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sexta-feira, 20 de maio de 2016

Luz sobre a Idade Média VIII



PÍTULO IX

AS LETRAS

Apesar do grande número de trabalhos modernos consagrados à
literatura medieval, ainda não conseguimos fazer dela uma ideia justa,
apreciá-la como ela o mereceria. Ela permanece uma curiosidade de
erudito, ou, o que é mais perigoso, serve de pretexto a evocações
bastante superficiais. Um passo importante foi, contudo, dado pelo
facto de se ter conseguido, pelo menos, convencer o público da existência
de uma literatura medieval. A grande dificuldade que se opõe
a mais amplos progressos é a questão linguística; só pode lamentar-se
que, entre a quantidade de conhecimentos discordantes com os quais
se sobrecarrega a adolescência, nenhum lugar, ou um lugar ridiculamente
insignificante, seja dado ao francês antigo, que constitui, contudo,
inegavelmente, uma parte do nosso património nacional — considerada
cada vez menos desprezível, à medida que melhor se conhece \
Os juízos à Gustave Lanson ou à Thierry Maulnier, que apenas viram,

em toda a «literatura versificada da Idade Média», «salsada, tagarelice
e preciosismo», destinados a soçobrar num «esquecimento indulgente»,
não resistem a um exame, ainda que superficial, da poesia medieval.

Há apenas uma época durante a qual a França possuiu uma
literatura nacional, inteiramente brotada do nosso solo; e essa época
é a Idade Média. Passado o século xv, uma predilecção estranha
pela imitação vai determinar leis rigorosas, restringir os géneros,
jugular a inspiração pessoal, a favor de um protótipo imutável, que
será a Antiguidade. Na verdade, não se trata aqui de denegrir a
Antiguidade e as suas incontestáveis obras-primas, nem, sobretudo,
de se equivocar a propósito da mestria inteiramente pessoal com a

(1) E preciso dizer que este desamor é mais relativo à Idade Média
em geral do que à sua literatura em particular: estuda-se durante vários
meses a questão do Oriente no século xix, ou as mudanças de ministérios,
de MacMahon a Jule.s Grévy, mas quantos balharéis têm uma noção,
nítida que vaga. dos principais acontecimentos das Cruzadas, ou do modo
como se formou a unidade francesa, nesses séculos que são o fundamento
e o sumário da nossa história?

REFINE PENOU

qual um Racine, um Moliére, souberam dominar a lei da imitação
que o seu tempo lhes impunha; e é preciso contar também com os
dissidentes que, sem terem as honras dos manuais de literatura, não
constituem menos por isso uma parte importante das letras francesas.
Temos que, até ao fim do século XIX, no conjunto, clássicos e românticos
se submeteram voluntariamente a uma disciplina inspirada quer
pelos Gregos e Latinos, quer pelo estrangeiro. Para encontrar um
verdadeiro desenvolvimento do espírito francês, uma literatura pessoal,
pura, despojada de qualquer empréstimo, fora do nosso século XX,
é preciso recorrer à Idade Média. Obstinar-se em nada ver para além
da Renascença é mutilar-se da mais autêntica manifestação do génio
da nossa raça; é, de resto, ignorar uma época durante a qual precisamente
a civilização e as letras francesas foram imitadas por toda a
Europa; é, sobretudo, privar-se de um tesouro incomparável de poesia,
de inspiração, de grandeza — o mais rico, o mais colorido, o mais
comovente, de todos.

