PÍTULO IV
A VIDA URBANA
A partir da altura em que cessam as invasões, a vida transborda
os limites do domínio senhorial. O solar começa a não se bastar mais
a si próprio; toma-se o caminho da cidade, o tráfego organiza-se,
e em breve, escalando as muralhas, surgem os subúrbios. É então,
a partir do século XI, o período de grande actividade urbana. Dois
factores da vida económica, até então um pouco secundários, vão
adquirir uma importância de primeiro plano: o ofício e o comércio.
Com eles crescerá uma classe cuja influência será capital para os
destinos de França — ainda que o seu ace:so ao poder efectivo não
date senão da Revolução Francesa, da qual será única a tirar benefícios
reais: a burguesia.
Pelo menos o seu poder data do muito mais longe, porque, desde
a origem, ocupou um lugar preponderante no governo das cidades,
enquanto os reis, nomeadamente a partir de Filipe, o Belo, faziam
voluntariamente apelo aos burgueses no governo das cidades como
conselheiros, administradores e agentes do poder central. Ela deve
a sua grandeza à expan:ão do movimento comunal, do qual aliás é o
principal motor. Nada de mais vivo, de mais dinâmico que esse
impulso irresistível que, do século XI ao início do século XIII, leva
as cidades a libertarem-se da autoridade dos senhores, e nada de
mais ciosamente defendido que as liberdades comunais, uma vez
adquiridas. É que com efeito os direitos exigidos pelos barões tornavam-
se insuportáveis a partir do momento em que não havia mais
necessidade da sua protecção: nos tempos de agitações, outorgas e
portagens eram justificadas, já que representavam os gastos de polícia
du estrada: um comerciante roubado nas terras de um senhor podia
fazer-se indemnizar por ele; mas a tempos novos e melhores devia
corresponder um reajustamento que foi obra do movimento comunal.
A Idade Média concluiu desta forma com êxito essa necessária rejeição
do passado, tão difícil de realizar na evolução da sociedade em
geral; é muito provável que, se o mesmo reajustamento tivesse sido
RÉG1NE PERNO
produzido em tempo oportuno para os direitos e privilégios da nobreza,
muitas desordens teriam sido evitadas.
A realeza dá o exemplo do movimento pela outorga de liberdades
às comunas rurais: a «carta de Lorris» concedida por Luís VI suprime
as anúduvas e a servidão, reduz as contribuições, simplifica os processos
em justiça e estipula por outro lado a. protecção dos mercados
e das feiras:
Nenhum homem da paróquia de Lorris pagará alfândega
ou qualquer direito para aquilo que for necessário à sua
subsistência, nem direitos sobre as colheitas feitas com o
seu trabalho ou o dos seus animais, nem direitos sobre o
vinho que tiver nas suas vinhas.
A ninguém será requerida cavalgada ou expedição que
o impeça de regressar nesse mesmo dia a casa, se o quiser.
Ninguém pagará portagem até Estampes, nem até Orleães,
nem até Milly, em Gâtinais, nem até Melun.
E aquele que tiver a sua propriedade na paróquia de
Lorris, esta não lhe poderá ser confiscada se tiver cometido
qualquer delito, a menos que seja um delito contra Nós ou
a nossa gente.
Ninguém que venha às feiras ou ao mercado de Lorris,
ou no regresso, poderá ser detido ou perturbado, a menos
que tenha cometido algum delito nesse dia.
Ninguém, nem Nós nem outros, poderá cobrar a talha
aos homens de Lorris-
Nenhum de entre eles fará anúduvas, a não ser uma vez
por ano, para levar o nosso vinho a Orleães, e a mais
nenhum lugar.
E quem quer que seja tenha vivido um ano e um dia na
paróquia de Lorris, sem que ninguém o reclame aí, nem
que tal lhe seja proibido por Nós nem pelo nosso preboste 1,
será a partir daí livre e franco.
A pequena cidade de Beaumont recebe pouco depois os mesmos
privilégios, e em breve o movimento se desenha em todo o reino.
É um dos espectáculos mais cativantes da história a evolução
de uma cidade na Idade Média: cidades mediterrânicas, Marselha,
Aries, Avinhão ou Monlpellier, rivalizando em audácia com as grandes
(1) Entre nós corresponde ao alcaide. (N. do R.)
