CAPÍTULO X
AS ARTES
A nossa época, que se desembaraçou dos últimos restos de preconceitos
clássicos e em que a influência dos dogmas da antiguidade
é já nula, está em melhor posição do que qualquer outra para penetrar
a arte da Idade Média: a ninguém hoje passaria pela cabeça
indignar-se com os camelos verdes do Psautier de Saint-Louis [Saltério
de São Luís], e os artistas modernos fizeram-nos compreender que,
para dar uma impressão de harmonia, a obra de arte devia ter em
conta a geometria e a decoração submeter-se à arquitectura.
A arte medieval redescobrimo-la mais facilmente do que a
literatura do mesmo tempo, porque podemos desfrutá-la directamente;
aprendemos a percorrer, pedra por pedra, nas nossas catedrais, nos
nossos museus, os seus vestígios dispersos pela Europa. Os progressos
da técnica fotográfica permitem-nos dar a conhecer as maravilhas
das miniaturas insertas nos manuscritos, que até aqui só alguns iniciados
podiam apreciar; chega-se a restituir mesmo as suas cores,
com uma rara fidelidade — testemunhos disto, as admiráveis publicações
da revista Verve, as das Edições do Chêne ou de Cluny, etc.
À medida que se foi aprofundando o nosso conhecimento da arte
da Idade Média, o nosso gosto foi-se libertando dessa atracção pela
falsa Idade Média: gótico do século XVIII, como a catedral de Orleães,
tão lamentavelmente apregoado pelos românticos como um modelo
do género, excesso de ardor das restaurações, quimeras e gárgulas
de que a ornamentação do século passado abusou tão deploravelmente,
teorias enternecedoras sobre a origem das nossas catedrais,
provindas do Génie du Christianisme [Génio do Cristianismo]. A
nossa visão actual é ao mesmo tempo mais actual e mais bela.
O que sobressai mais nitidamente na arte medieval é o seu
carácter sintético; as criações, cenas, personagens, monumentos, parecem
ter surgido de um só jacto, tal é o seu frémito de vida e de tal
modo forte a expressão do sentimento ou da acção que pretendem
traduzir. Toda a obra, nesta época, é à sua maneira uma Soma, unidade
poderosa, mas na qual, sob a aparente fantasia, entram em jogo
REFINE PENOU
uma multiplicidade de elementos, sabiamente subordinados uns aos
outros; a sua força provém, antes do mais, da ordem que presidiu
à sua realização. A arte, mais do que o génio, é então a recompensa
de uma longa paciência.
Contrariamente ao que poderia fazer crer a fantasia que parece
presidir às suas soluções, o artista está longe de ser livre; ele obedece
a obrigações de ordem exterior e de ordem técnica que regem, ponto
por ponto, as etapas da sua obra. A Idade Média ignora a arte pela
arte, e é a utilidade que, naquela época, domina todas as criações.
É aliás dessa utilidade que as obras tiram a sua principal beleza, consistente
numa perfeita harmonia entre o objecto e o fim para o qual
foi concebido. Neste sentido, os objectos mais comuns nessa época
aparecem-nos agora revestidos de uma autêntica beleza: um jarro,
um caldeiro, uma taça, aos quais damos hoje honras de museu,
as mais das vezes não possuem outro mérito senão o dessa perfeita
adaptação às necessidades a que respondem. Noutro plano, o artista
medieval preocupava-se acima de tudo com a razão de ser das suas
criações. Uma igreja é um local de oração, e, se a arquitectura das
nossas catedrais variou de acordo com as épocas e com as províncias, é
porque estava estreitamente ligada às necessidades do culto local.
Não há uma capela, um vitral que tenham sido colocados gratuitamente
ou acrescentados por pura fantasia; o mesmo na arquitectura
civil e militar, onde todos os pormenores de um torreão, de uma torre
ameada, obedecem às comodidades da defesa e se modificam à medida
da evolução das armas ofensivas. Pode-se dizer que o primeiro elemento
da arte era, naquela época, a oportunidade.