Uma boa parte da produção literária da Idade Média está ainda
em estado de manuscrito, enterrada nas nossas bibliotecas, enquanto
se reeditam sem cessar as mesmas obras. É preciso ver nisto uma
falta de curiosidade? O erro caberia mais aos nossos métodos de
história literária que, aplicados à literatura da Idade Média, nos obstruíram
consideravelmente. E. forçaram-se a procurar as fontes das
obras medievais, fontes do Roman de Renart, fontes dos fabulários,
etc, como se se tratasse de tragédias clássicas, inspiradas pelo teatro
de Sófocles ou de Séneca. Um tempo precioso foi perdido deste modo.
Útil no que respeita à nossa literatura desde o século XVI, a investigação
das fontes só constituía um entrave para o estudo da Idade
Média, e provou-se, na maior parte dos caos, ociosa, senão pueril.
Bédier prestou um serviço imenso à literatura, mostrando a importância
destes temas humanos que já não pertenciam mais à índia
ou à China mais do que à Europa ou à África: o tema do trapaceiro
enganado, a fábula da raposa e das uvas, e tantas outras, sobre as
quais se tinha discorrido a perder de vista, até estabelecer filiações
complicadas que caem por si próprias quando nos apercebemos de
que o homem, em todas as latitudes, teve, perante os mesmos fenómenos,
reflexões semelhantes, e que, se o nosso folclore medieval tem
pontos comuns com o de tal ou tal povo antigo, é porque bebeu nas
fontes eternas da humanidade. Notou-se, nos cantos dos pastores
checos, ritmos semelhantes aos das nossas pastorais de outrora: não
é porque estas derivem daquelas, mas porque uma mesma vida e
mesmos hábitos inspiraram cadências idênticas. Do mesmo modo, os
marinheiros, em todas as latitudes e em todos os povo , usaram, para
transmitir ordens e harmonizar os seus esforços, tropos, inflexões

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

ritmadas e poéticas ditadas pelo seu trabalho, combinadas com a
oscilação do mar e do navio- Qualquer conhecimento do homem teria
sido preferível, para penetrar na literatura medieval, à investigação
das fontes segundo as veneráveis tradições da Sorbonne.

Isto não significa que a Idade Média tenha ignorado a Antiguidade;
Horácio, Séneca, Aristóteles, Cícero e muitos outros são
estudados e citados frequentemente, e os principais heróis das literaturas
antigas, Alexandre, Heitor, Píramo e Tisbeu, Fedro e Hipólito,
inspiraram, por seu turno, todos os autores medievais; as Metamorfoses
e as Heróides, de Ovídio, foram traduzidas por várias vezes
seguidas; sobretudo, a Idade Média amou profundamente Virgílio,
manifestando nisso um gosto indiscutível, uma vez que Virgílio foi,
sem dúvida, o único poeta latino digno deste nome. Mas, se se vê
então na Antiguidade um reservatório de imagens, de histórias e de
sentenças morais, não se vai ao ponto de a enaltecer como um modelo,
como o critério de toda a obra de arte; admite-se que é possível
fazer tão bem e melhor do que ela; admiram-na, mas preservar-se-iam
de a imitar.

Em contrapartida, inteiramente brotada do nosso solo, a literatura
medieval reproduz-lhe os menores contornos, os mínimos cambiantes.
Todas as classes sociais, todos os acontecimentos históricos, todos os
traços da alma francesa nela revivem, num fresco deslumbrante. É que
a poesia foi a grande ocupação da Idade Média e uma das suas
paixões mais vivas. Reinava por toda a parte: na igreja, no castelo,
nas festas e nas praças públicas; não havia festim sem ela, nem
festejo em que ela não desempenhasse o seu papel, nem sociedade,
universidade, associação ou confraria onde ela não tivesse acesso;
aliava-se às mais graves funções: alguns poetas governaram condados,
como Guillaume d'Aquitaine ou Thibaut de Champagne; outros governaram
reinos, como o rei René d'Anjou ou Ricardo Coração-de-Leão,
outros, como Beaumanoir, foram juristas e diplomatas; podemos
mesmo ver um Philippe de Novare, sitiado na Torre do Hospital com
uma trintena de companheiros, escrever à pressa, para pedir socorro,
não um apelo de aflição, mas um poema, e a lenda do trovador Blondel,
reencontrando o seu mestre encarcerado com o auxílio de um
canto que tinham composto juntos, apenas exprime uma verdade de
aplicação corrente na Idade Média. Dizer versos, ou escutá-los, aparecia
como uma necessidade inerente ao homem- Pouco se veria,
actualmente, um poeta instalar-se em cavaletes, perante uma barraca
de feira, para aí declamar as suas obras; espectáculo que era então
comum. Separava-se uni camponês do seu trabalho, um artesão da
sua loja, um senhor dos seus falcões, para ir ouvir um cantador (irou



110 REG1NE PENOU

vère)2 ou um jogral. Nunca, talvez, excepto nos mais belos dias da
Grécia antiga, se manifestou um tal apetite de ritmo, de cadência de
bela linguagem.

