Luz sobre a Idade Média VI
PÍTULO VII
A IGREJA
A história da Igreja está tão intimamente ligada à da Idade Média
em geral que é incómodo fazer um capítulo à parte; seria preferível,
sem dúvida, estudar, a propósito de cada característica da sociedade
medieval, ou de cada etapa da sua evolução, a influência que ela
exerceu ou o papel que nela desempenhou \ É, aliás, impossível, ter
uma visão justa da época se não se possui algum conhecimento da
Igreja, não só nas suas grandes linha:, mas também em pormenores
como a liturgia ou a hagiografia, e é a primeira recomendação que
se faz aos aprendizes-medievistas, isto é, aos alunos da École des
Chartes, a de se familiarizarem com eles.
Apreenderemos de imediato a importância do seu papel se nos
reportarmos ao estado da sociedade durante os séculos a que se convencionou
chamar a Alta Idade Média: período de esboroamento de
forças, durante o qual a Igreja representa a única hierarquia organizada.
Face à de agregação de todo o poder civil, um ponto permanece
estável, o papado, resplandecendo no mundo ocidental na pessoa dos
bispos; e mesmo nos períodos de eclipse que a Santa Sé sofreu, o
conjunto da organização permanece sólido. Em França, o papel dos
bispos e o dos mosteiros é capital na formação da hierarquia feudal.
Este movimento que leva a arraia-miúda a procurar a protecção dos
grandes proprietários, a confiar-se a eles por actos de recomendação
(commendatio) que vemos multiplicarem-se desde o fim do Baixo
Império, só podia funcionar a favor dos bens eclesiáticos; agrupava-se
í. volta dos mosteiros mais facilmente do que à volta dos senhores
líticos. «Vive-se bem sob o báculo», dizia um adágio popular, traduzindo
o provérbio latino Jugum ecciesie, jugum dilecte. Abadias
' Por exemplo, trabalhos recentes valorizaram a origem não apenas
rnli^>rh>.síi, mas propriamente eucarística das associações medievais: a
procissão do Santo Sacramento foi a «causa directa» da fundação das
confrarias operárias. Ver, a este propósito, a bela obra de G. Espinas,
Lew origines du droit d'association (Lille, 1943) em part. t. I, p. 1031.
RÉGIE PERNO
como Saint-Germain-des-Prés, Lérins, Marmoutiers, São Vítor de
Marselha, viram assim acrescentarem-se as suas possessões;. Do mesmo
modo, os bispos tornaram-se frequentemente os senhores temporais
de toda ou parte da cidade da qual haviam feito a sua metrópole e
cooperam activamente a defendê-la das invasões. A atitude do bispo
Gozlin por ocasião do ataque de Paris pelos Normandos está longe de
constituir um facto isolado e, frequentemente, a própria arquitectura da
igreja traz a marca desta função militar que era então, para todos
aqueles que possuíam algum poder, um dever e uma necessidade: é o
caso das Santas Marias do Mar ou das igrejas fortificadas da
Thiérache.
A grande sabedoria de Carlos Magno foi compreender o interesse
que apresentava esta hierarquia solidamente organizada e que factor
de unidade a Igreja podia ser para o Império. De facto, a lei católica
era a única a poder cristalizar as possibilidades de união que se revelavam
graças ao advento da dinastia corolíng>a, a poder cimentar uns
aos outros estes grupos de homens dispersos refugiados nos seus
domínios. Exactamente como aceitava a feudalidade, achando mais
útil servir-se do poder dos barões do que combatê-lo, conduziu, favorecendo
a Igreja, a exaltação da cristandade-A sua coroação em
Roma pelo papa Estêvão II continua a ser uma das grandes datas
da Idade Média, associando para séculos o poder espiritual e o poder
temporal. A doação de Pepino acabava de fornecer ao papado o
domínio territorial que devia constituir a base do seu magistério dou
trinal; recebendo a sua coroa das mãos do papa, Carlos Magno afir
mava simultaneamente o seu próprio poder e o carácter deste poder,
apoiando-se em bases espirituais para estabelecer a ordem europeia.
O papado dera-se num corpo, o Império dá-se numa alma.
Daí esta complexidade da sociedade medieval, tanto civil como
religiosa. Domínio espiritual e domínio temporal, que desde a Renascença
se olharam cada vez mais como distintos e separados, aos
quais se tentou definir os limites respectivos, e que se tendeu a ver
ignorarem-se mutuamente, estão então continuadamente misturados.