Vêm em seguida as exigências técnicas. Em primeiro lugar a
matéria, que é alvo de uma cuidadosa procura: a madeira, o pergaminho,
o alabastro e a pedra que deviam servir ao artista sofriam
uma preparação apropriada. É assim que, para um travejamento,
só se emprega na Idade Média o coração da madeira, a sua parte
mais sólida; os travejamentos medievais são por isso extremamente
ligeiros e, contudo, de uma resistência a toda a prova; as nossas
florestas, actualmente, já não poderiam fornecer-nos tão belas madeiras,
e constitui uma estranha impressão passar, na Notre-Dame por
exemplo, da parte antiga do revestimento do telhado, onde as vigas
finas suportam alegremente a cobertura do edifício, à parte nova,
coberta de enormes traves, mais vulneráveis no entanto do que as
outras ao efeito do tempo e dos insectos. Ob,ervou-se que não se
encontravam aranhas nos travejamentos antigos, porque nem vermes
nem moscas conseguem alojar-se neles. O e cultor, segundo o partido
que deseja tirar da pedra, talha-a directamente na pedreira ou, pelo
contrário, deixa-a «apurar» antes de se atacar a ela; o tapeceiro
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA
escolhe cuidadosamente as suas lãs e as suas sedas; o pintor as suas
cores. A obra é assim antecedida de um trabalho minucioso, de uma
autêntica génese, no decurso da qual a criação se repete e se adapta
exactamente ao género escolhido. A situação da obra será igualmente
objecto de cuidados semelhantes. Um escultor preocupa-se sempre
com o ângulo sob o qual a sua estátua deve ser vista; as estátuas
colocadas no topo da catedral de Reims, as quais, uma vez apeadas,
são de uma estranha fealdade, adquirem toda a sua beleza quando
vistas em perspectiva desde baixo-
Por outro lado, há exigências tradicionais que o artista não se
pode dar ao luxo de desprezar e que fornecem um quadro muito
estrito à sua inspiração. Para nos limitarmos, por exemplo, à arte
sacra, todas as cenas, todos os personagens são acompanhados de
atributos determinados: o Anjo e a Virgem da Anunciação, a Sagrada
Família e os animais do Presépio, o apóstolo, os dois discípulos e as
mulheres santas da Descida da Cruz; o Cristo do Julgamento Final
é sempre enquadrado por uma glória e rodeado dos símbolos dos
quatro evangelistas; São Paulo segura um gládio e São Pedro a, chaves.
Nenhum destes assuntos deixa ao artista uma grande liberdade
e, no entanto, por um curioso tour de force, não há, na infindável
teoria das Virgens medievais, dois rostos de Virgens que se assemelhem.
Nos estreitos limites que lhes foram designados, os altistas
souberam evitar os lugares comuns, as atitudes convencionais, clássicas.
A sua factura, o mais das vezes anónima, é sempre fortemente
caracterizada. Era preciso, para obter esta originalidade na expi\ssao
das cenas mais comuns, para criar seres onde seria muito mais fácil
contentar-se com protótipos, um singular vigor de temperamento e de
imaginação. O academismo introduziu-se na arte precisamente no
momento em que a inspiração parecia perder os seus limites, em que
a arte sacra se tornava cada vez menos tradicionaI e litúrgica, ao passo
que a arte profana ganhava cada vez maior extensão.