LUZ SOBRE A ÍDADE MEDIA 49
cidades italianas pelo comércio «deste lado do mar» centros de
tráfego como Laon, Provins, Troyes ou Le Mans, centros de indústria
têxtil, como Cambrai, Noyon ou Valenciennes, todas fazem prova
de um ardor, de uma vitalidade sem igual. Tiveram de resto a
simpatia da. realeza: não ofereciam elas, na sua vontade de emancipação,
a dupla vantagem de enfraquecer o poder dos grandes feudais
e de trazer ao domínio real um crescimento inesperado, já que as
cidades franqueadas entravam desta feita na dependência da coroa?
Por vezes a violência é necessária, e assistimos a movimentos populares,
como em Laon ou Le Mans; mas a maior parte das vezes as
cidades libertam-se por meio de trocas, por contratações sucessivas,
ou pura e simplesmente à custa de dinheiro. Aí ainda, como em
todos os detalhes da sociedade medieval, a diversidade triunfa,
porque a independência pode não ser total: uma determinada parte
da cidade, ou tal direito particular permanecem sob a autoridade
do senhor feudal, enquanto o resto volta para a comuna. Um exemplo
típico é fornecido por Marselha: o porto e a parte baixa da cidade,
que os viscondes partilhavam entre si, foram adquiridos pelos burgueses,
bairro por bairro, e tornaram-se independentes, enquanto
a parte alta da cidade permanecia sob o domínio do bispo e do
capítulo e uma parte da baía, em frente ao porto, continuava a ser
propriedade da abadia de São Vítor.
Seja como for, o que é comum a todas as cidades é o empenhamento
que puseram em fazer confirmar essas preciosas liberdades
que acabavam de adquirir e a sua pressa em se organizarem, em porem
por escrito os seus costumes, em regular as suas instituições sobre as
necessidades que lhes eram próprias. Os seus usos diferem conforme
aquilo que faz a especialidade de cada uma delas: tecelagem, comércio,
forragens, curtumes, indústrias marítimas ou outra». A França conservaria
durante todo o Antigo Regime um carácter muito especial
devido à existência destes costumes particulares a cada cidade, fruto
complemente empírico das lições do passado, e, além disso, fixados
com toda a independência pelo poder local, portanto o mais possível
de acordo com as necessidades de cada uma. Esta variedade, de uma
cidade para a outra, dava ao nosso país uma fisionomia muito sedutora
e das mais simpáticas; a monarquia absoluta teve a sabedoria
de não tocar nos usos locais, de não impor um tipo de administração
uniforme; foi uma das forças — e um dos encantos — da França
antiga. Cada cidade possuía, num grau difícil de imaginar nos nosso
dias, a sua personalidade própria, não somente exterior, mas interior,
cm todos os detalhes da sua administração, em toda" as modalidades
Ou sua existência. São, geralmente —pelo menos no Midi—, dirigidas
por meirinhos, cujo número varia: dois, seis, por vezes doze; ou
REGIME PERNO
ainda um único reitor reúne o conjunto dos cargos, assistido por
um preboste que representa o senhor, quando a cidade não tem a
plenitude das liberdades políticas. Muitas vezes ainda, nas cidades
mediterrânicas, faz-se apelo a um poderoso (podestat), instituição muito
curiosa; o poderoso é sempre um estrangeiro (os de Marselha são sempre
italianos), ao qual se confia o governo da cidade por um período
de um ano ou dois; em toda a parte onde foi empregado, este regime
deu inteira satisfação.
Em todo o caso, a administração da cidade compreende um
conselho eleito pelos habitantes, geralmente por sufrágio restrito
ou com vários graus, e assembleias plenárias que reúnem o conjunto
da população, mas cujo papel é sobretudo consultivo. Os representantes
dos ofícios têm sempre um lugar importante, e sabemos qual
foi a parte ocupada pelo preboste dos comerciantes em Paris nos
movimentos populares do século xiv. A grande dificuldade com que
as comunas se debatem são os embaraços financeiros; quase todas
se mostram incapazes de assegurar uma boa gestão de recursos;
o poder é, aliás, rapidamente absorvido por uma oligarquia burguesa
que se mostra mais dura para com o povo miúdo do que tinham
sido os senhores — donde a rápida decadência das comuna:; são
muitas vezes agitadas por perturbações populares e periclitam a
partir do século xiv, um tanto ajudadas, é preciso dizê-lo, pelas
guerras da época e pelo mal-estar geral do reino.