Se se distingue o que pertence a Deus e o que pertence a César, os
mesmos personagens podem alternadamente representar ambos e os
dois poderes completam-se. Um bispo, um abade, são também administradores
de senhorios, e não é raro ver a autoridade laica e a
autoridade religiosa partilhar uma mesma castelania ou uma mesma
cidade; um caso típ>co é fornecido por Marselha, onde coexistem
a cidade episcopal e a cidade de visconde, mesmo com um enclave
reservado ao capítulo e chamado a cidade das Torres. Este poder
fundiário do clero resulta simultaneamente de fados económicos
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA
e sociais e da mentalidade geral da época em que a necessidade de
uma unidade moral compensa a descentralização.
Semelhante ordem era inseparável de perigos; as lutas do Sacerdócio
e do Império provam que esta separação muito delicada a fazer
entre o reino de Deus e o de César não foi sempre realizada na perfeição:
houve usurpações de ambas as partes; a questão das Investiduras,
em particular, torna públicas as pretensões dos imperadores
em se imiscuir em questões dependentes da hierarquia eclesiástica.
A França é, sem dúvida, um dos países em que se soube, com a
maior justeza, realizar esta síntese entre o poder espiritual e o poder
temporal, e os Capetianos, até Filipe, o Belo, conseguiram, no seu
conjunto, conciliar a defesa dos seus interesses com o respeito da
autoridade eclesiástica, não por um equilíbrio precário, mas por essa
visão exacta das coisas e por esse desejo de justiça que desde o
século XII levaram um Luís VII a ser escolhido como árbitro nos
conflitos que opunham os dois grandes poderes da cristandade: o
imperador Frederico Barba-Ruiva e o papa Alexandre III.
Pelo seu lado, a Igreja nem sempre soube defender-se das cobiças
materiais que são para ela a mais temível das tentações. É a grave
censura que se pode fazer ao clero medieval, a de não ter dominado
a sua riqueza. Este defeito foi vivamente sentido na época. Abundam
os provérbios que manifestam que o povo dava a sua preferência aos
clérigos que praticavam a pobreza evangélica: «Nunca monge rico
dirá boa canção», e ainda: «Báculo de madeira, bispo de ouro, bispo
de madeira, báculo de ouro». Admitem-se os rendimentos do clero:
«Quem altar serve, de altar deve viver», mas declaram-se contra,
como é justo, os abusos, dos quais, em demasiados casos, ele não sabe
livrar-se, sobretudo a cobiça:
El si ils vont la messe ouír
Ce ríest pas pour Dieu conjouir
Ains est pour les deniers, avoir2.
Assim se exprime Rutebeuf, que renova mais de uma vez as suas
críticas:
Toufoiírs veulent, sans donner, prendre
Toujours achèterrt sans rien vendre;
lis tollent [prennent], Von ne leur tolt rien 3.
(2) E se vão a missa ouvir / Não é para estarem com Deus / Antes ó
intra colher os dinheiros.
(3) Sempre (querem, sem dar, receber / Sempre mercam sem nada
render; 'Eles tiram, m
REGI NE PERNO
Esta avareza, segundo ele, corrompeu até a corte de Roma:
Qui argent porte à Rome assez tôt provende a:
On ne les donne mie si com Dieu commanda;
On sait bien dire à Rome: si voil impetrar, da,
Et si non voilles dar, anda la voie, anda! *
Se os ataques param perante a personalidade do papa, os cardeais
são frequentemente acusados desta afeição ao dinheiro que faz distribuir
as prebendas e os benefícios aos mais ricos, não aos mais
dignos. E sabe-se também que protestos vigorosos suscita este nepotismo
e o dos bispos:
A leurs neveux, qui rien ne valent
Qui en leurs lits encore étalent
Donnent provendes, et irigalent [s'amusent]
Pour les deniers que ih emmallent [encaissent] 3.
Étienne de Fougères, a quem são devidos estes versos, dá conse.
lhos salutares sobre esta questão àqueles que têm a missão de nomear
os pastores dos fiéis:
Ordonner doit bon clerc et sage
De bonne moeurs, de bon aage,
Et né de loyal mariage;
Peu ne me chaut de quel parage [origine]
Ne doit nul prouvere ordonner,
Se il moustier lui veut donner,
Que il ne sache sermonner,
Et la gent bien arraisonner 6.
