de Clóvis, assegurando no mundo ocidental a
vitória da hierarquia e da doutrina católicas sobre a heresia ariana,
c a coroação de Carlos Magno pelo papa Estêvão II, que consagra


REG1NE PERNO

o duplo poder, espiritual e temporal, cuja união formará a base da
cristandade medieval.
É preciso ter em conta, de uma maneira mais geral, a influência
do dogma católico que ensina que todos os filhos da Igreja são
membros de um mesmo corpo, como o lembram os versos de Rutebeuf:

Tous sont un corps en Jésus-Christ
Dont je vous moníre par 1'écrit
Que li uns est membre de 1'autre.


A unidade de doutrina, vivamente sentida na época, jogava a
favor da união dos povos. Carlos Magno compreendera-o tão bem
que, para conquistar a Saxónia, enviava missionários de preferência
a exércitos—por convicção, aliás, não por simples ambição; a história
repetiu-se no Império Germânico com a dinastia dos Otões-

Praticamente, a cristandade pode definir-se como a «universidade
» dos príncipes e dos povos cristãos obedecendo a uma mesma
doutrina, animados de uma mesma fé, e reconhecendo desde logo

o mesmo magistério espiritual.
Esta comunidade de fé traduziu-se numa ordem europeia assaz

desconcertante para cérebros modernos, bastante complexa nas suas

ramificações, grandiosa, contudo, quando a examinamos no seu

conjunto. A paz na Idade Média foi muito precisamente, segundo a

bela definição de Santo Agostinho, a «tranquilidade» desta ordem.

Um ponto central permanece fixo, o papado, centro da vida

espiritual; mas muito diversas são as suas relações com os diferentes

Estados. Alguns estão ligados à Santa Sé por títulos especiais de

dependência: é o caso do Império Romano-Germânico cujo chefe,

sem se encontrar, como se acreditou frequentemente, sob a suserania

do papa, deve, contudo, ser escolhido ou pelo menos confirmado por

ele; isto explica-se se nos reportarmos às circunstâncias que presi


diram à sua fundação e à parte essencial que aí tinha tomado o papado

Este não faz mais, aliás, do que conferir-lhe o seu título e julgar

casos de deposição.

Outros reinos são vassalos da Santa Sé; eles, num dado momento

da sua história, pediram aos papas a sua protecção; como os reis

da Hungria, recolocaram-lhe solenemente a sua coroa, ou, como os

reis de Inglaterra, da Polónia ou de Aragão, pediram-lhe que auten


ticasse os seus direitos, de modo que o selo de São Pedro ratifica

doravante e preserva as suas liberdades.

Outros, enfim, e entre estes a França, não tem nenhum laço de
dependência temporal com a Santa Sé, mas aceitam naturalmente

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

as suas decisões em matéria de consciência e também se submetem
de boa vontade à sua determinação arbitral.
Tal é, nas suas grandes linhas, o edifício da cristandade, como

o precisou Inocêncio III numa época em que ela já se encontrava
realizada na prática desde há vários séculos. Assenta essencialmente
numa harmonia de ordem mística entre os povos. Quando examinamos
os princípios do equilíbrio europeu, concebidos na altura do tratado
de Vestefália, não podemos impedir-nos de achar bastante pobre
esta dosagem das nacionalidades, esta agulha de balança fazendo as
vezes das sólidas bases sobre as quais se fundava a paz medieval.
Equivocamo-nos frequentemente sobre o carácter destas relações
entre a Igreja e os Estados; estamos habituados a ver na autoridade
espiritual e na autoridade temporal dois poderes claramente distintos
e, por vezes, esta «intrusão» do papado nos assuntos dos príncipes
foi julgada intolerável. Tudo se aclara se nos integrarmos na mentalidade
da época: não é a Santa Sé que impõe o seu poder aos príncipes
e aos povos, mas estes príncipes e estes povos, sendo crentes,
recorrem naturalmente ao poder espiritual, quer eles queiram fazer
fortalecer a sua autoridade ou respeitar os seus direitos, quer desejem
fazer solucionar as suas questões por um árbitro imparcial. Como o
enuncia Gregório X: «Se é dever daqueles que dirigem os Estados
salvaguardar os direitos e a independência da Igreja, é também dever
daqueles que detêm o governo eclesiástico tudo fazer para que os reis
e os príncipes possuam a plenitude da sua autoridade.» Os dois
poderes, em vez de se ignorarem ou de se combaterem, reforçam-se
mutuamente.