Além das exigências técnicas propriamente ditas, há a visão
particular a cada forma de arte, e essa visão encontra-se muito desenvolvida
na Idade Média; a cada actividade corresponde uma ordem,
uma harmonia caracterizada: a tapeçaria não é a mesma coisa do
que um quadro, nem o vitral é uma pintura; as leis da perspectiva
são diferentes para uns e para outros. No dia em que tapceiros e
mestres vidreiros começaram a copiar o pintor, a querer, por ar ofícios
de cor ou engenhando «fundos» arquilecturais , obter um relevo e
determinar vários planos, a sua arte entrou em decadência. Do mesmo
modo, o ourives não deve imitar o artesão do marfim, nem o esmatador
o miniaturista. Cada um deve, na obra que projecta, ler era
conta a beleza própria da matéria que está a trabalhar, possuir a mui
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perspectiva, a sua composição, a sua concepção individual, em lugar
de tender para a uniformidade e a imitação. Na sequência disto, o
domínio artístico começou a ver introduzir-se nas diferentes disciplinas
uma certa desordem, e a decadência das artes menores é facilmente
explicável por essa confusão. Por vezes ainda, foi um excesso de
técnica que precipitou a decadência; um exemplo é-nos fornecido pela
evolução do vitral: nos vitrais dos séculos XII e XIII as cores são
francas, os vidros são espessos e desiguais, cheios de bolhas de ar
e de impurezas através das quais a luz brinca, e sustentados
por chumbos mais espessos do que largos, que sublinham o desenho
sem o sobrecarregar; mas, quando se substituiu o mosaico de vidro
colorido por pintura sobre vidro, quando, em lugar de ser talhado
a ferro em brasa, o vidro passou a ser cortado a diamante, o que
dava uma superfície de fractura mais nítida, mais regular, exigindo
chumbos de rebordos muito mais largos, o vitral deixou de ser uma
viva «manta de retalhos»; o vidro, mais fino, mais bem trabalhado,
começou a deixar passar uma claridade uniforme e o vitral tornou-se
em pouco tempo num vidro colorido, insípido e sem brilho. O que
correspondia, aliás, ao gosto das diferentes épocas: o século XVIII,
com o seu ódio da cor, foi ao ponto de substituir os belos vitrais
da Idade Média, ainda quase todos intactos, por vidros brancos.
A visão própria da sua arte, o artista adquire-a por uma
longa aprendizagem. Raoul Dufy fez notar que não existe nessa época
drama algum entre a inspiração e a realização e acrescenta: «Não
resultarão os nossos problemas da ruptura desse equilíbrio da matéria
e do espírito e, em vez de procurarmos soluções estéticas, não deveríamos
antes procurar uma solução para o ofício?» 1 Com efeito, é
através do ofício que o artista na Idade Média adquire ao mesmo
tempo e;se domínio da matéria e essa originalidade de expressão que
ainda hoje produzem o nosso espanto. A precisão da sua técnica
é sobremaneira acentuada, pois ele nunca deixa de ser um artesão
em face do qual, apesar da especialização moderna, os nossos artistas
actuais fariam figura de improvisadores ou de quase amadores. O pintor
e o mestre vidreiro não ignoram nada dos segredos que presidem
à dosagem dos colorantes, à cozedura do vidro; preparam eles próprios
as suas cores, ou mandam prepará-las nas suas oficinas, de
acordo com segredos oficinais cuidadosamente transmitidos c aperfeiçoados
de mestre a aprendiz; o arquitecto continua a .^er um
mestre-de-obras no meio dos operários, tomando parle directa nas
(1) Artigo publicado em Beaux-Arts, edição de 27 d. Dezembro de
1937.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA
suas tarefas, de que nenhum pormenor lhe escapa, pois ele próprio
percorreu uma a uma todas as etapas do ofício.
São todos estes elementos que compõem a personalidade do
artista e é o seu génio pessoal que produz a unidade. Mas, seja qual
for o grau do seu talento, é impressionante observar o cuidado que
ele põe na composição da sua obra. Quando estudamos um quadro
original, ficamos surpreendidos ao descobrir uma ordem rigorosa sob
a aparência fantasista ou desordenada do conjunto- Na admirável
Pieta de Villeneuve-les-Avignon, por exemplo, não há uma única
linha, um único pormenor das personagens que rodeiam o corpo de
Cristo que sejam gratuitos: tudo se encontra subordinado a esse cadáver
exangue e rígido que forma o centro da cena; os restantes actores
não passam de uma espécie de enquadramento, sujeito aos contornos
do corpo, que os panejamentos seguem fielmente, tal como as rugas
de uma toalha de água prolongam a esteira de um navio. Outros quadros
são construídos em círculo, em rosáceas, sem que a sua regularidade
geométrica, identificável a um olhar experimentado, seja traída
pela mais pequena rigidez; certos frescos do Angélico são notáveis
deste ponto de vista. O agrupamento dos personagens da Crucificação,
de Vénasque, é também ele muito sábio: aos inimigos de Cristo, fariseus,
soldados, o mau ladrão à direita do quadro, o bom ladrão e as mulheres
santas, à esquerda, dão uma réplica exacta. No Wilton Diptych,
a atitude dos santos protectores e os seus movimentos de braços,
no painel esquerdo, acompanham o jovem rei, enquanto à direita
os anjos estendem as asas, numa espécie de corola que enquadra a
Virgem. Contudo, será que a qualquer destas obras, de uma tão
comovedora perfeição, se poderia censurar o menor espírito de
sistema, o menor parti pris?