*
Nos séculos XII e XIII, o comércio toma uma extensão prodigiosa;
já que uma causa exterior vem dar-lhe um novo impulso: as Cruzadas
As relações com o Oriente, que nunca tinham sido completamente
interrompidas nas épocas precedentes, conhecem então um vigor
novo; as expedições ultramarinas favorecem o estabelecimento dos
nossos mercados na Síria, na Palestina, na África do Norte e mesmo
nas margem do mar Negro. Italianos, Provençais e Languedócios
fazem-se uma severa concorrência, e estabelece-se uma corrente de
trocas, cujo centro é o Mediterrâneo, e que vai, seguindo a estrada
secular do vale do Reno, do Saône e do Sena (já seguida pelas
caravanas, que, antes da fundação de Marselha no século vi a. C,
transportavam o estanho das ilhas Cassitérides, isto é, da Grã-Bretanha,
até aos portos frequentados pelos comerciantes fenícios), até
ao Norte de França, ou países flamengos e a Inglaterra. É a época
das grandes feiras de Champagne, de Brie e da Ilha de França:
Provins, Lagny, Londit, em São Dinis, Bar, Troyes, onde chegam
as sedas, os veludos e os brocados, o alúmen, a canela c o cravo-da-
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA 51
-índia, os perfumes e as especiarias, vindos do centro da Ásia, e que
eram trocados, em Damasco ou em Jaffa, pelos tecidos de Douai
ou de Cambrai, as lãs de Inglaterra, as peles da Escandinávia. As
casas de comércio de Genes ou de Florença tinham nos nossos mercados
as suas sucursais permanentes; os banqueiros lombardos ou
de Cahors. negociavam aí com os representantes das hansas do
Norte e entregavam letras de câmbio válidas até nos portos mais
recuados do mar Negro. As nossas estradas conheciam assim uma
extraordinária animação. A importância do mercado oriental é capital
na civilização medieval; já a Alta Idade Média tinha conhecido o
Oriente através de Bizâncio: a igreja de Paris recitava em grego uma
parte dos seus ofícios; foram os marfins bizantinos que verdadeiramente
reensinaram ao Ocidente a arte esquecida de esculpir a
madeira e a pedra, e a decoração dos manuscritos irlandeses inspira-
se nas miniaturas persas; mais tarde, os Árabes conduzem as
suas conquistas com a brutalidade que sabemos e cortam as pontes,
por um tempo, entre as duas civilizações. Mas vêm as Cruzadas
e o mercado oriental — ao qual corresponde, aliás, um mercado
«franco» na Ásia Menor, que trabalhos recentes manifestaram —
banha toda a Europa, fá-la conhecer a vertigem do tráfego, o deslumbramento
dos frutos estranhos, dos tecidos preciosos, dos perfumes
violentos, dos costumes sumptuosos, inunda com a sua luz essa
época apaixonada pela cor e pela claridade. Sobretudo, multiplica
esse gosto pelo risco, essa sede de movimento, que na Idade Média
coexiste de forma tão tocante com a ligação à terra. Nunca, talvez,
a palavra «epopeia» foi melhor empregue que falando das Cruzadas;
nunca a atracção do Oriente se manifesta com mais ardor e conduz,
apesar dos aparentes fracassos, a mais espantosas realizações. Basta
evocar as fundações dos «Francos» na Terra Santa, desde as feitorias
dos comerciantes, estabelecimentos organizados que formam verdadeiras
cidadezinhas, com a sua capela, os banhos públicos, os entrepostos,
as habitações dos mercadores e sala do tribunal e das reuniões
até es as praças-fortes cuja massa desafia ainda o sol: Krak des Chevaliers,
castelo de Saone, fortificações do Tyr — até esses feitos de
armas extraordinários, os de um Raymond de Poitiers ou de um
Renaud de Châtillon, que fazem pensar que as Cruzadas, posta à
parle a sua finalidade piedosa, foram um feliz derivativo para o ardor
efervescente dos barões.