A poesia actualmente é mais ou menos o apanágio de uma elite.
A Idade Média não conheceu elite nem dentro nem fora do domínio
intelectual, porque cada um podia, na sua esfera, tornar-se um ser
de elite. As alegrias do espírito não eram reservadas aos privilegiados
ou aos letrados e podia-se, sem saber nem grego nem latim, e mesmo
sem saber A ou B, ter acesso às mais altas delícias da poesia. Entre
os cerca de quinhentos cantadores e trovadores cujos nomes chegaram
até nós encontramos tanto grandes senhores como o castelão de Coucy,
os senhores dos Baux ou os príncipes já citados como vilãos e clérigos,
como Rutebeuf, Peire Vidal ou Bernard de Ventadour. Ao contrário
do que se passou, por exemplo, no século XVII, em que uma obra
literária apenas era destinada à Corte e aos salões, houve entre as
classes sociais trocas fecundas; a seiva poética circulava livremente
e enriquecia-se com tudo aquilo que o povo lhe podia trazer de vigor
e a alta sociedade de requinte. Ainda no século xv, um mesmo tema
poético era tratado simultaneamente por Charles d'Orléans, Alain
Chartier, Jean Régnier, Franco Villon e outros ainda, todos diferentes
em educação, posição social e profissão, sem que as suas obras fossem
muito desiguais, de tal modo a poesia era um domínio comum aos
príncipes e aos vagabundos. Conhece-se assim La Forêt de Longue
Attente ou ainda o refrão das baladas do famoso concurso de Blois:

Je meurs de soif emprès de la fontaine3.

Certos géneros foram de preferência cultivados pela nobreza: é o
caso dos romances de cavalaria; mas os vilãos tinham, eles próprios,

o Roman de Renart, cujos principais tipos ainda vivem e nos são
familiares, depois de ter percorrido a Europa e seduzido até a pluma
de um Goethe que se tornou o seu adaptador. Aos lais e às fábulas,
que faziam as delícias da corte de Champagne ou de Inglaterra, correspondiam
os fabulários, cuja veia divertida e truculenta inspirou
um La Fontaine e um Molière.
Alguns domínios permanecem comuns a toda a sociedade medieval:
a epopeia, por exemplo, e o teatro. As nos:as canções de gesta
suscitaram tanta admiração nas hospedarias onde peregrinos e viajantes
encontravam um poiso, a caminho de Roma ou de Santiago,
como nas residências senhoriais. Quanto ao teatro, simultaneamente

(2) Trovador do Norte da França, nomeadamente da Picardia.
(N. do R.)
(3) Morro de sede junto à fonte.
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA 11

religioso e popular, mobilizava um povo inteiro e entusiasmava os
clérigos tanto como os nobres e os campónios. Se se pode falar, na
Idade Média, de uma literatura do povo, de uma literatura clerical e
de uma literatura da nobreza, isso deve compreender-se antes como
uma nota dominante, pois, tanto nos seus criadores como no seu
público, as obras em geral participam tanto de umas como de outras
«classes», com apenas um gosto mais marcado aqui ou ali.

E este domínio literário é tão móvel quanto vasto. Deparamos
com extremas dificuldades quando queremos fazer uma edição crítica
de uma canção de gesta ou de um poema medieval. Também aí,
parece que se fez mal em trazer para os textos da Idade Média um
método que só convinha às obras antigas ou modernas. Na realidade,
há sempre, não uma, mas múltiplas formas de uma mesma obra-
Bédier, reunindo os diversos episódios do Roman de Tristan et Yseult

[Romance de Tristão e Isolda], dispersos em diversos poemas, realizou
um trabalho ao mesmo tempo dos mais autênticos e dos mais
acessíveis — infinitamente mais próxima da Idade Média do que teria
sido a edição impecável de cada um desses poemas.