Se examinarmos mais particularmente a noção que a Idade Média
possuía da beleza plástica, aperceber-nos-emos de que, contrariamente
ao que se poderia pensar, a sua visão artística ultrapassa infinitamente,
neste ponto, a da Antiguidade. Na representação do corpo humano,
como em geral em todas as artes, a Antiguidade tinha adoptado um
ponto de vista estático: pintores, escultores, arquitectos obedecem a
cânones, e não, como os artistas medievais, a dados de experiência
ou a necessidades de ordem prática. Regulam-se por exigências geométricas:
proporções entre as diversas partes do rosto, leis do equilíbrio
do corpo, etc, e chegam em geral a um tipo idealizado, a uma
espécie de perfeição monótona, que repete indefinidamente o mesmo
modelo ou os mesmos estilos. Também a Idade Média conhece os
dados geométricos c o equilíbrio entre as diferentes partes do corpo;
nenhuma das leis fundamentais da beleza plástica lhe escapa; no álbum
de Villard de Honnecourt, os corpos esboçados decompõem-se em
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figuras que os cubistas não renegariam: triângulos, cones, paralelepípedos;
os grupos de lutadores são primeiramente representados em
linhas quebradas, em curvas desenhadas e compasso, etc. Mas o
artista, uma vez acabado este trabalho de estudo, de posse do seu
método e da sua técnica capta o homem na sua totalidade e anima
os corpos que cria com todo o sopro da vida: deformados pela paixão,
retorcidos pela dor, engrandecidos pelo êxtase. Surpreende o ser nas
suas atitudes mais humanas, mais naturais, mais intensas. É pois,
segundo a bela expressão de Claudel, «o movimento que cria o corpo»;
basta ter visto estes seres frementes de alegria, desfigurados pela
cólera, torturados de angústia, que percorrem os antigos capitéis de
Saint-Sernin de Toulouse, no Museu dos Agostinhos: o rei Herodes
inclinando-se sobre Salomé, Cristo descobrindo o peito esburacado
diante do apóstolo Tomás, num gesto gritante de verdade e de força,
para compreender o segredo da arte medieval: ela encontrou a beleza
humana no dinamismo da vida humana, na expressão total do indivíduo,
traduzindo não apenas a sua aparência externa, mas a sua
realidade intrínseca. Para disto nos convencermos, bastar-nos-á contemplar
as personagens tumultuosas e frementes que animam o tímpano
de Vézelay ou de Moissac, ou essas figuras delicadas e sempre
dissemelhantes que constituem, em cada página do Psautier de Saint-
Louis ou de Blanche de Castille {Saltério de São Luís ou de Branca
de Castela], uma surpresa e uma emoção sempre renovadas. A sinceridade
foi a sua mais infalível regra para atingir a beleza; sinceridade
na visão interior e na observação exterior, aliada à fidelidade de
expressão e à faculdade de fundir num todo harmonioso a inspiração
e o método, o génio e o ofício.
A expressão mais completa da arte medieval em França encon
tra-se na sua arquitectura, nas suas catedrais, onde quase todas as
técnicas foram empregadas. Não que não tenha existido arte profana:
são numerosas as cenas alegóricas, ou tiradas da Antiguidade, mais
numerosos ainda os retratos, os quadros guerreiros, campestres ou
idílicos, em que a natureza nunca está ausente. Mas foi nas suas
catedrais que pôs toda a sua alma.
