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quarta-feira, 18 de maio de 2016

Luz sobre a Idade Média VII


Luz sobre a Idade Média VII






CAPÍTULO VIII

O ENSINO

A criança, na Idade Média como em todas as épocas, vai à
escola. É, em geral, a escola da sua paróquia ou do mosteiro mais
próximo. Com efeito, todas as igrejas agregam a si uma escola; o
concílio de Latrão, em 1179, faz-lhes disso uma obrigação estrita,
e é uma disposição corrente, ainda visível em Inglaterra, país mais
conservador do que o nosso, encontrar reunidos a igreja, o cemitério
e a escola. Frequentemente também, são as fundações senhoriais
que asseguram a instrução das crianças; uma aldeiazinha das margens
do Sena, Rosny, tinha, desde o início do século xin, uma e cola
fundada por volta do ano 1200 pelo seu senhor, Guy V Mauvoisin-
Por vezes, também, trata-se de escolas puramente privadas: os habitantes
de um lugarejo associam-se para sustentar um professor encarregado
de ensinar as crianças; um pequeno texto divertido conservou-
nos a petição de alguns pais solicitando a demissão de um professor,
que não tendo sabido fazer-se respeitar pelos seus alunos é
por eles desrespeitado, ao ponto de eum pugiunt grafionibus — de eles

o picarem com os seus gratines, os estiletes com os quais eles escrevem
nas suas tabuinhas revestidas de cera.
Mas os privilegiados são evidentemente aqueles que podem aproveitar
o ensino das escolas episcopais ou monásticas, ou ainda das
escolas capitulares, porque os capítulos das catedrais estavam submetidos
à obrigação de ensinar que o referido concílio de Latrão lhes
fixara1. Algumas adquiriram na Idade Média uma notabilidade
muito particular, por exemplo as de Chartres, de Lião, do Mans,
onde os alunos representavam as tragédias antigas, a de Lisieux
onde, no início do século XII, o bispo em pessoa se deleitava em vir
ensinar, a de Cambrai, sobre a qual um texto citado pelo erudito
Pithou nos informa de que elas tinham sido estabelecida, especial


(1) «Em cada diocese», diz Luchaire, «fora das escolas rurais ou
paroquiais que já existiam [...] os capítulos e os mosteiros principais
tinham as suas escolas, o seu pessoal de professores e de alunos». (La
Société française au temp de Philippe de Philippe-Auguste, p. 68.)

RÉGIE PERNO

mente a fim de serem úteis ao povo na condução dos seus assuntos
temporais.

As escolas monásticas tiveram talvez ainda mais renome e os

nomes das de Bec, de Fleury-sur-Loire, onde foi aluno o rei Roberto,

o Piedoso, de Saint-Géraud d'Aurillac, onde Gerbert aprendeu os
primeiros rudimentos das ciências que ele próprio iria levar até um
tão alto grau de perfeição, vêm-nos naturalmente à memória, como
as de Marmoutier, perto de Tours, de Saint-Bénigne de Dijon, etc.
Em Paris, encontram-se desde o século XII três séries de estabelecimentos
escolares: a escola Notre-Dame, ou grupo de escolas do
bispado, cuja direcção é assumida pelo chantre para as classes elementares
e pelo chanceler para o grau superior; as escolas das abadias
como Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-Germain-des-Prés e,
enfim, as instituições particulares abertas pelos professores que obtiveram
a licença de ensino, como Abelardo, por exemplo.
A criança era aí admitida com sete ou oito anos de idade,
e o ensino que preparava para os estudos da Universidade estendia-se
como hoje por uma dezena de anos; são os números que o abade
Gilles le Muisit dá. Os rapazes eram separados das raparigas, que
tinham, em geral, os seus estabelecimentos particulares, menos numerosos
talvez, mas onde os estudos eram por vezes muito activos.
A abadia de Argenteuil, onde foi educada Heloísa, ensinava às raparigas
a Santa Escritura, as letras, a medicina e mesmo a cirurgia,
sem contar o grego e o hebraico que Abelardo lá ensinou. Em geral,
as pequenas escolas proporcionavam aos seus alunos as noções de
gramática, de aritmética, de geometria, de música e de teologia que
lhes permitiriam aceder às ciências estudadas nas Universidades;
é possível que algumas tenham comportado uma espécie de ensino
técnico. A Histoire Littéraire cita, por exemplo, a escola de Vassor,
na diocese de Metz, na qual, aprendendo a Santa Escritura e as letras,
se trabalhava o ouro, a prata, o cobre2. Os mestres eram quase sempre
secundados pelos mais velhos e melhor formados dos estudantes, como
actualmente no ensino mútuo.