A Europa perderá muito quando, no século XIV, a sua atenção
se afasia do Oricnle. S. Luís tinha entrevisto essa possibilidade
de aliança com os Mongóis que, se tivesse sido aproveitada, teria
provavelmente mudado completamente o destino dos dois mundos,
oriental c ocidental. A sua morte prematura, a estreiteza de vistas
RÉG1NE PERNOUD
dos seus sucessores, deixaram no estado de esboço um projecto cuja
importância foi valorizada pelos trabalhos de René Grousset. Só os
Mongóis podiam opor ao Islão uma barreira eficaz; procuravam a
aliança franca e favoreciam os cristãos nestorianos. As relações estabelecidas
por Jean du Plan-Carpin, depois por Guillaume de Rubruquis,
que, em 1254 visitava Karakoroum, capital do Grand-Khan,
tinham feito compreender a uns e a outros que frutos poderiam
nascer de uma união semelhante. Não se ofereciam os Mongóis para
reconquistar Jerusalém aos Turcos Mamelucos? Mas a sua oferta não
foi tomada em consideração; o historiador dos Cruzadas, já citado,
fez notar a coincidência das duas datas: 1287, embaixada sem resultado
do nestoriano mongol Rabban Çauma a Paris, junto de Filipe,
o Belo; 1291, perda de São João d'Acre-
Submergido pelo Islão, o Oriente fechar-se-á à influência e ao
comércio europeu; o que marca uma decadência irremediável para
as cidades mediterrânicas e para os armadores inquietados pelos
piratas; só os cavaleiros do Hospital Saint-Jean continuarão a lutar
palmo a palmo e de Rodes a Malta desenvolverão encarniçados esforços
para manter a nossa via para o Oriente — luta desigual, mas
admirável, que não parará senão com a tomada de Malta por
Bonaparte.
A organização deste grande comércio oriental é pouco a pouco
a mesma em toda a parte. O negociante confia a um armador quer
uma carga, quer uma determinada soma de dinheiro para fazer frutificar;
o destino da viagem é em geral nitidamente indicado, mas
muitas vezes deixa-se também a iniciativa ao navegador, ad fortunam
maris. No regresso, este último recebe um quarto do lucro, ou, se
participou nas despesas, uma parte proporcional da receita, acordada
antecipadamente. Assim consistem os contratos de «encomenda» ou
de «sociedade» entre os mercadores. Uma das diferenças específicas
entre a Idade Média e a nossa época é que é então o comerciante,
não o armador, quem decide a travessia; as companhias de navegação
não têm itinerário determinado; é um caso de convenções com aqueles
que querem viajar.
No que concerne o comércio marítimo, a Igreja tolera o empréstimo
a juros, porque então os riscos que correm justificam o lucro
do dinheiro. O maior destes riscos, para lá do naufrágio, é o costume
do arremesso: um navio em perigo, ou perseguido por piratas, alivia-se
de uma parte da carga para facilitar o percurso. As recolhas de
costume» marítimos, Constitutum Usus de Pisa, Estatutos de Marselha,
Consulado do Mar, regulamentam cuidadosamente o arremesso,
as mercadorias que lhe são submetidas e a repartição das perdas
entre os mercadores que se encontram então no barco. Um outro
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA
risco provém do direito de represálias, que pode ser acordado por
uma cidade àqueles que se encontram sob a sua alçada sobre os
navios de uma cidade inimiga, ou mais particularmente a um mer
cador que se encontra lesado ou cuja carga foi pilhada; o que existe
é então uma das formas do direito de vingança privada.
Para melhor se defenderem, e por um uso caro à época, os
mercadores têm o hábito de se associarem. Existe em primeiro lugar,
para os navios, aquilo a que se chama a conserva: dois navios, ou
mais, decidem realizar em conjunto a travessia; esta decisão é objecto
de um contrato que ninguém pode quebrar sem se expor a sanções
e a uma multa. Por outro lado, os mercadores de uma cidade, onde
quer que se encontrem, formam uma associação e elegem um de entre
eles para os administrar e, se necessário, assumir a responsabilidade
ou a defesa dos seus interesses. As sucursais mais importantes têm
um cônsul fixo que durante todo o tempo, ou pelo menos durante
a grande «estação» comercial, que vai do São João, a 24 de Junho,
ao Santo André, em Novembro, rege a feitoria. Marselha oferece-nos
o exemplo desta instituição dos cônsules, comum nas cidades do Mediterrâneo,
cujas decisões não podiam ser alteradas senão pelo reitor
da comuna e adquiriam mesmo a força de lei; do mesmo modo
havia um na maior parte das cidades da Síria e do Norte de África,
em Acre, em Ceuta, em Bougie, em Tunes e nas Baleares.