Para nós, uma obra literária é cora pessoal e imutável, fixada
na forma que o seu autor lhe deu; daí a nossa obsessão do plagiato.
Na Idade Média, o anonimato é corrente. Sobretudo, uma ideia, unia
vez emitida, pertence imediatamente ao domínio público; passa de
mão em mão, ornamenta-se com mil fantasias, sofre todas as adaptações
imagináveis, e só cai no esquecimento quando dela se esgotaram
os múltiplos aspectos. O poema leva uma vida independente da do
seu criador; é coisa móvel, e renascendo incessantemente; qualquer
descoberta é retomada, modificada, amplificada, rejuvenescida, com

o movimento e a animação que caracterizam a vida. O erro dos críticos
alemães, vendo na Chanson de Roland [Canção de RoIando\ uma
obra colectiva e impessoal, explica-se se se considera o carácter fluido,
poderia dizer-se, das nossas grandes gestas e em geral das produções
literárias da Idade Média. Na sua origem houve certamente uma
actividade precisa, mas elas não deixaram de evoluir, a contento dos
poetas que as enriqueciam com uma nova seiva, ou simplesmente dos
jograis que as recitavam a seu modo e nelas inseriam episódios da
sua lavra. É assim que os romances bretões se transformaram inesgotavelmente,
e se reencontravam no século XV, muito longe da sua
forma primitiva, no ciclo dos Amadis.
Por vezes, ainda, a obra literária representa o termo de uma
evolução. É o caso desses espantosos «romances de mester», aos quais
já foi feita alusão, e cujo sabor Abel Chevalley nos revelou. O seu
assunto são as canções de oficina, as «boas histórias» que se transmitiam
de companheiro a aprendiz, os relatos de aventuras sucedidas


REGI NE PERNOUD

a tal mestre, à sua mulher, ao seu criado, as lendas dos santos protectores
da corporação; tudo isto acabava por formar uma mina descoberta
para um escritor, ainda que pouco dotado; Thomas Deloney
utilizou-os com felicidade para a Inglaterra, no início do século XVI;
os mesteres de França não tiveram a mesma sorte, mas não é impossível
que se encontrem desses «romances» em estado de manuscrito'
Num outro género, Bédier mostrou luminosamente o nascimento das
nossas epopeias ao longo das entradas de peregrinações e o papel
desempenhado pelos clérigos que instruíam e pelos jograis que distraíam,
na formação das no:sas grandes gestas nacionais. É ainda
uma das formas da fecundidade da vida medieval, esta criação perpétua,
que participa da vida do povo, ou, melhor, da vida de todo
um país, tanto das suas massas populares como das suas classes «privilegiadas
». Os temas poéticos, os heróis do romance, circulam e
multiplicam-se à imagem da humanidade. Rolando, Carlos Magno,
Guilherme do Nariz Curvo, fizeram parte do património europeu, do
mesmo modo que o estilo gótico. Apenas as diferenciações locais, o
engenho de cada província, de cada dialecto, da cada país, deram
um aspecto particular e um sabor novo a cada uma das suas reencarnações.
Nesse, como noutros aspectos, a influência francesa, ou mais
exactamente franco-inglesa, dominou o mundo conhecido. Os nossos
cantadores tiveram um sucesso internacional, Wolfram d'Eschenbach,
Hartmann d'Aue, Walter de la Vogelweide e os outros minnesinger
imitaram-nos, e os romances bretões foram traduzidos em Itália, na
Grécia e até na Noruega 6.