C'étoit ce belle chose de plente d'écoliers:

lis manoient ensemble par loges, par soliers,

Enfants de riches hommes et enjanís de toiliers [d'ouvriers] 3,

(2) L. VII, c. 29; assinalado por J. Guiraud, Hisfoire partiale, histoire
vraie, p. 348.
(3) Que bela coisa ver a quantidade de aprendizes: / Habitavam cm
conjunto desvãos e quartos, / filhos de homens ricos e. filhos de artesão*
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

diz Gilles le Muisit, lembrando as suas recordações de juventude; é
que, de facto, nesta época as crianças de todas as «classes» da sociedade
eram instruídas juntas, como o testemunha a anedota célebre
que mostra Carlos Magno sendo severo para com os filhos dos barões
que se mostravam preguiçosos, ao contrário dos filhos dos servos
e de pessoas pobres. A única distinção estabelecida consistia nas retribuições
pedidas, sendo o ensino gratuito para os pobres e pago para
os ricos. Esta gratuitidade podia prolongar-se, vê-lo-emos, por toda
a duração dos estudos, e mesmo para o acesso ao ensino, uma vez
que o concílio de Latrão, já citado, proíbe às pessoas que têm a
missão de dirigir e tomar conta das escolas «de exigir dos candidatos
ao professorado uma qualquer remuneração pela outorga da licença».

Há, aliás, pouca diferença, na Idade Média, na educação dada
às crianças de diversas condições; os filhos dos vassalos menores são
educados na residência senhorial juntamente com os do suserano,
os dos ricos burgueses são submetidos à mesma aprendizagem que o
último dos artesãos, se querem tomar conta, por sua vez, da loja
paterna. É sem dúvida por isto que temos tantos exemplos de grandes
personagens saídos de famílias de condição humilde: Suger, que governa
a França durante a cruzada de Luís VII, é filho de servos;
Maurice de Sully, o bispo de Paris que mandou construir Notre-Dame,
nasceu de um mendigo; São Pedro Damião, na sua infância, guarda
porcos, e uma das mais vivas luzes da ciência medieval, Gerbert
d'Aurillac, é igualmente pastor; o papa Urbano VI é filho de um

pequeno sapateiro de Troyes e Gregório VII, o grande papa da
Idade Média, de um pobre cabreiro. Inversamente, muitos dos grandes
senhores são letrados cuja educação não devia diferir muito da dos
clérigos: Roberto, o Piedoso, compõe hinos e sequências latinas; Guilherme
IX, príncipe da Aquitânia,' é o primeiro, cronologicamente,
dos trovadores; Ricardo Coração-de-Leão deixou-nos poemas, assim
como os senhores de Ussel, dos Baux e tantos outros — para não falar
de casos mais excepcionais, como o do rei de Espanha Afonso X,

o Astrónomo, que escreve sucessivamente poemas e obras de direito,
faz progredir notavelmente os conhecimentos astronómicos da época
com a redacção das suas Tables Alphonsines [Tábuas Afonsinas],
deixa uma vasta Chronique [Crónica] sobre as origens da História
de Espanha e uma compilação de direito canónico e de direito romano
que foi o primeiro Code [Código] do seu país.
Os estudantes mais dotados tomam, naturalmente, o caminho
da Universidade; fazem a sua escolha, segundo o ramo que os atrai,
porque cada um deles, tem um pouco a sua especialidade- Em Montpcllicr,
é a medicina; desde a data de 1181 que Guilherme VII, senhor
desta cidade, deu a qualquer particular, quem quer que seja e venha


RÉGIE PERNO

donde vier, a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresente as
garantias de saber suficientes. Orleães faz sua especialidade o direito
canónico e Bologne o direito romano. Mas, já, «nada se pode comparar
a Paris», onde o ensino das artes liberais e da teologia atrai os
estudantes de todos os países: da Alemanha, da Itália, de Inglaterra,
e mesmo da Dinamarca ou da Noruega.