Acontece — e não é por acaso, que a arquitectura medieval
floresceu mais ainda em França do que em qualquer outra região-
Poucas das nossas aldeias escaparão à presença de qualquer vestígio
dela, sob a forma por vezes muito humilde de um simples pórtico
perdido no meio da alvenaria moderna, ou por vezes sob a forma
de uma magnífica catedral, desproporcionada em relação à aglome
ração que presentemente a enquadra. A serenidade um tanto maciça
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA
dos edifícios românicos é realçada por uma decoração agitada e turbulenta,
com cenas de uma grandeza vertiginosa, tiradas do Apocalipse,
e banhadas ainda de influências orientais. Uma evolução desta arte
deu nascimento ao cruzeiro de ogiva e à arquitectura gótica, de que
o nosso país, exactamente o coração do nosso país, a Ilha de França,
talvez tenha sido berço. O arco em ogiva ia autorizar os nossos arquitectos
a todas as audácias e permitir o florescimento perfeito da arte
francesa da Idade Média, na sua época áurea, os séculos XII e XIII.
Como mais de uma vez se tem observado, os templos antigos
estão ligados à terra; as suas colunas maciças, a absoluta regularidade
do seu plano, os cânones que determinam a sua disposição e decoração,
as suas linhas horizontais — tudo neles se opõe às nossas
catedrais, em que a linha é vertical, em que a flecha aponta para o
céu, em que a simetria é desdenhada sem por isso comprometer a
harmonia, em que por fim as exigências da técnica se aliam à
fantasia dos mestres-de-obras com uma facilidade desconcertante.
Quando se examina de perto uma catedral gótica, somos sempre
tentados a ver nela uma espécie de milagre: milagre dessas colunas
que nunca se encontram em rigoroso alinhamento, e contudo suportam
o peso do edifício, milagre dessas abóbadas que giram, se entrecruzam,
volteiam e se sobrepõem, milagre dessas paredes perfuradas, onde
muitas vezes entra mais vidro do que pedra, milagre, enfim, do
edifício inteiro, maravilhosa síntese de fé, de inspiração e de piedade.
Nos monumentos antigos, um simples capitel descoberto permite
reconstituir um templo inteiro; ainda que se descobrisse três quartos
de uma catedral gótica, continuaria a ser impossível reconstituir o
quarto. No entanto, apesar desta aparente desordem, nenhuma obra
impõe ao arquitecto mais regras e obrigações do que a construção
de uma igreja: orientação, iluminação, necessidades do culto, necessidades
materiais provenientes da natureza do solo ou da sua situação
— outras tantas dificuldades que o mestre-de-obras parece ter quase
sempre resolvido a brincar; certas igrejas, como a de Estrasburgo,
estão construídas sobre pântanos ou rios subterrâneos; outras, por
exemplo as Santas Marias do Mar, ou algumas igrejas do Linguadoque,
são praças-fortes em que a própria obra deve constituir uma defesa.
O conhecimento geral da liturgia facil
dias, o altar está a maior parte da vezes mais elevado, para permitir
aos fiéis seguirem com a vista as cerimónias; outrora, era sobretudo
através do canto e das orações vocais que os fiéis a elas se associavam,
donde o exlremo cuidado dado à acústica: alternância das arcadas,
ordenação d;is abóbadas, etc. Sobretudo, há o problema da luz. Certas
épocas preferiram igrejas sombrias, cuja obscuridade, pensava-se,
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favorece o recolhimento. Mas a Idade Média amava a luz: a sua
grande preocupação foi ter santuários cada vez mais claros, e pode-se
dizer que todas as descobertas da técnica arquitectónica tenderam
a possibilitar mais espaços livres na construção, para que as imensas
vidraças pudessem deixar passar cada vez mais sol e iluminar sempre
melhor o esplendor do ofício religioso; em Beauvais, por exemplo,
a parede de nada mais serve senão para enquadrar as paredes de
nada mais serve senão para enquadrar as paredes de vitral, com uma
ligeireza assustadora, excessiva mesmo, já que o edifício nunca pôde
ser continuado para além do transepto.
E no entanto, mais ainda do que a beleza, era a solidez que era
visada; nada se compreendeu de uma catedral gótica antes de se saber
que o volume de pedra enterrado no solo para o trabalho das fundações
ultrapassa o da pedra erguida para o céu. Sob essa aparente fragilidade,
sustentando as gráceis colunetas e as flechas rendilhadas,
esconde-se uma poderosa armação de pedra, obra paciente e robusta.
Todas as obras da Idade Média possuíam esta sólida fundação, que
não se descobre à primeira vista, tal é a ligeireza e a fantasia com
que sabe ocultar-se.