*
Com o comércio, o elemento essencial da vida urbana é o ofício-
A forma como foi compreendido na Idade Média, como se regulou
o seu exercício e as suas condições, mereceu reter particularmente
a atenção da nossa época, que vê no sistema corporativo uma solução
possível para o problema do trabalho. Mas o único tipo de corporação
2 realmente interessante é a corporação medieval, tomada no
sentido lato de confraria ou associação de ofício, e de resto cedo
alterada sob pressão da burguesia; os séculos seguintes não conheceram
dela senão deformações ou caricaturas.
(2) Ê a custo que empregamos este termo, do qual tanto se abusou
e se prestou a Inúmeras confusões a propósito das nossas antigas
Instituições. Notemos em primeiro lugar que se trata de um vocábulo
moderno, que só aparece no século XVIII. Até então só tinha sido questão
de mestrias ou de confrarias (jurandes). Estas, caracterizadas pelo mo.
nopolio de fabrico por um dado ofício numa cidade, foram, durante o belo
período da Idade Média, bastante pouco numerosas; existiam em Paris,
uniu não no conjunto do reino, onde começaram a tornar-se o regime habitual
ainda com inúmeras excepções— apenas no fim do século XV. A
Idade de ouro das corporações foi, não a Idade Média mas o século XVI.
Ora, a partir dessa época começavam, sob o impulso da burguesia, a ser
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA
RÉG1NE PERNO
Não poderíamos definir melhor a corporação medieval do que
vendo nela uma organização familiar aplicada ao ofício. Ela é o
agrupamento, num organismo único, de todos os elementos de um
determinado ofício: patrões, operários, aprendizes estão reunidos,
não sob uma autoridade dada, mas em virtude dessa solidariedade
que nasce naturalmente do exercício de uma mesma indústria. É,
como a família, uma associação natural; não emana do Estado nem
do rei. Quando São Luís manda Étienne Boileau redigir o Livre des
Métiers [Livro dos Mesteres], não é senão para redigir por escrito
os usos já existentes, sobre os quais não intervém a sua autoridade.
O único papel do rei face à corporação, como de todas as instituições
de direito privado, é controlar a aplicação leal dos costumes em vigor;
como a família, como a Universidade, a corporação medieval é um
corpo livre, que não conhece outras leis senão as que ela própria
forjou: é essa a sua característica essencial, que conservará até ao fim
do século xv.
Todos os membros de um mesmo ofício fazem obrigatoriamente
parte da corporação, mas nem todos, bem entendido, desempenham
aí o mesmo papel: a hierarquia vai dos aprendizes aos mestres-jurados,
que formam o concelho superior do ofício. Habitualmente distinguimos
aí três graus: aprendiz, companheiro ou servente de ofício e mestre;
mas isto não pertence ao período medieval, durante o qual, até por
meados do século xiv, se pode, na maior parte dos ofícios, passar
a mestre logo que terminada a aprendizagem. Os serventes de ofício
só se tornarão numerosos no século XVII, onde uma oligarquia de
artesãos ricos procura cada vez mais reservar-se o acesso à mestria,
o que esboça a formação de um proletariado industrial. Mas, durante
toda a Idade Média, as possibilidades à partida são exactamente as
de facto tomadas pelos patrões que fizeram da mestria uma espécie de
privilégio hereditário, tendência que se acentuou de tal forma que nos
séculos seguintes os mestres constituíam uma verdadeira casta, cujo
acesso era difícil, senão impossível, para os operários pouco afortunados.
Estes não tiveram outro recurso senão formar por sua vez, para sua
defesa, sociedades autónomas e mais ou menos secretas, as companhei
ragens.
Depois de ter sido, no espírito de determinados historiadores, o
sinónimo de «tirania», a corporação foi alvo de juízos menos severos
e por vezes de elogios exagerados. Os trabalhos de Hauser tiveram
sobretudo por finalidade reagir contra esta última tendência e demostrar
que é preciso evitar ver nela um mundo «idílico»; é bem certo que
nenhum regime de trabalho pode ser qualificado de «idílico», tanto a
corporação como um outro — a não ser talvez por comparação com a
situação criada ao proletariado industrial do século xix, ou com inovações
modernas tais como o sistema Bedaud.
mesmas para todos, e todo o aprendiz, a menos que seja demasiado
desajeitado ou preguiçoso, acaba por passar a mestre.