Estas Universidades são criações eclesiásticas, o prolongamento,
de algum modo, das escolas episcopais, das quais diferem no facto
de dependerem directamente do papa e não do bispo do lugar. A bula
Parens scientiarum de Gregório IX pode ser considerada como a carta
de fundação da Universidade medieval, com os regulamentos promulgados
em 1215 pelo cardeal-núncio Roberto de Courçon, agindo em
nome de Inocêncio III, e que reconheciam explicitamente aos professores
e aos alunos o direito de associação. Criada pelo papado, a Universidade
tem um carácter inteiramente eclesiástico: os professores pertencem
todos à Igreja, e as duas grandes ordens que ilustram, no
século XIII, Franciscana e Dominicana, vão lá, em breve, cobrir-se
de glória, com um S. Boaventura e um S. Tomás de Aquino; os
alunos, mesmo aqueles que não se destinam ao sacerdócio, são chamados
clérigos, e alguns deles usam a tonsura — o que não quer
dizer que aí apenas se ensine a teologia, uma vez que o seu programa
comporta todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, da
gramática à dialéctica, passando pela música e pela geometria.

Esta «universidade» de professores e estudantes forma um corpo
livre. Filipe Augusto tinha, desde o ano 1200, subtraído os seus
membros da jurisdição civil — dito de outra maneira, dos seus próprios
tribunais; professores, alunos e mesmo os criados destes dependem
apenas dos tribunais eclesiásticos, o que é considerado um
privilégio e consagra a autonomia desta corporação de elite. Professores
e e?tudantes estão, portanto, inteiramente isentos de obrigações
relativamente ao poder central; administram-se a si próprios, tomando
em comum as decisões que lhes respeitam e gerem a sua tesouraria
sem nenhuma ingerência do Estado. É esta a característica essencial da
Universidade medieval e, provavelmente, aquela que mais a distingue
da de hoje.

Esta liberdade favorece entre as diversas cidades uma emulação
da qual teríamos dificuldade em fazer uma ideia actualmente. Durante
anos, os professores de Direito Canónico de Orleães e de Paris
disputam entre si os alunos. Os registos da Faculdade de Decreto,
publicados na colecção dos Documents inédits, formigam de recriminações
a propósito dos estudantes parisienses que vão, fraudulenta
mente, concluir a sua licenciatura a Orleães, onde os exames s;n>
mais fáceis. Ameaças, anulações, processos, nada surte efeito, c as

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

contestações prolongam-se interminavelmente. Emulação também a
respeito dos professores, mais ou menos estimados, das teses discutidas
com paixão, quais os estudantes tomam a peito, até, por vezes,
ao ponto de entrar em greve. A Universidade, mais ainda do que nos
nossos dias, é, na Idade Média, um mundo turbulento.

É também um mundo cosmopolita; as quatro «nações» entre as
quais estavam repartidos os clérigos parisienses indicam-no suficientemente:
havia os Picardos, os Ingleses, os Alemães e os Franceses.
Os estudantes vindos de cada um destes países eram, portanto, suficientemente
numerosos para formar um grupo que tinha a sua autonomia,
os seus representantes, a sua actividade particular; fora disto,
assinalam-se correntemente nos registos nomes italianos, dinamarqueses,
húngaros e outros. Os professores que ensinam vêm, também
eles, de todas as partes do mundo: Siger de Brabant, Jean de Salisbury
usam nomes significativos; Alberto Magno vem da Renânia,