Esta riqueza devia inevitavelmente arrastar uma decadência e
um relaxamento nos costumes, dos quais a Igreja se defendeu através
de reformas sucessivas. É Rutebeuf ainda que se ergue, entre outros,
(4) Quem dinheiro entrega a Roma bastante cedo tem prebenda; / Nada
se lhe dá se se obedece a Deus; / Diz-se vulgarmente em Roma:
se queres obter, dá, / B se não queres dar, põe-te a andar!
(5) Aos sobrinhos que nada vaiem / Que nos seus leitos ainda se
expõem / Dão prebendas, e divertem.se/Com os dinheiros que recebem.
(6) Deve-se ordenar um bom e sábio clérigo / De bons costumes, ilibou
idade, / E nascido de honesto casamento; / Pouco importa qual a
origem, / Nenhum prior deve ordenar, / Se o mosteiro lhe quiser dar, /
Que não saiba pregar um sermão, / E as gentes persuadir.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA
contra esta apatia de certos clérigos preocupados antes de tudo em
se aproveitarem dos seus bens materiais:
Ah! prélats de Saint Église
Qui, pour garder les corps de bise
Ne voulez aller aux matines,
Messire Geoffroy de Sargines
Vous demande dela de la mer.
Mais je dis cil fait ú blâmer
Qui rien radie plus vous demande
Fors bons vins et bonnes viandes
Et que le poivre soit bien fort [...] 7.
Estas fraquezas estão na origem das crises que, por diversas
vezes, a Igreja medieval atrav&sa e dos grandes movimentos que a
agitam. A evolução do clero regular dá muito exactamente conta
da evolução geral da Igreja. Nos primeiros séculos, os monges beneditinos
realizam um trabalho prático: são cultivadores de baldios,
abrindo o caminho ao Evangelho com a relha do seu arado; abatem
florestas, secam pântanos, aclimatam a vinha e semeiam o trigo; o seu
papel é eminentemente social e civilizador; são eles também que
guardam para a Europa os manuscritos da Antiguidade e fundam
os primeiros centros de erud;ção. Respondendo às necessidades da
sociedade que evangilizam, foram pioneiros e educadores, ajudando
poderosamente ao progresso material e moral desta sociedade. A^ ordens
que se fundam depois têm um carácter completamente diferente:
franciscanos, dominicanos, têm um fim em primeiro lugar doutrinal;
representam uma reacção precisamente contra ese abuso das riquezas
que se censura à Igreja do seu tempo e contra as heresias que a
ameaçam. Ao mesmo tempo, acentuam o movimento de reforma, já
desenhado por duas vezes com os monges negros de Cluny e os
monges brancos de Clairvaux e de Citeaux. Assim, a própria Igreja
sentira os perigos a que a expunha o seu lugar no mundo medieval
e remediava-os, continuando a fazer face às necessidades novas que
se apresentavam: aos perigos incorridos pelos Lugares Santos, às
dificuldades sentidas pelos peregrinos que os visitam, opõe o auxílio
guerreiro dos Templários e o auxílio caritativo dos Hospitalários.
7
Ah! prelados da Santa Igreja / Que, para pouparem o corpo à
invernia, / Não querem ir às matinas, / O distinto Geoffroy de Sargines /
Vos demanda de além-mar. / Mas digo-vos se aquele vos condena / Que
ninguém mais vos demande / Excelentes vinhos e excelentes carnes / E
que se carregue bem na pimenta ...
86 REGI NE PERNO
Cada estado de facto suscita da sua parte novas iniciativas, através
das quais se pode seguir toda a marcha de uma época.