Móvel, animada como o é, esta literatura medieval tem uma outra
característica que é a de toda a Idade Média: o amor da vida-Dotados
de uma faculdade de assimilação extraorddinária, os autores desta
época trataram os seus heróis como seres vivos, actuais, cuja existência
não tivesse sido deslocada na sociedade em que eles próprios
se encontravam. Eles não tiveram necessidade de lhes criar uma
atmosfera artificial para os justificar. Tais como os sentiam, assim
os exprimiram. Por outras palavras, a Idade Média literária dispensa
a cor literária e a documentação histórica. Pensou-se assinalar exemplos
desta famosa «ingenuidade» medieval, quando se via o anão
Obéron dizer-se filho de Júlio César, ou Alexandre portar-se como
um cavaleiro cristão. Mas, longe de ser uma deficiência, esta facilidade

(4) Cf. Le Noble Métier e Jack de Newbury e Thomas de Reading,
romances dos sapateiros e dos tecelães da Cite de Londres, traduzido»
por Abel Chevalley, Gallimard, 1927.
(5) A influência da poesia medieval francesa encontra-se também
na nossa poesia trovadoresca, nomeadamente a Provençal, que entre n6;i
originou as cantigas de amor de raiz aristocrata. (N. do R)
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

13

em transpor os heróis de romance do seu passado morto para uma
actualidade viva não será testemunho de uma prodigiosa capacidade
de evocação? A Idade Média não tinha nenhuma dificuldade em
imaginar Aristóteles, Eneias ou Heitor na sociedade medieval; a sua
vitalidade levava a melhor sobre as noções de tempo e de espaço.
E é por isso que, sem nisso porem a mínima «ingenuidade», os escultores
representaram os tímpanos das catedrais de Castor e Pólux como
dois cavaleiros do seu tempo. Este desprezo pela cor local a favor
da verdade intrínseca não poderia ser, de resto, melhor compreendido
do que na nossa época, em que o aparelho histórico-documental é
cada vez mais posto de lado em proveito da intensidade de evocação.
É infinitamente mais agradável ver a jovem Violaine evoluir numa
«Idade Média de convenção», sem relação com a realidade histórica

— mas muito próxima, pelo espírito, da Idade Média real —, do que
assistir a uma reconstituição, por mais habilido a que seja, do Vray
mistère de la Passion; e tornou-se um lugar comum dizer que é preferível
representar Édipo de sweater e calças de flanela a suportar
uma reedição de Burgraves ou de Salammbó.
A literatura medieval e::tá fortemente ligada à sua época, inseparável
das realidades que constituíram a vida quotidiana do tempo.
Todas as preocupações contemporâneas: expedições militares, prestígio
de um rei, erros de um vassalo, lutas religiosas, foram rimadas,
ritmadas, amplificadas, reatadas, enfim, ao grande domhro poético
da humanidade por estes contadores incansáveis e seu público sequio o
de poesia. As explorações de Carlos Magno inspiraram as no sas
grandes epopeias, as Cruzadas foram cantadas pelos cantadores, Peire
Cardinal exalou nos seus versos a amargura do Midi' albigense e
Guilherme, o Bretão, cantou a glória de Filipe Augusto; a instituição
da cavalaria originou a inumerável literatura romanesca e galante e as
infelicidades da guerra deixaram a sua marra nas obras de um Jean
Régnier ou de um Charles d'Orléans. Relações dos senhores e dos
seus vassalos, respeito pelo laço feudal, trabalhos dos servos e dos
camponeses, leituras dos clérigos, orações dos monges, encontra-se
tudo isto na poesia medieval, e aqueles que se contentassem com

conhecer a literatura da época saberiam dela bastante para poderem
dispensar-se de lhe estudar a história. Ela traz a marca do país que
a viu nascer e reflecte fielmente as suas fortunas e as suas angústias.
Se, durante os séculos que :e seguiram, ela foi, por vezes, apenas

o exercício de um bom aluno de Horácio ou de Teócrito, ou mesmo
uma brincadeira de erudilo, se esqueceu as suas ligações populares
c se tornou uma especialidade de bom-tom, durante toda a Idade
Média ela foi fiel a si própria e permaneceu uma criação nacional
tanto quanto humana, popular, tanto quanto pessoal, colectiva, tanto
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RÉG1NE PERNOUD

quanto individual, bebendo a sua temática do solo de França, das
aventuras dos seus barões, das astúcias das suas mulheres, nos seus
campos fecundos e nas suas cidades ruidosas, entre as quais já se
destaca Paris, o Paris de Rutebeuf, de Eustache Deschamps e de
François Villon.