O aprendiz está ligado ao mestre por um contrato de aprendizagem
— sempre esse laço pessoal caro à Idade Média— que comporta
obrigações para as duas partes; para o mestre, a de formar
o aluno no ofício, de lhe assegurar a casa e o sustento, sendo proporcionado
o pagamento pelos pais das despesas de aprendizagem; para
o aprendiz, a obediência ao mestre e a aplicação ao trabalho. Encontramos,
transposta para o artesanato, a dupla noção de «fidelidade-
protecção» que une o senhor ao vassalo ou ao rendeiro. Mas como,
aqui, uma das partes do contrato é uma criança de doze a catorze
anos, são empregues todos os cuidados para reforçar a protecção
de que deve gozar, e enquanto se manifesta toda a indulgência para
a& faltas, as leviandades, mesmo até as vadiagens do aprendiz, os
deveres do mestre são severamente precisados: não pode receber senão
um aprendiz de cada vez, para que o ensino seja frutuoso e para
que não possa explorar os alunos, descarregando sobre eles uma
parte do trabalho; não pode encarregar-se deste aprendiz senão depois
de ter exercido a mestria durante um ano, pelo menos, para que
posa dar-se conta das suas capacidades técnicas e morais. «Ninguém
deve receber um aprendiz se não for tão sábio e tão rico que possa
ensiná-lo e governá-lo e mantê-lo [...] e isto deve ser sabido e feito
pelos dois membros do conselho que defendem o ofício», dizem os
regulamentos- Eles fixam expressamente aquilo que o mestre deve
despender diariamente para a alimentação e a manutenção do aluno;
finalmente, os mestres estão submetidos a um direito de visita detido
pelos jurados da corporação, que vêm ao domicílio examinar a forma
como o aprendiz é alimentado, iniciado no ofício e tratado de ma
neira geral. O mestre tem para com ele os deveres e os encargos
de um pai e deve entre outras coisas velar pela sua conduta e pelo
seu comportamento moral; em contrapartida, o aprendiz deve-lhe
respeito e obediência, mas vai-se ao ponto de favorecer por parte
deste uma certa independência: no caso de um aprendiz sair de casa
do mestre, este deve esperar um ano até poder receber outro, e durante
todo esse ano é obrigado a receber o fugitivo se ele voltar — isto para
que todas as garantias estejam do lado mais fraco, não do mais forte.
Para passar a mestre, é preciso ter terminado o tempo de aprendizagem;
este tempo varia conforme os ofícios, como é normal, e
dura em geral de três a cinco anos; é provável que então o futuro
me Ire devesse fazer prova da sua habilidade face aos jurados da
corporação, o que está na origem da obra-prima, cujas condições irão
complicar-se no decorrer dos séculos; além disso, deve pagar uma
taxa, aluis mínima (de 3 a 5 soldos em geral) —a sua cotização
56 RÉGIE PERNOUD
para a confraria do corpo do ofício; finalmente, em alguns ofícios,
cuja solvabilidade o mercador é obrigado a justificar, é exigido o
pagamento de uma caução. Tais são as condições da mestria durante
o período medieval propriamente dito; por volta do século xiv, as
corporações, até aí independentes na sua maior parte, começam a ser
ligadas ao poder central e o acesso à mestria torna-se mais difícil:
é exigido, em alguns ramos, um estágio prévio de três anos como
companheiro, e o postulante deve entregar uma renda anual a que
se chama a compra do ofício, que varia de 5 a 20 soldos.
O exercício de cada ofício era objecto de uma regulamentação
minuciosa, que tendia antes de tudo para manter o equilíbrio entre
os membros da corporação. Qualquer tentativa para tomar um mercado,
qualquer esboço de entendimento entre alguns mestres em
detrimento dos outros, qualquer ensaio para deitar a mão a uma
excessiva quantidade de matérias-primas, eram severamente reprimidas:
nada mais contrário ao espírito das antigas corporações que o
aprovisionamento, a especulação ou os nossos modernos trusts. Era
também implacavelmente punido o acto de desviar para seu proveito
a clientela de um vizinho, o que nos nossos dias se chamaria abuso
da publicidade. A concorrência existia contudo, mas estava restringida
ao domínio das qualidades pessoais: a única forma de atrair
um cliente, era fazer, por um preço igual, melhor, mais acabado,
mais cuidado que o vizinho.
Os regulamentos lá estavam uma vez mais para velar pela boa
execução do ofício, procurar as fraudes e punir a má-fé; com este
fim, o trabalho devia quanto possível ser feito no exterior, ou pelo
menos em plena luz; pobre do fabricante de panos que tivesse fabricado
um tecido de má qualidade nos recantos obscuros da sua loja!