S. Tomás de Aquino e S. Boaventura, de Itália. Não há, então,
obstáculo às trocas de pensamento, e só se julga um professor pela
amplidão do seu saber. Este mundo matizado possui uma língua
comum, o latim, o único falado na Universidade; é, sem dúvida, o
que lhe evita ser uma nova Torre de Babel, apesar dos grupos
diversificados de que é composta; o uso do latim facilita as relações,
permite aos sábios comunicar de uma ponta à outra da Europa,
dissipa, de antemão, qualquer confusão na expressão e salvaguarda
também a unidade de pensamento. Os problemas que apaixonam os
filósofos são os mesmos, em Paris, em Edimburgo, em Oxford,
em Colónia ou em Pavia, ainda que cada centro e cada personalidade
lhes imprimam o seu carácter próprio. Tomás de Aquino,
vindo de Itália, em Paris acaba de esclarecer e de ultimar uma doutrina
cujas bases ele concebera escutando, em Colónia, as lições de
Alberto Magno. Nada se parece menos com um vaso fechado, vemo-
lo, do que a Sorbonne do século XIII.
Cleres viennent à études de toutes nations
Et en hiver s'assemblent par plusiers légions.
On leur lit et ils oient pour leur instruction;
En été s'en retraient moult en leurs régions4,

6 assim que Gilles le Muisit, já citado, resume a vida dos estudantes.
O seu vaivém é perpétuo, com efeito; partem para alcançar a
Universidade da sua escolha, voltam para as suas terras nas férias,

(4) Clérigos vêm aos estudos de todas as nações / E no Inverno «e
T0únem em vários grupos. / Fazem-se leituras e escutam instruindo-se; /
No Verão regressam multas às suas regiões.

RÉG1NE PERNOUD

põem-se a caminho, entretanto, para irem aproveitar as lições de um
professor de nomeada ou estudar uma matéria na qual determinada
cidade se especializou. Já mencionámos as «fugas» dos candidatos
aos exames de direito canónico para Orleães; isto repete-se constantemente,
e, por vezes, entre cidades muito mais afastadas. Estudantes
e professores são frequentadores das estradas reais; a cavalo e mais
frequentemente a pé percorrem léguas e léguas, dormindo em celeiros
ou na hospedaria. Com os peregrinos e os mercadores, são eles quem
mais contribui para a extraordinária animação que reinou nas nossas
estradas, na Idade Média, e que elas apenas reencontraram no século
do automóvel, ou, melhor, depois do desenvolvimento dos desportos
de ar livre. O mundo letrado é, então, um mundo itinerante. É a tal
ponto que nalguns o movimento se torna uma necessidade, uma mania;
nos nossos dias, encontramos no Quartier Latin destes estudantes
envelhecidos na boémia, que não conseguiram voltar a uma vida
normal, nem utilizar os estudos cujo peso suportaram durante anos;
na Idade Média, este tipo de indivíduos vagueava pela estrada: era

o clérigo vagabundo ou goliardo, tipo bem medieval, inseparável do
«clima» da época; «todo das tabernas e das raparigas», vai de taberna
em taberna, em busca de uma «refeição gratuita obtida por manha»
e, sobretudo, de um copo de vinho, é assíduo dos maus lugares,
guarda alguns restos de saber dos quais se serve para o assombro das
boas pessoas, a quem recita versos de Horácio ou fragmentos de
canções de gesta, inicia, ao acaso dos encontros, uma discussão sobre
qualquer questão teológica e acaba por se perder na multidão dos
jograis, dos tratantes e dos maltrapilhos — senão por se fazer prender
na sequência de qualquer má acção; as suas canções correram a
Europa, e o mundo estudantil conhece ainda destes cantos goliardos:
Meum est propositum in taberna mori,

Vinum sit appositum morientis ori

Ut dicant cum venerint angelorum chori:

Deus sit propitius huic potatori!R

A Igreja teve de proceder severamente, por várias vezes, relativamente
a estes clérigos vagabundos (clerici vagi) que mantinham a
devassidão e a preguiça no mundo dos estudantes.