O que pôde prestar-se a confusão é que é geral, na Idade Média,
professar um maior respeito pela autoridade religiosa do que pela
autoridade laica, e julgar uma superior à outra, segundo o dito célebre
de Inocêncio III, «como a alma está para o corpo», ou «como o Sol
está para a Lua»: hierarquia de valores, que não arrasta necessariamente
uma subordinação de facto.

Além disso, é preciso não o esquecer, a Igreja, guardiã da fé,
é também juiz no foro íntimo e depositária dos juramentos. Ninguém,
na Idade Média, teria sonhado contestá-lo. Quando for cometido um
escândalo público, ela tem o direito e o dever de pronunciar a sua
sentença, de absolver o culpado ou de perdoar o arrependido. Ela,
portanto, apenas usa de um poder que lhe é universalmente reconhecido
quando excomunga um Roberto, o Piedoso, ou um Raimundo
de Toulouse. Do mesmo modo, quando, na sequência da sua conduta
repreensível ou das suas exacções, ela desobriga os súbditos do rei
Filipe Augusto ou do imperador Henrique IV do juramento de fidelidade,
exerce unia das suas funções soberanas porque, na Idade


74 REGI NE PERNO

Média, todo o juramento toma Deus por testemunha e, por consequência,
a Igreja, que tem o poder de unir e de desunir.

Que tenha havido abusos da parte da Santa Sé como da parte
do poder temporal, é coisa incontestável; a história das disputas do
papado e do Império está lá para o provar. Mas, no conjunto, podemos
dizer que esta tentativa audaciosa de unir os dois poderes, o
espiritual e o temporal, para o bem comum se salda num êxito. Era
uma garantia de paz e de justiça este poder moral do qual não se
podiam infringir as decisões sem correr perigos precisos, entre outros

o de se ver despojado da sua própria autoridade e afastado da estima
dos seus súbditos: enquanto Henrique II está em luta com Thomas
Beckett, não se sabe qual prevalecerá, mas, no dia em que o rei decide
desembaraçar-se do prelado por um assassínio, é ele o vencido. A
reprovação moral e as sanções que ela provoca têm então mais eficácia
que a força material. Para um príncipe interdito, a vida deixa
de ser tolerável: os sinos silenciosos à sua passagem, os súbditos fugindo
à sua aproximação, tudo isto compõe uma atmosfera à qual
mesmo os caracteres mais fortemente temperados não resistem. Mesmo
um Filipe Augusto acaba finalmente por se lhe submeter quando
nenhum constrangimento exterior o teria podido impedir de deixar
a infeliz Ingeburge gemer na sua prisão.
Durante a maior parte da Idade Média, o direito de guerra
privada continua considerado como inviolável pelo poder civil e pela
mentalidade geral; manter a paz entre os barões e os Estados apresenta,
portanto, imensas dificuldades, e, se não fosse esta concepção
da cristandade, a Europa corria o risco de nunca passar de um vasto
campo de batalha. Mas o sistema em vigor permite opor toda uma
série de obstáculos ao exercício da vingança privada. Em primeiro
lugar, a lei feudal exige que um vassalo que jurou fidelidade ao seu
senhor não possa apresentar armas contra ele; houve, evidentemente,
faltas, mas o juramento de fidelidade está, assim me:mo, longe de
ser uma simples teoria ou um simulacro: quando o rei de França
Luís VII vem em socorro do conde Raimundo V, ameaçado em
Toulouse por Henrique II de Inglaterra, este, ainda que dispondo de
forças muito superiores e assegurado da vitória, retira-se, declarando
que não pode cercar uma praça em que se encontra o seu suserano;
na ocasião, o laço feudal tinha livrado a realeza francesa de uma
situação particularmente perigosa.

Por outro lado, o sistema feudal maneja toda uma sucessão de
arbitragens naturais: o vassalo pode sempre recorrer de um senhor ao
suserano deste último; o rei, à medida que a sua autoridade se estende,
exerce cada vez mais o seu papel de mediador; o Papa, enfim, continua
o árbitro supremo. Basta, frequentemente, a reputação de jus-

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

tiça ou de santidade de um grande personagem para que se recorra,
assim, a ele; a história de França dá-nos mais do que um exemplo:
Luís VII é o protector de Thomas Beckett e o seu intermediário
aquando dos seus conflitos com Henrique II; São Luís impõe-se de
igual modo à cristandade quando pronuncia o célebre Dit d'Amiens
que acalmava os diferendos entre Henrique III de Inglaterra e os seus
barões.