Quanto à decoração, também a beleza não provém senão da
utilidade. Não há pormenor de ornamentação que não esteja submetido
a um pormenor de arquitectura; nada é deixado ao acaso no que nos
aparece como pura exuberância de imaginação. Em certas igrejas, os
painéis esculpidos seguem rigorosamente a disposição do aparelho:
é muito visível em Reims, no famoso baixo-relevo da Communion
du Chevalier [Comunhão do Cavaleiro]. Troça-se por vezes da rigidez,
da «ingenuidade» (sempre!) de certas estátuas, como as que ornamen
tam o pórtico de Chartres; mas, na realidade, é rigidez intencional,
e de nenhum modo rígida, uma vez que a estátua mais não é do que
a animação do fuste, devendo as suas linhas subordinar-se às linhas
rectas e apertadas de uma fieira de colunas.
Quando contemplamos essas pedras cinzentas das nossas catedrais,
e as suas esculturas, somos tentados a ver nelas o trunfo do desenho;
na realidade, a cor explodia em toda a parte: não apenas nas pinturas
ou no vitral, mas também na pedra. Não é exacto falar-re do tempo
em que as catedrais eram «brancas»: nelas, a explosão da cor, tanto
no interior como no exterior, prolongava a da luz; era um mundo
cintilante em que tudo se animava. É claro que os tons eram sabia
mente combinados: por vezes vivos e exuberantes, cobriam de vastos
frescos espaços hoje insípidos; um conjunto como o de Saint-Savin,
ou os restos de pinturas de Saint-Hilaire de Poitiers, bastam para dar
uma ideia do efeito produzido. Noutros locais, sublinhavam com uni
simples friso a curva de uma ogiva, faziam sobressair uma aresta
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA
ou salientavam uma viga. Realçavam igualmente as esculturas: não
por meio das mornas gradações que fizeram justamente a lamentável
reputação dos modernos «objectos de piedade», mas com tons francos,
fazendo corpo com a pedra, e cujos vestígios, infelizmente demasiado
raros, manifestam a mestria com que a Idade Média soube manejar
a cor e a ousadia que utilizou no seu emprego: nas suas catedrais,
mais uma vez, o mundo medieval é um mundo colorido. Infelizmente,
é raro encontrar fora dos museus, quer dizer, tirados do seu enquadramento
e colocados em condições totalmente diferentes daquelas
para que foram criados, os quadros e as estátuas pintadas que outrora
as ornavam. Só os vitrais, os de Chartres ou de Saint-Denis, por
exemplo, nos permitem imaginar a intensidade e a perfeição das cores
medievais, a par dos manuscritos de miniaturas ciosamente guardados
— talvez ciosamente de mais — nas nossas bibliotecas.
Para lá dos temas de decoração propriamente religiosos: cenas
bíblicas que mostram as correspondências do Antigo e do Novo Testamento,
pormenores da vida da Virgem e dos Santos, quadros grandiosos
do Julgamento Final ou da Paixão de Cristo— pintores e
escultores tiraram largo partido do que a natureza lhes punha diante
dos olhos: toda a flora e toda a fauna do nosso país renascem sob
o pincel ou o cinzel com uma precisão e um golpe de vi:ta de naturalista,
aliados ao que a fantasia lhes sugeria. Foi possível estudar,
nos pórticos das catedrais, as diferentes espécies reproduzidas e descobrir
flores e folhagens da Ilha de França, aqui em botão, além em
pleno desabrochar, acolá — em especial na época flamejante— sob
o aspecto recortado da folhagem outonal. Utilizaram com igual
à-vontade os motivos de decoração geométrica, folhagens, entrançados,
animais estilizados cujo modelo lhes havia sido fornecido pelo Oriente
e que os monges irlandeses tinham feito renascer nas suas miniaturas
com uma exuberância singular.