É mais difícil deslindar a influência moral exercida pela Igreja
nas instituições privadas porque a maior parte das noções que lhe
são devidas entraram de tal modo nos costumes que temos dificuldade
em nos darmos conta da novidade que elas apresentavam. A igualdade
moral do homem e da mulher, por exemplo, representa um conceito
inteiramente estranho à Antiguidade; a questão nem sequer se tinha
posto. De igual modo, na legislação familiar, era uma profunda originalidade
substituir ao direito do mais forte a protecção devida aos
fracos; o papel do pai de família e do proprietário fundiário encontrava-
se completamente modificado. Face ao seu poder, proclamava-se
a dignidade da mulher e da criança e fazia-se da propriedade uma
função social. O modo de encarar o casamento, segundo as ideias
cristãs, era também radicalmente novo: até então só se vira a sua
utilidade social e se admitira, por consequência, tudo o que não
arrastava desordens deste ponto de vista; a Igreja, pela primeira vez
na história do mundo, via o casamento em relação ao indivíduo,
e considerava nele, não a instituição social, mas a união de dois
seres para desabrochamento pessoal, para a realização do seu fim
terrestre e sobrenatural; isto arrastava, entre outras consequências,
a necessidade de uma livre adesão em cada um dos cônjuges, dos
quais ela fazia os ministros de um sacramento, tendo o padre como
testemunha, e a igualdade de deveres para ambos. Até ao concílio
de Trento as formalidades da Igreja são muito reduzidas, visto que
basta a troca de juramentos perante um padre: «Tomo-te por esposo
— Tomo-te por esposa», para que o casamento seja válido; é em casa
que se passam as cerimónias simbólicas: beber pela mesma taça, comer
do mesmo pão:
Boire, manger, coucher ensemble
Foní mariage, ce me semble8
tal é o adágio de direito consuetudinário, ao qual se acrescenta no
século xvi: «Mas é preciso que a Igreja passe por lá.»
Seria ainda necessário assinalar a influência exercida pela doutrina
eclesiástica no regime de trabalho; o direito romano apenas
conhecia, nos contratos de arrendamento ou de venda, a lei da oferta
e da procura, enquanto o direito canónico e depois dele o direito
consuetudinário submetem a vontade dos contraentes às exigências
da moral e à consideração da dignidade humana. Isto devia ter uma
(s) Beber, comer, dormir juntos, / Fazem o casamento, parece-me
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA
profunda influência nos regulamentos dos mestres, que proibiam à
mulher os trabalhos demasiado fatigantes para ela, a tapeçaria de tear
alto, por exemplo; o resultado foram também todas aquelas precauções
de que se rodeavam os contratos de aprendizagem e o direito de visita
concedido aos jurados, tendo por fim controlar as condições de
trabalho do artesão e a aplicação dos estatutos. Sobretudo, é preciso
apontar como muito revelador o facto de ter alargado ao sábado de
tarde o repouso de domingo, no momento em que actividade económica
se amplifica com o renascimento do grande comércio e o desenvolvimento
da indústria.
Uma revolução mais profunda tinha de ser introduzida pelas
mesmas doutrinas no concernente à escravatura. Notemos que a
Igreja não se ergueu contra a instituição propriamente dita de escravatura,
necessidade económica das civilizações antigas. Mas lutou
para que o escravo, tratado até então como uma coisa, fosse daí em
diante considerado como um homem e possuísse os direitos próprios
da dignidade humana; uma vez obtido este resultado, a escravatura
encontrava-se praticamente abolida; a evolução foi facilitada pelos
costumes germânicos que conheciam um modo de servidão muito
suavizado; o conjunto deu lugar à servidão medieval, que respeitava
os direitos do ser humano e apenas introduzia, como restrição à sua
liberdade, a ligação à gleba. É curioso constatar que o facto paradoxal
da reaparição da escravatura no século XVI, em plena civilização
cristã, coincide com o retorno geral ao direito romano nos costumes.
Numerosas concepções próprias das leis canónicas passaram
assim para o direito consuetudinário. O modo como a Idade Média
encara a justiça é, deste ponto de vi ta, muito revelador, porque a
noção de igualdade espiritual dos seres humanos, estranha às leis
antigas, aí se manifesta geralmente. É neste sentido que foram introduzidas,
na continuação dos tempos, diversas reformas, por exemplo
no que respeita à legislação dos bastardoj, tratados mais favoravelmente
pelo direito eclesiástico do que pelo direito civil, porque eles
não são considerados responsáveis pela culpa à qual devem a vida.
Fm direito canónico, uma pena infligida tem como fim, não a vingança
da injúria ou a reparação para com a sociedade, mas a emenda
do culpado, e este conceito, também ele inteiramente novo, não deixou
de modificar o direito consuetudinário. A sociedade medieval conhece
assim o direito de asilo, consagrado pela Igreja, e é bastante desconcertante,
para a mentalidade moderna, ver oficiais de justiça
sofrerem uma condenação por terem ousado penetrar nas terras de
uni mosteiro a fim de aí procurar um criminoso; é, contudo, o que
aconleceu, entre outros, ao jurista Beaumanoir. Acrescentemos que
os tribunais eclesiásticos rejeitavam o duelo judiciário bem antes
RÉGIE PERNOUD
da sua prescrição por Luís IX, e que foram os únicos, até à ordem
de 1324, a prever perdas e danos para a parte lesada. A Idade Média,
sob a mesma influência, conhecia a gratuidade da justiça para os
pobres, que recebiam mesmo, se necessário, um advogado oficial.