Mas não é somente porque canta o nosso país e a sua ventura
que a poesia medieval representa o nosso mais precioso património
nacional. Ela, que inspirou a Europa e percorreu o mundo conhecido,
é francesa até nas suas mais escondidas propensões. Não a podemos
renegar sem renegar a nossa natureza e a nossa personalidade. Está
impregnada do nosso espírito, é a sua mais autêntica criação. Esta veia,
este jorro perpétuo de ironia, de palavras sem rodeios, de sarcasmos
que nada sabem respeitar, nem sequer as mais sinceras crenças, este riso
sonoro, enfim, riso dos fabulários, das farsas, dos sermões divertidos,
da festa dos loucos e outras palhaçadas6, este riso, que apenas encontrará
outros ecos na literatura, no teatro de Molière, não estará nele o sinal

distintivo do povo de França, com o seu sentido da resposta pronta,

o seu sentido do ridículo, o seu gosto pelas boas histórias e pelas
brincadeiras um pouco livres? É provável que se pude se fazer representar
por pessoas de hoje e perante um auditório popular a maioria
dos nossos fabulários e algumas cenas do leu de Saint-Nicolas ou do
Maître Pathelin com muito sucesso; lê-se sempre com semelhante
prazer os Quinze joies de mariage, e as brincadeiras medievais sobre
a tagarelice das mulheres e os maridos enganados são ainda daquelas
que se ouvem quotidianamente.
A grande censura que se fez a este cómico, cuja alegria e exuberância
não pode ser negada, é a de ser grosseiro. Os autores de manuais
literários têm o costume de dissimular o rosto perante estes
«personagens prosaicos», e tas «farsas indecentes» e este vocabulário
em que o bom-tom é algo maltratado. As suas constatações são justas:
uma grande parte da literatura medieval, e da melhor procedência,
está semeada de brincadeiras bem grosseiras; também isto é muito
francês — muito gaulês, para empregar o termo exacto. Na Idade
Média chamava-se gato a um gato, e as brincadeiras, mesmo triviais,
desde que fossem espirituosas divertiam enormemente. Podemos melindrar-
nos, ou reeditar a atitude de um Francisque Sarcey abandonando

o seu lugar à primeira réplica do Ubu Roi, subsiste que, na pena dos
contistas da Idade Média, como nas de Rabelais ou de Alfred Jarry,
como na boca do homem do povo, as grosserias são quase sempre tão
bem recebidas, tão expressivas e tão saborosas, que provocam irresistivelmente
o riso. É preciso, aliás, observar que elas não se acompanham
(6) Entre nós esta temática está presente nas «Cantigas de Escarni»
e Maldizer». (N. do R.)
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

de vulgaridade, que continuam a ser espontâneas e nunca são efeito
de uma atitude ou de uma ideia preconcebida, como acontece nos
nossos dias em alguns intelectuais- Quanto aos contos «imorais» e aos
seres «prosaicos» em que abunda a literatura medieval, fundam-se,
em geral, numa observação muito justa da existência e não contêm
mais imoralidade do que, por exemplo, as fábulas de La Fontaine.
A sua acrimónia, longe de ser chocante, só pode alegrar um espírito
bem formado, tanto mais que ela se acompanha de certo requinte,
desse sentido da resposta pronta que é bem própria da nossa raça.