Eles são a excepção: no conjunto, o estudante do século XIII
não tem uma vida muito diferente da do século XX. Conservaram-se

(5) Ê meu propósito morrer numa taberna, / Que o vinho J*f/~
aos moribundos /E dizem coros de anjos com venera^. / Que Dseja benevolente com os bebedores!
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

e publicaram-se cartas dirigidas aos pais ou a camaradas " que revelam
as mesmas preocupações de hoje, aproximadamente: os estudos, os
pedidos de dinheiro e de provisões, os exames. O estudante rico
morava na cidade com o seu criado; os de condição mais modesta
hospedavam-se em casas de burgueses do bairro Sainte-Geneviève e
faziam-se exonerar de toda ou parte das suas propinas de inscrição
na faculdade: encontramos frequentemente, à margem, nos registos,
uma menção indicando que fulano ou falano nada pagou, ou só pagou
metade da remuneração, propter inopiam, devido à sua pobreza.
O estudante desprovido de recursos faz frequentemente pequenos
trabalhos para viver: é copista, ou encadernador nos livreiros que
têm loja na Rue des Écoles ou na Rue Saint-Jacques. Mas, fora isto,
pode ser custeado de cama e mesa nos colégios instituídos. O primeiro,
em data, foi criado no Hôtel-Dieu de Paris por um burguês de
Londres que, no regresso de uma peregrinação à Terra Santa, pelo
fim do século XII, teve a ideia de fazer uma obra piedosa favorecendo

o saber nas pessoas de modesta condição: deixou uma fundação perpétua,
encarregada de albergar e de alimentar gratuitamente dezoito
estudantes pobres, que só ficavam sujeitos, por seu turno, a velar
os mortos do hospital e a levar cruz e água benta por ocasião dos
enterros. Um pouco mais tarde, fundaram-se, de igual modo, o colégio
Saint-Honoré e o de São Tomás do Louvre, seguidos de muitos outros.
Pouco a pouco, ganhou-se o hábito de organizar nestes colégios
sessões de trabalho em comum, como nos seminários alemães, ou
os «grupos de estudos» que funcionam desde há alguns anos nas
nossas faculdades; os professores vieram aí leccionar; alguns fixaram-
se lá e, por vezes, o colégio tornou-se mais frequentado do que a
própria Universidade; é o que acontece com o colégio da Sorbonne.
No conjunto, havia todo um sistema de bolsas, não oficialmente
organizado, mas correntemente em uso, e que se aparentava com a
nossa Escola Normal Superior, menos o exame de entrada, ou ainda
aquilo que se pratica nas Universidades inglesas, nas quais o estudante
bolseiro recebe gratuitamente não apenas a instrução, mas ainda
cama e mesa, e por vezes vestuário.
O ensino é dado em latim; divide-se em dois ramos, o trivium,
ou as artes liberais: Gramática, Retórica e Lógica, e o quadrivium,
quer dizer, as ciências: Aritmética, Geometria, Música e Astronomia;

o que, com as três Faculdades de Teologia, Direito e Medicina, forma
o ciclo dos conhecimentos. Como método, utiliza-se sobretudo o
comentário: lê-se em texto, as Etymologies [Etimologias], de Isidoro
(6) Cf Haskins, "The HIV of medieval students as illustrated by
their letters», in American historical review, III (1892), n.° 2.

RÉG1NE PERNOUD

de Sevilha, as Sentences [Sentenças'], de Pedro, o Lombardo, um
tratado de Aristóteles ou de Séneca, segundo a matéria ensinada,
e glosava-se o texto, fazendo todas as observações às quais ele pode
dar lugar, do ponto de vista gramatical, jurídico, filosófico, linguístico,
etc. Este ensino é, portanto, sobretudo oral; dá um lugar importante
à discussão; as Questiones disputate, questões na ordem do dia,
tratadas e discutidas pelos candidatos na licenciatura, perante um
auditório de professores e alunos, deram, por vezes, lugar a tratados
completos de filosofia ou de teologia, e algumas glosas célebres,
passadas a escrito, eram elas próprias comentadas e explicadas, na

continuação dos cursos. As teses defendidas pelos candidatos ao
doutoramento não são então simples exposições sobre uma obra
inteiramente redigida, mas teses emitidas e defendidas perante todo
um antiteatro de doutores e de professores, durante as quais qualquer
assistente pode tomar a palavra e apresentar as suas objecções.