O culpado só era declarado tal uma vez feita a prova, o que significa
que se ignorava a prisão preventiva-
A Igreja, como toda a sociedade medieval, goza de privilégios,
o principal dos quais consiste precisamente em possuir os seus próprios
tribunais. É o privilegium fori, reconhecido a todos os clérigos e
àqueles que, pela sua profissão, estão ligados à vida clerical, por
exemplo, os estudantes e os médicos. O papel dos «provisorados»
ou tribunais eclesiásticos, na Idade Média, foi tanto mais amplo
quanto o número de pessoas dependendo directa ou indirectamente
do clero era então imenso e, como o título de clérigo se aplicava de
um modo infinitamente menos restrito do que nos nossos dias, houve
frequentemente confusão e contestações entre a justiça real ou senhorial
e a justiça eclesiástica. Os clérigos eram todos aqueles que tinham
um modo de vida clerical; esta definição bastante vaga tinha o defeito
de convir tanto àqueles que, mestres ou alunos, frequentavam a
Universidade, como aos monges e aos padres; fundamentaram-se por
vezes em.sinais exteriores, como a tonsura ou o vestuário, mas estes
atributos podiam ser usurpados por aqueles que preferiam a justiça
do direito canónico à do direito consuetudinário e daí o provérbio:
«O hábito não faz o monge.» De um modo geral, consideraram-se
clérigos aqueles que se submetiam às obrigações da vida clerical,
em particular no que respeita à interdição do casamento, que, aliás,
só se estendia, então, aos clérigos que recebiam as ordens maiores,
quer dizer, aos diáconos e aos padres. No século XII esta interdição
é aplicada aos subdiáconos, mas não às ordens menores que não eram
então consideradas como tendo de levar forçosamente ao sacerdócio.
Os outros clérigos podiam tornar a casar em justas bodas, de de
que cum única et virgine, uma só vez, e com uma jovem. Casar com
uma viúva, ou voltar a casar, era para um clérigo expor-se a ser taxado
de bigamia, termo que várias vezes consentiu confusão.
Uma série de medidas veio regular e restringir na Idade Média
os direitos dos clérigos no que respeita ao regime de sucessões; tratava-
se, de facto, de impedir que, na sequência de testamentos feitos
em favor de clérigos, a maior parte das terras acabasse por voltar
para a Igreja. Também os clérigos deviam renunciar às suas. sucessões,
pelo menos no respeitante aos bens imobiliários, e isto constituía
uma contrapartida dos privilégios eclesiásticos. Igualmente para os
impostos as suas obrigações não eram as mesma; que as dos laicos;
os curas de paróquia recebiam, em geral, a dízima, contada, segundo
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA
as províncias, de modos diferentes: «de dez molhos, um», ou o undé"
cimo molho, ou mesmo, como no Berry, o duodécimo ou o décimo
terceiro. Em compensação, o conjunto do clero estava sujeito às
décimas cobradas pelo rei; numerosas embaixadas junto da Santa Sé
têm a finalidade de pedir autorização de cobrar ao clero «décimas
extraordinárias», por exemplo na ocasião de uma expedição; isto correspondia
proporcionalmente às talhas cobradas aos camponeses e
representando a sua contribuição para as guerras do reino.