Temos ainda que, qualquer nobre pode então, por vingança ou
por ambição, invadir as terras do seu vizinho, e que o poder central
não é suficientemente poderoso para substituir pela sua justiça a do
indivíduo — sem falar das guerras sempre possíveis entre os Estados.
A Idade Média não contestou o problema da guerra em geral mas,
por uma série de soluções práticas e de medidas aplicadas no conjunto
da cristandade, restringiu sucessivamente o domínio da guerra, as
crueldades da guerra, as durações da guerra. É assim, com leis precisas,
que se edificou a cristandade pacífica-

A primeira destas medidas foi a Paz de Deus, instaurada desde

o fim o século x1 : é também a primeira distinção que foi feita, na
história do mundo, entre o fraco e o forte, entre os guerreiros e as
populações civis. Desde a data de 1023 que o bispo de Beauvais faz
jurar ao rei Roberto, o Piedoso, o juramento da paz. É feita proibição
de maltratar as mulheres, as crianças, os camponeses e os
clérigos; as casas dos agricultores são, como as igrejas, declaradas
invioláveis. Re:erva-se a guerra para aqueles que estão equipados
para combater. É esta a origem da distinção moderna entre objectivos
militares e monumentos civis — noção totalmente ignorada pelo mundo
pagão. A interdição não foi sempre respeitada, mas aquele que a
transgredia sabia que se expunha a sanções temíveis, temporais e
espirituais.
Há, seguidamente, a Trégua de Deus, também inaugurada desde

o início do século xi, pelo imperador Henrique II, o rei de França
Roberto, o Piedoso, e o papa Bento VIII. Os concílios de Perpignan
e de Elne, datando de 1041 e 1059, já a haviam renovado quando, na
sua passagem por Clermont, em 1095, Urbano II a define e a proclama
solenemente, no decurso deste mesmo concílio que esteve na origem
das Cruzadas. Ela reduz a guerra no tempo, como a Paz de Deus
reduz no seu objecto: por ordem da Igreja, é proibido qualquer acto
de guerra desde o primeiro domingo do Advento até ao oitavo da
Epifania, desde o primeiro dia da Quaresma até ao oitavo da Ascen(
1) O concílio de Charroux, em 989, lança o anátema contra todo
aquele que entre pela força numa igreja e dela leve qualquer coisa, contra
todo aquele que roube os bens dos camponeses ou dos pobres, as suas
ovelhas, o seu boi, o seu burro.

REGI NE PERNOUD

são e, durante o resto do tempo, da quarta-feira à noite à segunda-feira
de manhã. Imaginamos o que eram estas guerras fragmentadas, aos
bocadinhos, que não podiam durar mais de três dias seguidos? Também
aqui há infracções, sujeito o transgressor a todos os riscos, e
também à vergonha. Quando Otão de Brunswick é derrotado, em
Bouvines, contra todas as expectativas, pelo exército muito inferior
em número de Filipe Augusto, não se deixa de ver aí o castigo daquele
que tinha ousado romper a trégua e travar o combate ao domingo.

Os príncipes cristãos tomam por vezes iniciativas que completam
e secundam as da Igreja. Filipe Augusto, por exemplo, institui a «quarentena-
do-rei»: um intervalo de quarenta dias deve obrigatoriamente
decorrer entre a ofensiva feita, e devidamente anotada por aquele
que a recebeu, e a abertura das hostilidades; sábia medida, que reserva

o tempo da reflexão e das conciliações de comum acordo. Este
mesmo intervalo de quarenta dias encontra-se nos prazos concedidos
aos pertencentes a uma cidade inimiga para voltar para a sua terra
e pôr os seus haveres em segurança quando rebenta uma guerra. Assim,
não poderia, na Idade Média, existir questão de sequestro ou de
campo de concentração.
Mas a grande glória da Idade Média é ter empreendido a educação
do soldado, é ter feito do soldado da velha guarda um cavaleiro.
Aquele que se batia por amor dos grandes golpes, da violência e da
pilhagem tornou-se o defensor do fraco; transformou a sua brutalidade
em força útil, o seu gosto pelo risco em coragem consciente, a sua
turbulência em actividade fecunda; o seu ardor, simultaneamente,
vivificou-se e disciplinou-se. O soldado tem doravante um papel a
desempenhar, e os inimigos que ele é convidado a combater são
precisamente aqueles em quem subsistem os desejos pagãos de massacre,
de devassidão e de pilhagem. A cavalaria é a instituição medieval
da qual com maior gosto se guardou a recordação, e justamente,
porque jamais, sem dúvida, se teve concepção mais nobre do título
de guerreiro. Tal como a encontramos instituída desde o início do
século XII, ela é realmente uma ordem e quase um sacramento. Contrariamente
à opinião geralmente espalhada, ela não emparelha com
a nobreza. «Ninguém nasce cavaleiro», diz um provérbio. Plebeus,
mesmo servos, a vêem ser-lhes conferida, e nem todos os nobres a
recebem; mas ser armado cavaleiro, é tornar-se nobre, e, entre as
máximas do tempo, uma pretende que «o meio de ser enobrecido
sem cartas é ser feito cavaleiro».