O que escapa ainda à ciência moderna, embora nos últimos anos
se tenha dado um grande passo em frente, graças sobretudo aos trabalhos
admiráveis de Emile Mâle, é o simbolismo das catedrais. Ainda
não penetrámos a fundo no «porquê» dos pormenores de arquitectura
ou de ornamentação que as compõem; apenas sabemos que todos
esses pormenores tinham um sentido. Não há uma única dessas
figuras — que rezam, fazem carantonhas ou gesticulam — que lá
esteja colocada gratuitamente: toda- possuem a sua significação e
constituem um símbolo, um signo. Descobriu-se recentemente o simbolismo
das pirâmides do Egipto, nas quais — mesmo sem ter em conta
o:s exageros de alguns ocultistas — se deve ver o testemunho de uma
ciência muito profunda, de autênticos monumentos de geometria, de
matemática e de astronomia; resta-nos descobrir o simbolismo das
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catedrais, dessas igrejas familiares que são um apelo à oração, ao
recolhimento, talvez à mais maravilhosa das sensações humanas, que
é o espanto. Estamos longe de dominar o seu segredo. Esses vitrais,
nos quais os simples camponeses liam como num livro, os nossos
sábios ainda não foram capazes de descobrir a sua completa interpretação;
esses rostos, que outrora uma criança teria podido nomear,
nem sempre conseguimos identificá-los- Sabemos que as nossas catedrais
estavam orientadas, que o seu transepto reproduz os dois braços
da Cruz, mas falta-nos ainda um grande número de noções para
podermos penetrar no seu mistério. A sua construção participa da
ciência dos números: esses números que são a harmonia do mundo
e que foram consagrados pela liturgia católica. O 3 é o algarismo da
Trindade, algarismos divino por excelência, que reconduz tudo à
unidade e representa as três virtudes teologais. O 4 é o algarismo da
matéria, o dos quatro elementos, dos quatro temperamentos humanos,
dos quatro evangelistas, tradutores da palavra de Deus, e das quatro
virtudes cardeais, as que devem ser praticadas pelo homem na condução
da sua vida terrestre. O 7, que alia o divino ao humano, é o
algarismo de Cristo e, após ele, o algarismo do homem resgatado:
os quatro temperamentos físicos unidos às três faculdades mentais:
intelecto, sensibilidade, instinto; ao mesmo tempo que uma outra
combinação de 3 e de 4 dá 12, o algarismo do universo, dos doze
meses do ano, dos doze signos do zodíaco, símbolo do ciclo universal.
O nosso sistema métrico não tomou em conta estes «números-
chave», mas há que observar que a sua numeração, um tanto abstracta
e rudimentar, não conseguiu adaptar-se, por exemplo, às fases solares
e lunares e continua a ser suplantada, em quase toda a parte nos
campos, por medidas ao mesmo tempo mais simples e mais sábias.
Tudo isto deixa adivinhar uma ciência oculta mais profunda do que
se tinha podido suspeitar até agora, e a iconografia, que na sua forma
científica está ainda no começo, poderá abrir dentro de pouco tempo
perspectivas ainda ignoradas.
Devemo-nos contentar, de momento, em admirar a maneira
como os artistas da Idade Média souberam fazer da sua casa do
orações como que o resumo e o apogeu da sua vida e das suas
preocupações. Ela era não apenas o te temunho visível da sua fé,
da ciência sagrada e profana, da liturgia, mas ainda o reflexo das
suas ocupações quotidianas: lado a lado com um magistral «Julgamento
Final», súmula viva da majestade divina e dos últimos fins
do homem, vêem-se camponeses a atar espigas, a aquecereni-sc ao
canto da lareira, a matar o porco. E encontramos igualmente testemunhos
desse robusto sentido da beleza que possuíam os nossos
antepassados, do seu amor pela vida, da sua alma serena, amante
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do trabalho bem feito, da sua imaginação vagabunda, sempre a
inventar formas novas (saber-se-á que nunca se vêem lado a lado
dois motivos de folhagem idênticos na ornamentação medieval?), da
sua veia folgazona, que não conseguem refrear mesmo na igreja —
alguns rostos de vitrais são autênticas caricaturas e certas estátuas
alegres brincadeiras.