Uma das funções da Igreja e dos seus tribunais é a luta contra
a heresia. Toca-se aqui numa característica essencial da vida medieval,
que frequentemente fez escândalo depois. Para o apreender bem, é
preciso compreender que a Igreja é então a garantia da ordem social,
e que tudo aquilo que a ameaça ataca ao mesmo tempo a sociedade
civil. Tanto mais que as heresias suscitam frequentemente mais violentas
reprovações nos laicos que nos clérigos. Para exemplo, temos,
nos nossos dias, alguma dificuldade em retratar o profundo mal-estar
produzido na sociedade pela heresia albigense, simplesmente pelo
facto de ela proscrever o juramento; era atacar a própria essência da
vida medieval: o vínculo feudal. Todo o fundamento da feudalidade
se encontrava abalado por isso 9- Daí as reacções vigorosas, excessivas
por vezes, às quais se assistiu. Estes excessos devem ser atribuídos
à Igreja? Luchaire, pouco suspeito de indulgência para com ela, vê
no papado um «poder essencialmente moderador» na luta contra a
heresia. É, com efeito, o que ressalta das relações entre Inocêncio III
e Raimundo de Toulouse e da correspondência do papa com os seus
núncios. Por outro lado, o exame de casos particulares revela claramente
que pilhagens e massacres, quando se realizam, são acto de
uma minoria excitada, que se vê em consequência vivamente censurada
pela autoridade eclesiástica. Já citámos 10 a carta de São Bernardo aos
burgueses de Colónia depois do massacre de heréticos que teve lugar
em 1145: «O povo de Colónia ultrapassou as marcas. Se aprovamos
o seu zelo, não aprovamos de modo nenhum o que ele fez, porque
a fé é obra de persuasão e não se impõe.» É que, como acontece
frequentemente, os laicos são muito menos moderados e mais impiedosos
que os clérigos nos seus juízos, e neles também as preocupações
materiais se juntam, para as agravar, às preocupações doutrinais.
O primeiro soberano que aplica aos heréticos condenados a ser entregues
ao braço secular a pena de fogo, é o imperador Frederico II;
podemos admirar-nos disso, visto que sabemos que o personagem
era bem pouco cioso da ortodoxia. Não vimos nele, várias vezes,
(9) A observação foi feita por M. Belperron na sua obra sobre
La Croisade des Albigeois (p. 76).
(10 ) Ibit., p . ll5 .
RÉGINE PERNO
um espírito dos mais «modernos», facilmente céptico, nada menos
que obrigado a obedecer às objurgações do papa, e que, quando faz
cruzada, ostenta durante toda a sua cruzada o mais profundo desprezo
pelos seus correligionários, com a mais viva simpatia pelos Muçulmanos?
É bem provável, desde logo, que a preservação das heresias
só o devia interessar de um modo muito secundário; mas, político
prudente, ele sentira o perigo que os heréticos faziam correr a sociedade
temporal. De igual modo, os massacres de Judeus na ocasião
da primeira cruzada não são cometidos pelos exércitos de Pedro,
o Eremita, ou de Gautier Sans Avoir, mas são ordenados na Alemanha,
por um senhor laico, o conde Ennrich de Leiningen, depois da
partida dos cruzados. As expulsões de Judeus foram, aliás, pelo menos
em França, muito menos numerosas do que se tem dito, uma vez
que apenas houve três de alcance geral, uma sob São Luís, por ocasião
da sua cruzada, as duas outras sob Filipe, o Belo, ordenadas por
cie por razões financeiras.
É sob uma acção semelhante dos poderes laicos, desviando-se
em seu favor, e para fazer um instrumento de dominação das medidas
de defesa tomadas pela Igreja — por vezes, entende-se, com a cumplicidade
de certos eclesiásticos isolado: — que a Inquisição adquiriu
a sua deplorável reputação. Contudo, ela só teve um carácter verdadeiramente
sangrento e feroz na Espanha imperial do início do século
xvi. Durante toda a Idade Média, é apenas um tribunal eclesiástico
destinado a «exterminar» a heresia, quer dizer, a extirpá-la,
expulsando-a para fora dos limites (ex terminis) do reino; as penitências
que impõe não saem do âmbito das penitências eclesiásticas,
ordenadas em confissão: são esmolas, peregrinações, jejuns. Nos casos
graves, unicamente, o culpado é entregue ao braço secular, o que
significa que incorre em penas civis, como a prisão ou a morte;
pois, de todo o modo, o tribunal eclesiástico não tem o direito
de pronunciar ele próprio semelhantes penas. Aliás, segundo declaração
de autores, de qualquer tendência que sejam, que estudaram
a Inquisição pelos textos, esta apenas fez, segundo a expressão
de Lea, escritor protestante, traduzido em francês por Salomon
Reinach, «poucas vítimas»". Em novecentas e trinta condenações
produzidas pelo inquisidor Bernard Gui durante a sua carreira, quarenta
e duas ao todo conduziram à pena de morte. Quanto à tortura,
apenas se assinalam, em toda a história da Inquisição no Linguadoque,
três casos certos em que ela foi aplicada; é dizer que o seu uso era
nada menos que geral. Era preciso, por outro lado, para que ela fosse
(11) Lea, Histoire de l'Inquisition, t. I, p. 489.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA 9!
aplicada, que houvesse começo de prova; só podia servir para fazer
completar confissões já feitas. Acrescentemos que, como todos os
tribunais eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e
deixa os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua
culpabilidade.