Como se vê, este ensino apresenta-se sob uma forma sintética,
sendo cada ramo recolocado num conjunto onde adquire um valor
próprio, correspondendo à sua importância para o pensamento humano.
Por exemplo, há, nos nossos dias, equivalência entre uma
licenciatura em Filosofia e uma licenciatura em Espanhol ou em Inglês,
ainda que a formação suposta por estas diferentes disciplinas
se coloque num plano muito diferente; na Idade Média, pode ser-se
mestre de fisolofia, ou de teologia, ou de direito, ou ainda mestre
em artes, o que implica o estudo do conjunto ou do essencial dos
conhecimentos relativos ao homem, representando o trivium as ciên


cias do espírito e o quadrivium as dos corpos e dos números que os
regem. Toda a série de estudos se aplica, portanto, a dar uma cultura
geral, e só se faz realmente uma especialização ao sair da faculdade.
É isto que explica o carácter enciclopédico dos sábios e dos letrados
da época; um Roger Bacon, um Jean de Salisbury, um Alberto, o
Grande, dominaram realmente os conhecimentos da época e podem
entregar-se sucessivamente aos mais diferentes assuntos sem temer
a dispersão, pois a sua visão de base é uma visão de conjunto.

Ao sair das suas sessões de trabalho na faculdade e no colégio,

o estudante medieval é um desportista capaz de percorrer etapas de
várias léguas e também —os anais da época lastimam-no de mais—-,
de manejar a espada. Por vezes rebentam rixas, nesta população tur
bulenta, nos arredores de Sainte-Geneviève ou de Saint-Gcrmain-des-
Prés, e é por ter sabido servir-se da sua arma demasiado bem que-
François Villon teve de deixar Paris. Os exercícios físicos são-lhetão
familiares como as bibliotecas e, mais ainda do que nos outros
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

corpos de mesteres 7, a sua vida suaviza-se com festas e divertimentos
que alegram o Quartier Latin. Sem sequer falar da festa dos Loucos
e da dos Tolos, que são ocasiões excepcionais, não há recepção de
doutor que não seja seguida de cerimónias paródicas, nas quais os
graves professores da Sorbonne participam; Ambroise de Cambrai,
que foi chanceler da Faculdade de Decreto, tomou o seu papel a
peito e deixou-nos o relato delas nas apreciações críticas pormenorizadas
que empreendeu durante o tempo em que ocupou o seu cargo.
Um ser assim formado estava tão preparado para a acção como
para a reflexão, e é, sem dúvida, por isso que se vê nesta época as
personalidades adaptarem-se às situações mais diversas e triunfar:
prelados combatentes, como Guillaume des Barres ou Guérin de
Senlis na batalha de Bouvines, juristas capazes de organizar a defesa
de um castelo, como Jean d'Ibelin, senhor de Beyrouth, mercadores
exploradores, ascetas construtores, etc.

A Universidade foi, aliás, o grande orgulho da Idade Média;
os papas falam com benevolência desse «rio de ciência que, através
das suas múltiplas derivações, rega e fecunda o terreno da Igreja
universal»; nota-se, não sem satisfação, que em Paris a multidão
dos estudantes é tal que o seu número chega a ultrapassar o da população
8. É-se cheio de indulgência por eles, apesar das suas «gracinhas
» e pilhérias que frequentemente incomodam os burgueses, gozam
da simpatia geral. Algumas cenas da sua vida foram descritas por
um dos escultores do portal Saint-Étienne, em Notre-Dame de Paris:
vêmo-los a ler e a estudar; uma mulher vem perturbá-los, arranca-os
dos seus livros e, para a punir, é colocada no pelourinho por ordem
da autoridade- Os reis dão o exemplo deste modo de tratar os «escolares
» como meninos mimados: Filipe Augusto, depois da batalha
de Bouvines, enviou um mensageiro anunciar a sua vitória em primeiro
lugar aos estudantes parisienses.