Ao futuro cavaleiro exigem-se qualidades precisas, o que traduz

o simbolismo das cerimónias no decurso das quais se lhe concede
o seu título. Deve ser piedoso, dedicado à Igreja, respeitador das
suas leis: a sua iniciação começa com uma noile inteira passada cm
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

orações diante do altar sobre o qual está deposta a espada que ele
cingirá. É a vigília de armas, depois da qual, em sinal de pureza,
ele toma um banho e depois ouve missa e comunga. Entregam-lhe
então solenemente a espada e as esporas, lembrando-lhe os deveres
do seu cargo: ajudar o pobre e o fraco, respeitar a mulher, mostrar-se
corajoso e generoso; a sua divisa deve ser «Valentia e generosidade».
Vêm de seguida a armadura e a rude colée, a pranchada dada sobre
o ombro: em nome de São Miguel e de São Jorge, ele é investido
cavaleiro.

Para cumprir bem os seus deveres precisa ser tão hábil como
bravo: a cerimónia prossegue então com uma série de provas físicas
que são outros tantos testes destinados a experimentar o seu valor.
Ele entra na liça para «correr um alvo» — quer dizer, a cavalo, derrubar
um manequim —, e para desmontar em torneio os adversários
que o venham desafiar. Os dias em que são armados novos cavaleiros
são dias de festa, em que cada um rivaliza em proezas, sob os olhos
dos castelões, da corte senhorial, e do povo miúdo concentrado nas
circunvizinhanças do campo de torneios. Destreza e vigor físico,
benevolência e generosidade, o cavaleiro representa um tipo de
homem completo cuja beleza corporal é acompanhada pelas mais
sedutoras qualidades:

Tant est prud,homme si comme semble
Qui a ces deux choses ensemble:
Valeur du corps et bonté d'âme.


Aquilo que se espera dele não é apenas, como no ideal antigo,
um equilíbrio, um meio termo, mens sana in corpore sano, mas um
máximo; ele é convidado a ultrapassar-se a si próprio, a ser ao mesmo
tempo o mais belo e o melhor, colocando a sua pessoa ao serviço de
outrem. Aqueles romances nos quais os heróis da Távola Redonda
vão sem cessar em busca do mais maravilhoso feito heróico apenas
traduzem o ideal exaltante oferecido então àquele que sente a vocação
das armas. Nada de mais «dinâmico», para empregar uma expressão
moderna, do que o tipo do bom cavaleiro.

A cavalaria pode perder-se, do mesmo modo que se merece:
aquele que falta aos seus deveres é destituído publicamente; cortam-
lhe as suas esporas de ouro rentes ao salto, em sinal de infâmia:

Honni soit hardement ou il n'a gentillesse

dizia-se, o que equivalia a exprimir que o puro valor guerreiro não
era nada sem nobre/a de alma.


78 REG1NE PERNO

De facto, a cavalaria foi o grande entusiasmo da Idade Média;

o sentido da palavra: cavalheiresco, que ela nos legou, traduz muito
fielmente o conjunto de qualidades que suscitavam a sua admiração.
Basta percorrer a sua literatura, contemplar as obras de arte que
dela nos restam, para ver por todo o lado, nos romances, nos poemas,
nos quadros, nas esculturas, nos manuscritos com iluminuras, surgir
este cavaleiro do qual a bela estátua da catedral de Bamberg representa
um perfeito espécime. Por outro lado, é suficiente ler os nossos
cronistas para constatar que este tipo de homem não existiu apenas
nos romances e que a encarnação do perfeito cavaleiro, realizada
no trono de França na pessoa de um S. Luís teve, nesta época, uma
multidão de émulos.
Mostra-se, nestas condições, quais podiam ser as características
da guerra medieval; estritamente localizada, reduz-se, frequentemente,
a um simples passeio militar, à tomada de uma cidade ou de um
castelo. Os meios de defesa são então muito superiores aos meios de
ataque: as muralhas, os fossos, de uma fortaleza garantem a segurança
dos sitiados; uma corrente estendida de parte a parte da entrada
de um porto constitui uma salvaguarda, pelo menos provisória. Para