*
Não deixa de ter interesse, estudando a Igreja na Idade Média,
consagrar alguma atenção às características da fé medieval, sobre a
qual muitos juízos erróneos foram feitos. Vemos facilmente nela uma
época de «fé ingénua», de «fé do carvoeiro», em que se aceitam em
bloco e cegamente preceitos e prescrições eclesiásticos, em que o
Inferno mantém no pavor populações crédulas, e por isso mais facil
mente exploradas, em que, enfim, o rigor das disciplinas e o medo
do pecado excluem todo o prazer temporal.
Com efeito, é na Idade Média que se elaborou uma das mais
vastas e audaciosas sínteses que a história da filosofia conheceu. Esta
conciliação entre a sabedoria antiga e o dogma cristão, desembocando
nas grande: obras dos teólogos do século XIII, não representa, posta
de lado qualquer preocupação de ordem religiosa, um magnífico
esforço do espírito? A questão dos Universais, as discussões sobre
o nominalismo ou o iluminismo, que apaixonaram o mundo pensante
de então, testemunham a intensa actividade intelectual de que as
Universidades, a de Paris, a de Oxford e outras, eram o centro. As
discussões a que assistimos, entre teólogos, as disputas de um Abelardo
ou de um Siger de Brabant, ardentemente seguidas e discutidas pela
juventude das escolas, não são a prova de que, nestas matérias, mais
(talvez do que em quaisquer outras, o sentido crítico tinha oportunidade
de se exercer? Quando, depois do assassinato do núncio Pierre
de Castelnau, foi decidida a Cruzada dos Albigenses, haviam decorrido
mais de vinte anos de discussões entre os enviados de Roma e os
defensores do catarismo: poderemos concluir daí que a fé não era
discutida? Parece, pelo contrário, que a religião, tal como era então
compreendida, preocupava tanto a inteligência quanto o coração e
que se não deixou de nela aprofundar os diferentes aspectos. Não
há aí vestígio de «ingenuidade» — como também o não há naquilo
que ela inspirava, quer se trate das catedrais ou das cruzadas. Poder-
se-ia objectar que não se passava o mesmo entre o povo, mas é,
contudo, do povo que saíam aqueles monges e aqueles estudantes
apaixonados pela dialéctica e pela teologia; é o povo que lança, nos
fabulados, os seus ataques contra as riquezas do clero e que, também,
partia para a cruzada e construía as catedrais. Não se cometia, entregando-
se a voz dos pregadores; um acto irreflectido, de pura obe
RÉGINE PERNOUD
diência. Os poemas e canções de cruzada que circulam pela época
apelam, para convencer, à persuasão — a essa persuasão própria da
doutrina católica, que propõe ao homem, como fim último, o amor
divino—, mas é, ainda assim, dialéctica, não apelos sentimentais:
Vous qui aimez de vraie amour
Éveillez vous, ne dormez point.
Ualouette vous trait le jour
Et si vous dit en son latin:
Or est venu le jour de paix
Que Dieu, par sa três grand douçour
Promet à ceux qui pour s*amour
Predront la croix, et pour leur fait
Souffriront peine nuit et jour.
Or verra-t-il les amants vrais [...] 12.
E o resultado das Cruzadas, o estabelecimento dos reinos latinos
de Oriente, prova que não se tratava de arrebatamentos de:arrazoados;
todos esses cavaleiros que constroem fortalezas e que redigem códigos
para uso dos seus novos principados de modo nenhum fazem figura
de estouvados ou de exaltados e não se deixam ultrapassar pelos
acontecimentos. Como o próprio Lavisse notou: «À glória de conquistar,
os nossos cavaleiros sabiam acrescentar, sendo caso disso, a de
organizar as conquistas e de fundar um governo. Mas talvez eles não
tivessem alcançado um tão grande sucesso se a Igreja não tivesse
colaborado na sua obra.» 13 Se a sua fé era ingénua, devemos então
dizer que não excluía um sólido sentido prático-E as realizações às
quais ela conduz forçam também a pensar que não consistia somente,
como se disse, no culto das relíquias. A Idade Média ama as relíquias,
como ama tudo o que é sinal visível de uma realidade invisível. Não
é sentimentalidade, é realismo. A relíquia corresponde a esta traditio,
esta reposição de um símbolo constituindo os actos de vendas, ou a
investidura de um conde: traço geral da época, e não apenas da
religião desta época.