Tudo deve ser mostrado à luz do dia, no alpendre onde o basbaque
gosta de se demorar, onde o Mestre Pathelin vem «enganar» o mercador
ingénuo.
Os mestres-jurados ou «guardas de ofício» lá estão para fazer
observar os regulamentos. Exercem um direito de visita severo. Os
defraudadores são postos no pelourinho e expostos, com a má mercadoria,
durante um tempo variável; os seus companheiros são os
primeiros a apontá-los com o dedo. É que é muito vivo o sentimento
de honra do ofício. Os que o mancham excitam o desprezo dos
colegas que se sentem atingidos pela vergonha que cai sobre todo o
ofício; são postos à margem da sociedade; são olhados um pouco
como cavaleiros perjuros que tivessem merecido a degradação. O artesão
medieval, de uma maneira geral, tem o culto do trabalho. Encontramos
o testemunho dis^o nos romances de ofício como os de Thomas
Deloney sobre os tecelões e os sapateiros de Londres: os sapateiros
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA
intitulam a sua arte «o ofício nobre» e sentem-se orgulhosos do provérbio:
«Todo o filho de sapateiro nasceu príncipe.» Um poema
medieval, o Dit des Févres (Dos artesãos), detém-se complacentemente
sobre os méritos destes:
M'est il avis que févres sont
La gent pour qiíen doit mieux prier.
Bien savez que de termoier [lambiner]
Ne vivent pas févres, dest voir [vrai]
N'est pas d'usure leur avoir
[...] De leur labeur, de leur íravail
Vivem les févres loyaument
Et si donnent plus largement
Et dépensení de ce qu'ils ont
Que usuriers, qui rien ne font,
Chanoines, prouvères, ou moines 3.
Ê uma característica especificamente medieval esse orgulho pelo
seu estado — e não menos medieval, o zelo com o qual cada corporação
reivindica os seus privilégios.
O de julgar por si própria os delitos do ofício é talvez um dos
mais preciosos para a época, mas ela estima também como essencial
a liberdade de se administrar através dos seus próprios representantes.
Para isso, elege-se todos os anos um conselho composto por mestres
escolhidos, quer pelo conjunto da corporação, quer pelos outros
mestres; os usos variam conforme os ofícios. Os conselheiros prestam
juramento, donde o nome de «jurados»; devem velar pela observação
dos regulamentos, visitar e proteger os aprendizes, resolver os diferendos
que podem surgir entre os mestres, inspeccionar as lojas para
policiar as fraudes. É a eles que cabe também o cargo de administrar
a caixa da corporação. A sua influência é tal na cidade que acabam
por desempenhar um papel político.
Em algumas cidades, como Marselha, os delegados dos ofícios
tomam parte efectiva na direcção dos assuntos comunais; fazem
compulsivamente parte do Conselho Geral; nenhuma decisão que
toque os interesses da cidade pode ser tomada sem eles; escolhem
semanalmente «semaneiros» que assistem o reitor e sem os quais não
(3) E minha opinião que artesãos são/A gente por quem mais se
deve rezar / Bem sabeis que de serem ronceiros / Não vivem os artesãos,
é verdade / Não é costume que eles tenham./ [...] Do seu labor, do seu
trabalho / Vivem os artesãos lealmente/E dão mais largamente/E despnutim
o que têm mais/Que usurários, que nada fazem, / Cónegos, prioresi
ou monges.
RÉG1NE PERNO
se pode tomar deliberação. Repetindo a expressão do historiador da
comuna de Marselha, M. Bourrilly, os chefes de ofício eram «o elemento
motor» da vida municipal, e poder-se-ia dizer que Marselha
teve no século XIII um governo de base corporativa.
A confraria, de origem religiosa, que existe um pouco por toda
a parte, mesmo onde o ofício não está organizado em mestria ou
confraria (jurande), é um centro de entreajuda. Entre os encargos que
pesam regularmente sobre a caixa da comunidade figuram em primeiro
lugar as pensões dadas aos mestres idosos ou enfermos, e as
ajudas aos membros doentes durante o tempo de doença e de convalescença.
É um si tema de seguros no qual cada caso pode ser conhecido
e examinado em particular, o que permite levar o remédio apropriado
a cada situação e evitar também os abusos e as acumulações.