o ataque a quase nada se recorre senão às armas de mão: a e pada,
a lança. Se um belo corpo a corpo arranca dos cronistas gritos de
admiração, eles só têm, em contrapartida, desdém, pelas armas de
covardes, que são o arco ou a besta, que diminuem os riscos, mas
também as grandes façanhas. Para cercar uma praça, utilizam-se
máquinas: catapultas, manganelas, como a sapa e a mina, mas confia-
se sobretudo na fome e na duração das operações para submeter
os sitiados. Também as torres de menagem estão providas em conformidade:
enormes provisões de cereais amontoam-se em vastas caves,
das quais a lenda romântica fez «masmorras» 2, e arranjam-se de modo
a ter sempre um poço ou uma cisterna no interior da praça-forte.
Quando uma máquina de guerra é demasiado mortífera, o papado
proíbe o seu emprego; o uso da pólvora de canhão, cujos efeitos e
composição se conhecem desde o século XIII, só começa a propagar-se
no dia em que a sua autoridade já não é suficientemente forte e em
que já se começam a esboroar os princípios da cristandade. Enfim,
como escreve Orderic Vital, «por temor de Deus, por cavalaria, procurava-
se aprisionar de preferência a matar. Guerreiros cristãos não
têm sede de espalhar sangue». É corrente ver, no campo de batalha,
o vencedor perdoar àquele que desmontou e que lhe grita obrigado.
(2) O desprezo é tanto mais espantoso visto que estas vastas caves
servindo de reserva, apenas com um orifício circular no meio da abóbada,
pelo qual se faziam passar os cestos para tirar o grão, existem
ainda em certos países, na Argélia, por exemplo.
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

Citou-se como exemplo a batalha de Andelys, conduzida por Luís VI
em 1119, na qual, entre novecentos combatentes, se assinalam três
mortos ao todo.

Os princípios da cristandade são prejudiciais ao patriotismo?
Acreditou-se durante muito tempo que era preciso fazer remontar a
ideia de pátria a Joana d'Arc. De facto, tudo contradiz esta asserção.
A expressão «França, a doce» encontra-se na Chanson de Roland

{Canção de Rolando] — e nunca se imaginou outra mais amável para
qualificar o nosso país. Os poetas não mais cessaram de a designar
sob este epíteto:

Des pays esí douce France la fleur3

lê-se em Andrieu controdit e, no Roman de Fauvel:

Le beau jardin de grâces plein
Ou Dieu, par espéciauté,
Planta les lys de royauté [...]
Et d'autres fleurs à grand plenté:
Fleur de paix et fleur de justice,
Fleur de foi et fleur de franchise,
Fleur d,amour et fleur épanie
De sens et de chevalerie [...]
Cest le jardin de douce France [...] 4.


Impossível evocar a sua pátria com mais ternura. E se passarmos
ao exame doo factos encontramos, desde a data longínqua de 1124, a
prova mais convincente da existência do sentimento nacional: trata-se
da tentativa de invasão da França pelos exércitos do imperador Henrique
V, dirigidos contra o nosso país seguindo as rotas seculares das
invasões, ao nordeste da França, em direcção de Reims; assiste-se
então a um levantamento de armas geral em todo o reino; os mais
turbulentos barões, entre os quais um Thibaut de Chartres, então em
plena revolta, esquecem as suas querelas para virem agrupar-se sob o
estandarte real, a célebre auriflama vermelha franjada de verde, que
Luís VI tomara no altar de São Dinis, de modo que, perante esta
massa de guerreiros surgida espontaneamente do conjunto do país, o

(3) Dos países é a doce França a flor.
(4) O belo jardim cheio de graças / Onde Deus, por preferência, /
Plantou os lírios da realeza [...] / E outras flores em grande abundância:
/ A flor da. paz e a flor da justiça, / A flor da fé e a flor da franqueza, /
A flor do amor e a flor aberta / do senso e do cavalheirismo [...] / É o
jardim da doce França [...].

RÉGIE PERNUD

imperador não ousou insistir e partiu- A noção de pátria estava, portanto,
de de esta época, suficientemente fixa para provocar uma coligação
geral e tinha-se consciência, através da diversidade e do esboroamento
dos feudos, de fazer parte de um todo. Esta noção devia
afirmar-se ainda com brilho, um século mais tarde, em Bouvines,
e a explosão de alegria que suxitou, em Paris e em todo o reino,

o anúncio da vitória real testemunha-o suficientemente. O patriotismo,
nesta época, apoia-se na mais segura das bases, que é o amor da terra,
o apego ao solo, mas sabe, em caso de necessidade, manifestar-se
para a França inteira, para o «jardim da doce França».





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