Não é aqui lugar de discutir a crença no Inferno, que pertence
ao dogma católico e não é, por conseguinte, particular da Idade
(12) Vós que amais com. verdadeiro amor / Despertai, não adormeceis.
/ A calliandra traz-vos o dia / E diz-vos no seu linguajar: / Chegou
o dia da paz / Que Deus, pela Sua grande doçura / Promete àqueles que
por seu amor / Arrastarão a cruz, e por esse facto / sofrerão dorna
noite e dia. / Ai se conhecerão os verdadeiros amantes \ ..'].
(13) Histoire de France, t. II, 2, p. 105.
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA
Média. Fica por saber se as visões do Inferno, magistralmente evocadas
pelos pintores e pelos poetas, engendravam esse terror paralisante
que se imagina facilmente e se as mortificações inspiradas pela
Igreja acabavam por privar os nossos antepassados das alegrias da
existência. Bem parece que a força essencial da fé medieval foi não
o medo, mas o amor: «Sem amor, não poderá nenhum homem bem
servir a Deus», dizia-se, e ainda:
Sans amour nul ne peut à honneur parvenir
Si doit être amoureux qui veut grand devenir li.
Não é diminuto espanto encontrar, nos tratados de moral da
época, oito pecados capitais enumerados, em vez dos sete que conhecemos;
ora o oitavo é, coisa inesperada, a tristeza, tristitia. Os teólogos
definem-na, para a condenar, e pormenorizam os remedia tristitie aos
quais convém recorrer quando se sente exposto à melancolia:
Cor irié, morne et pensis
Peut Von bien perdre Paradis,
Et plein de joie et envoisié —
Mais quon se gard d'outre péché —
Le peut-on bien conquerre aussi15.
Na base da concepção do mundo na Idade Média, descobre-se,
pelo contrário, um sólido optimismo. Com razão ou sem ela, parte-se
então do princípio de que o mundo está bem feito, que se o pecado
perde o homem, a redenção o salva, e que nada, sofrimento ou alegria,
acontece, que não seja para seu bem, de que ele não possa tirar
ensinamento e vantagem:
Car maintes jois aller à Vaventure
En ce qu'on craint, avoir peine et douleur
Vient à effet de douce nourriture:
Je tiens que Dieu fait tout pour le meilleur.
(14) Sem amor ninguém pode alcançar a honra/Deve ser amoroso
quem grande se quer tornar.
(15) Porque acabrunhado, sombrio e pensativo /Pode-se perder o
Paraíso, / E cheio de alegria e de êxtase — /Mas que se evite outro
pecado / Pode-se conquistá-lo também.
RÉGIE PERNO
Dieu n'a pas fait chacun d'une jointure,
Terres ni fleurs toutes d'une couleur:
Mais rien n'advient dont fleur n'ait ouverture.
Je tiens que Dieu fait tout pour le meilleur1B,
assim se exprime Eustache Deschamps, um dos poetas que deu o «panorama
» mais completo e mais exacto da vida do seu tempo. Perante
textos deste género, e sem sequer evocar as patuscadas gigantescas
a que as festas religiosas davam ocasião, é-se bem forçado a pensar
que, se houve, na história do mundo, uma época de alegria, é a
Idade Média — e a concluir com a observação muito justa de Drieu la
Rochelle: «Não é apesar do cristianismo, mas através do cristianismo
que se manifesta aberta e plenamente esta alegria de viver, esta
alegria de ter um corpo, de ter uma alma nesse corpo ... esta alegria
de ser» ".
is Porque muitas vezes caminhar-se na aventura / Do que se teme,
ter pena e dor, / Serve de doce alimentação: / Creio que Deus faz tudo
pelo melhor.
Deus não fez cada um igual ao outro, / Nem as terras nem as flores
de uma só cor: / Mas nada acontece se a flor não se abre. / Creio que
Deus faz tudo pelo melhor.
i? Artigo sobre «La Conception du corps au Moyen Age», na Revue
Française, n.° I, 1940, p. 16.
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