«Se filho de mestre acontece ser pobre, e quer aprender, os membros
do conselho devem mandá-lo aprender com os 5 soldos (taxa corporativa)
— e com as suas esmolas», diz o estatuto dos «amieiros» ou
fabricantes de escudos. A corporação ajuda se necessário os seus
membros quando estão em viagem ou em caso de desemprego. Thomas
Deoloney põe na boca de um colega do «Nobre Ofício» uma passagem
muito significativa. Tom Drum (é o seu nome) encontrou no caminho
um jovem senhor arruinado e propõe-lhe que o acompanhe até Londres:
«Sou eu quem paga, diz ele, na próxima cidade divertir-nos-
emos bem— Como, diz o jovem, julguei que não tinham senão um
soldozinho por fortuna. — Vou-te explicar, continua Tom. Se fosses
sapateiro como eu, poderias viajar de uma ponta à outra de Inglaterra
sem nada que não fosse um penny no bolso. No entanto, em todas
as cidades encontrarias boa cama e boa mesa, e de que beber, sem
sequer gastares o teu penny. É que os sapateiros não querem que a
nenhum deles falte nada. Eis o nosso regulamento: 'Se um companheiro
chega a uma cidade, sem dinheiro e sem pão, não tem
senão que fazer-se conhecer, e não tem necessidade de se ocupar
com outra coisa. Os outros companheiros da cidade não só o recebem
bem, mas oferecem-lhe gratuitamente o sustento e a alimentação. Se
quer trabalhar, a comissão encarrega-se de lhe encontrar um patrão
e não tem de se incomodar'.» Esta curta passagem diz o suficiente
para dispensar comentários.
Assim compreendidas, as corporações eram um centro muito vivo
de ajuda mútua, que faziam honra à divisa: «Todos por um, cada
um por todos.» Tiravam fama das suas obras de caridade, os ourives
obtêm assim a permissão de abrir a loja aos domingos e nas festas
dos Apóstolos, geralmente feriados, cada um por sua vez; tudo o que
ganha nesse dia serve para oferecer no domingo de Páscoa uma
refeição aos pobres de Paris: «Quanto ganhar a oficina aberta, é posto
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA 59
na caixa da confraria dos ourives [...] e com todo o dinheiro dessa
caixa dá-se todos os anos no domingo de Páscoa um jantar aos pobres
do Hôtel-Dieu de Paris.» De igual modo, na maior parte dos ofícios,
os órfãos da corporação são educados a expensas suas.
Tudo isto se passa numa atmosfera de concórdia e de alegria de
que o trabalho moderno não pode de todo dar ideia. As corporações
e confrarias têm cada uma as suas tradições, a sua festa, os seus
ritos piedosos ou burlescos, as suas canções, as suas insígnias. Ainda
segundo Thomas Deloney, um sapateiro para ser adoptado como
filho do «Nobre Ofício» deve saber «cantar, tocar trompa, tocar
flauta, manejar o pau ferrado, combater à espada e contar os seus
utensílios em verso». Por ocasião das fe3tas da cidade, e nos cortejos
solenes, a corporações desfraldam as suas bandeiras, e para quem
aí se encontrar haverá alguns títulos de precedência. São pequenos
mundos extraordinariamente vivos e activos, que acabam de dar
à cidade o seu impulso e a sua fisionomia original.
Globalmente, não saberíamos resumir melhor a natureza da vida
urbana na Idade Média do que citando o grande historiador das
cidades medievais, Henri Pirenne: «A economia urbana é digna da
arquitectura gótica da qual é contemporânea- Ela criou todas as
peças [...] uma legislação social mais completa do que a de qualquer
outra época, incluindo a nossa. Suprimindo os intermediários entre
vendedor e comprador, assegurou aos burgueses o benefício da vida
barata; perseguiu impiedosamente a fraude, protegeu o trabalhador
contra a concorrência e a exploração, regulamentou o seu trabalho
e o seu salário, velou pela sua higiene, providenciou a aprendizagem,
impediu o trabalho da mulher e da criança, ao mesmo tempo que
conseguiu reservar para a cidade o monopólio de fornecer com os
seus produtos os campos envolventes e de encontrar lá longe saídas
para o seu comércio."
(4) Les Villes et leu Institutions urbaines au Moyen Age, tomo I,
p. 481.
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segunda-feira, 16 de maio de 2016
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