Tudo o que respeita ao saber é assim honrado na Idade Média.
«Com desonra morra merecidamente quem não gosta de livro», dizia
um provérbio 9; e basta inclinarmo-nos sobre os textos para encontrarmos
sinal das medidas pelas quais qualquer apetite de ciência era
encorajado e alimentado; citamos, entre outras, a criação, em 1215,

(7) Notamos que a Idade Média não conhece fosso entre mesteres
manuais e profissões liberais; os termos são, a este propósito, significativos:
qualifica-se de mestre tanto o fabricante de tecidos que terminou
a sua aprendizagem como o estudante de Teologia que obteve a licença
de ensino. ,
(8) A afirmação não pode ser tomada à letra, mas não deixa de ter
Interesse saber que a população parisiense nesta época compreendia um
pouco mais de quarenta mil habitantes.
(9) Renart, prov. franç., II, 99.

REGINE PERNO

de uma cátedra de teologia em Paris, especialmente para permitir aos
padres da diocese aperfeiçoarem-se e completarem os seus estudos,

o que testemunha a preocupação de manter um grau elevado de
instrução, mesmo no baixo clero. O «homem avisado», esse tipo de
homem completo que foi o ideal do século xin, devia ser necessariamente
um letrado:
Pour rimer, pour versifier,
Pour une lettre bien dicter,
Si métier fut, pour bien écrire
Et en parchemin et en cire,
Pour une chanson controuver10.

Podemos perguntar-nos se, nestas condições, o povo era tão
ignorante, na Idade Média, como, em geral, se supõe; tinha ao seu
alcance, incontestavelmente, os meios de se instruir, e a pobreza não
era um obstáculo, uma vez que o decurso dos estudos podia ser intei"
ramente gratuito, da escola da aldeia, ou antes da paróquia, até
à Universidade. E ele aproveitava-se disso, uma vez que abundam
os exemplos de pessoas humildes tornadas grandes clérigos.

Significa isto que a instrução estava tão divulgada como nos nos


sos dias? Parece que sobre este ponto houve um mal-entendido: assi


milou-se, mais ou menos, a cultura e a letra. Um iletrado é para nós,

fatalmente, um ignorante. Ora, o número de iletrados era sem dúvida

maior na Idade Média do que na nossa época ". Mas é justo este

ponto de vista? Pode fazer-se do conhecimento do alfabeto o critério

da cultura? Do facto de a educação se ter tornado sobretudo visual

pode concluir-se que o homem apenas se educa pela visão?

Num capítulo dos Estatutos municipais da cidade de Marselha,

datando do século XIII, encontram-se enumeradas as qualidades exi


gidas a um bom advogado e acrescenta-se litteratus vel non litteratus

{quer seja letrado, quer não]. Isto parece muito significativo: pode,

portanto, ser-se um bom advogado e não saber ler nem escrever,

conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e

ignorar o alfabeto. Noção que nos é difícil de admitir mas que,

contudo, é de importância capital para compreender a Idade Média:

(10) Citado in Histoire littéraire, t. xx. Segue-se a tradução.
Para rimar, para versificar, / Para ditar bem uma carta, / Se for
caso disso, para escrever bem / Em pergaminho ou em cera, / Para uma
canção inventar.

(11) Ainda que menos do que se disse, uma vez que a maior parto
das testemunhas que intervêm nos actos notariais sabem assinar, e quse tem, entre outros, o exemplo de Joana d'Arc, pequena camponesa
que contudo sabia escrever.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

era-se mais instruído então pelo ouvido do que pela leitura. Por
muito honrados que sejam, os livros, os escritos têm apenas um lugar
secundário; o papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao
verbo. Isto, em todas as circunstâncias da vida: nos nossos dias, oficiais
e funcionários redigem relatórios; na Idade Média, aconselhavam-
se e deliberavam; uma tese não é uma obra impressa, é uma
discussão; a conclusão de um acto não é uma assinatura aposta ao
fim de um escrito, é a tradição manual ou o empenhamento verbal;
governar é informar-se, inquirir, depois fazer «gritar» as decisões
tomadas.