Como não nos espantarmos ainda com esse frenesim de construção
a que se assiste nos séculos XII e XIII e que apenas esmorece ligeiramente
nos dois séculos seguintes: essas enormes massas de pedra
transportadas da pedreira para o local do edifício, esse mundo de
escultores, cortadores de pedra, carpinteiros, pintores, operários e
ajudantes e, cada vez mais impressionante, a actividade das oficinas
onde se trabalhava o vidro. Uma catedral como a de Chartres não
comporta menos de cento e quarenta e quatro janelas altas: posta
de parte toda a emoção artística, pense-se apenas no trabalho gigantesco
representado por essa enorme superfície de vidro, ou antes,
de parcelas de vidro reunidas; trabalho dos desenhadores, dos fundidores
de chumbo, dos cortadores de vidro, dessa massa de artistas
anónimos cujos esforços conjugados resultaram num deboche de cores
que irradiam no interior do edifício e que são ainda realçadas pelos
jogos de sombra e luz sobre as arestas das ogivas facetadas, pelas
gargantas dos capitéis profundamente cavadas, pelos toros cilíndricos
ou facetados, pelos colunas onde o claro-escuro é regido por sábias
e variadas alternâncias. Contrariamente ao que se crê, semelhantes
obras-primas eram construídas rapidamente e não se hesitava em
demolir para fazer melhor. Maurice de Sully, para reconstruir a
Notre-Dame, destruiu a igreja construída apenas setenta anos antes;
em Laon, o bispo Gautier de Mortagne edifica por volta de 1140
uma igreja gótica no lugar da igreja românica que, no entanto, datava
apenas de 1114.
E o não menos admirável está longe de ser a continuidade, a
unidade, poder-se-ia dizer, desse imenso esforço dos construtores. As
gerações que se sucedem formam um todo; tradições e segredos de
ofício são transmitidos sem soluções de continuidade, e não se hesita,
ao longo da construção, ou das reconstruções parciais, em utilizar
todos os aperfeiçoamentos da técnica: arcobotantes do século xiv vêm
ombrear uma nave do século XIII, e o conjunto permanece harmonioso
— ao passo que seria impossível, por exemplo, conceber uma
janela à Le Corbusier espreitando de um edifício de estilo 1900 —
e, contudo, menos de trinta anos os separam, enquanto no castelo
de Vincennes se pode ver lado a lado duas janelas elaboradas a cem
anos de distância uma da outra, e que parecem feitas para conviver,
embora tolalmenle diferentes como arte e como arquitectura. Eis a
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razão pela qual certas restaurações demasiado conscienciosas não fizeram
mais do que desfigurar os monumentos suas vítimas, pois se
tentou refazer tudo de acordo com uma mesma ordenação e com
regras e cânones que nunca existiram na mentalidade dos construtores;
assim, onde aqueles atingiam sem esforço a harmonia, não conseguiram
produzir senão uniformidade. As evoluções da arte medieval
explicam-se quase sempre por aperfeiçoamentos da técnica, bem como
os pormenores de ornamentação através de necessidades da arquitectura:
não se teria construído gárgulas se elas não servissem como
goteiras para vazar a água; de igual modo, se a rosácea de estilo
gótico, de contornos nítidos, viu as suas curvas atenuarem-se e tomarem
a forma característica do estilo flamejante, foi para facilitar o
escoamento das águas da chuva que, ao gelarem no ângulo em que se
alojavam, produziam frequentemente o rebentamento da pedra. Há
assim, através da arte medieval, um elemento de harmonia que um
exemplo ilustra com uma justeza impressionante: nos primórdios da
arte gótica, o botão de flor é um motivo corrente de ornamentação;
é então o período das ogivas nítidas, das pequenas rosáceas; depois
o botão parece abrir-se, desabrochar; e é a época dos arcos lanceolados,
das grandes rosas desabrochadas; finalmente, no século XV,
o botão transformou-se em flor e, enquanto a escultura se exaspera
em formas mais que humanas, contorcidas e dolorosas, abrem-se os
arcos de abóbada, as curvas atenuam-se, o arco flamejante termina
a evolução.
Poder-se-iam escrever longas páginas sobre a música medieval,
que iniciativas recentes repõem no devido legar, com tanto de ciência
como de gosto- Que testemunho mais eloquente se poderia invocar
do que o de Mozart: «Daria toda a minha obra para ter escrito o
Prefácio da missa gregoriana.»
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