Um elemento essencial da vida medieval foi a pregação. Pregar,
nesta época, não era monologar em termos acolhidos perante um
auditório silencioso e convencido. Pregava-se um pouco por todo o
lado, não apenas nas igrejas, mas também nos mercados, nos campos
de feira, no cruzamento das entradas, e de modo muito vivo, cheio
de calor e de ímpeto. O pregador dirigia-se ao auditório, respondia
às suas perguntas, admitia mesmo as suas contradições, os sem rumores,
as sua:; invectivas. Um sermão agia sobre a multidão, podia
desencadear imediatamente uma cruzada, propagar uma heresia, preparar
revoltas. O papel didáctico dos clérigos era então imenso: eram
eles quem ensinava aos fiéis a sua história e as suas lendas, a sua
ciência e a sua fé, quem comunicava os grandes acontecimentos,
transmitia de uma ponta à outra da Europa a notícia da tomada
de Jerusalém, ou a da perda de Saint-Jean d'Acre, quem aconselhava
uns e guiava outros, me mo nos seus negócios profanos. Nos nossos
dias, aqueles que não têm memória visual, no entanto mais rara,
e de um exercício mais automático, menos racional que a memória
auditiva, são prejudicados por desvantagem nos seus e tudos e na
vida. Na Idade Média, não era nada; a pessoa instruí-se escutando,
c a palavra era de ouro.

Coisa curiosa, a nossa época vê voltar esta importância do Verbo
e reviver esse elemento auditivo que se perdera. Pode pensar-se que
u rádio desempenhará, para as gerações vindouras, o papel que
outrora foi desempenhado pela pregação; é de desejar, em todo o
caso, que lhe seja equivalente naquilo que respeita à educação do
povo.

Porque, se o termo «cultura latente» alguma vez teve um sentido,
foi na Idade Média. Toda a gente então tem um conhecimento
pelo menos corrente do latim falado e articula o cantochão que supõe,
senão a ciência, pelo menos o uso da acentuação. Toda a gente possui
uma cultura mitológica e lendária; ora, as fábulas e os contos dizem
mais sobre a história da humanidade e sobre a sua natureza do que
uma boa parte tias ciências inscritas nos nossos dias nos programas


REFINE PENOU

oficiais. Nos romances de mester publicados por Thomas Deloney

vemos os tecelões citar nas suas canções Ulisses e Penólope, Ariana

e Teseu. Se se pode chamar aos vitrais «a Bíblia dos iletrados», não é

porque os mais ignorantes aí decifravam sem esforço histórias que

lhes eram familiares, realizando com toda a simplicidade esse trabalho

de interpretação que, na época actual, tanta canseira dá aos arqueó


logos!

Fora disto, havia os conhecimentos técnicos, que se assimilavam
no decurso dos anos de aprendizagem; nem arte nem mester eram
improvisados: era preciso, para os exercer com rendimento, que eles
se tivesssem tornado como que uma segunda natureza; é, sem dúvida,
por isso que tantos artistas locais, cujos nomes nunca nos serão conhecidos,
puderam adquirir a mestria que obras como o Cristo Devoto,
de Perpignan, ou a Crucificação, de Vénasque, revelam. Tem-se o
direito de considerar ignorante um homem que conhece a fundo o seu
trabalho, por humilde que seja? E é preciso considerar que a estes
conhecimentos de mester vem acrescentar-se todo um lote de tradições:

o Compost des bergiers, que uma feliz curiosidade fez redescobrir,
não há muito tempo, oferece-nos uma amostra das pequenas Sommes
do saber tradicional: astronomia, medicina, botânica, meteorologia —
que podia adquirir-se no seio dos mesteres, variando com cada um
deles, e que constituía a base de uma cultura sem dúvida mais extensa
e certamente melhor adaptada às necessidades locais do que se poderia
acreditar.








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