*

Por um curioso efeito do acaso —mas é efectivamente um acaso?
— as duas primeiras obras importantes da nossa literatura ilustram
perfeitamente o seu duplo carácter: há a Chanson de Roland [Canção
de Rolando] e há a Pèlorinage de Charles [Peregrinação de Carlos].
No primeiro poema reinam os mais puros sentimentos da cavalaria
francesa: fidelidade ao imperador, amor de França, a doce, amizade
de dois heróis, grandeza da morte, valentia e sabedoria; o segundo
é uma gigantesca chalaça, em que Carlos Magno é apenas um jovial
companheiro — esperando tornar-se um velho gaiteiro como no Huon
de Bordeaux — e entrega-se com os seus pares às mais assombrosas
fantasias: gags monstruosos, gabarolices de fanfarrões, conversas
extravagantes mantidas depois de beber: Rolando faz a aposta de
tocar a sua trompa com tanta força que o seu sopro arrombará todas
as portas da cidade, Olivier oferece-se para seduzir num tempo recorde
a filha do rei Hugon. A veia desenfreada dos nossos antepasssados
deu-"e livre curso nesta primeira amostra da epopeia francesa, que é
já uma paródia da epopeia e prova que se estava longe de se tomar
a sério, de se contentar com belas palavras e belos sentimentos. O sentido
de humor surgia sempre a tempo de corrigir a eloquência e evitar
a ênfase, como neta resposta simultaneamente orgulhosa e cómica
do Jeu de Saint-Nicolas:

Seigneur, si je suis jeune, ne n'ayez en dépit
On a veü souvent grand coeur en corps petit
Je ferrai cel forceur, je l'ai pièça élit:
Sachez je 1'occirrai, s'il avant ne m'occit (7).


(7) Senhor, se. sou jovem, não me desprezeis / Já se tem visto um
graniu coração em pequeno corpo / Usarei de tal violência, podeis crer: /
Sabei que o matarei se ele não me matar primeiro.

RÉG1NE PENOU

Deleitavam-se com estes contrastes de grandeza e de fantasia;
uma obra intitulada: Dialogue de Salomom et de Marcoul opõe assim
constantemente provérbios, acentuando uns alta sabedoria, outros
bom sentido popular:

Qui sage homme será
Ja trop ne parlera
(ce dit Salomon)
Qui ja mot ne dirá
Gr and noise [bruit] ne fera
(Marcoul lui répond)8.

Le Pèlerinage de Charles, antepassado directo de Ubu Roi,
nasceu à volta da abadia e da feira de Saint-Denis. Estes relatos
profanos ou edificantes que os clérigos, por intermédio dos jograis,
transmitiam ao povo, foi preciso que, primeiro, este povo, na balbúrdia
dos mercados, dos risos e de bebedeira ingénua, os transformasse
num conto engraçado, no instante em que, sobre estas mesmas lendas,
se elaborava a mais nobre das nossas epopeias.

Porque, país do riso e da inspiração crepitante, a França é tam


bém a pátria de origem da cavalaria; e esta palavra é preciso com


preendê-la no seu sentido medieval: simultaneamente culto da honra

e respeito pela mulher.

O Francês, tal como no-lo mostram as nossas obras literárias, da

Chanson de Roland [Canção de Rolando] ao Roman de la Rose

[Romance da Rosa], tem o horror inato de qualquer deslealdade:

romper o vínculo feudal e trair os compromissos que o unam ao seu

senhor são para ele as piores espécies de pecados. «Cada qual deve

portar-se lealmente», é assim que Eustache Deschamps resume todas

as regras de «probidade»- Lancelote, amante da rainha Genoveva,

e Tristão, de Isolda, a Loura, não cessam de trazer no coração o

remorso de trair o seu rei; é todo o drama do seu amor e da sua vida.

Um sentido inabalável da fidelidade à palavra dada manifesta-se ao

longo de toda a nossa poesia, quer seja o vínculo senhorial, como nos

romances de cavalaria, ou, como nas canções dos trovadores, a fide


lidade jurada à sua dama: Yvain incorre nas mais terríveis provações

por ter faltado à sua promessa de voltar no prazo marcado.

O verdadeiro amante deve, aliás, estar pronto a tudo afrontar por

amor: proezas físicas, tormentos morais, angústias das separações,

(8) — Quem for sábio / falará pouco / — Quem palavra não disser /
não provocará questões.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

nada lhe deve ser difícil quando se trate de conquistar aquela que
ama

Pour travail ni pour peine

Ni pour douleur que faie

Ni pour ire grevainea

Ni pour mal que je traie7

Ne quiers que me retraie8

De ma dame un seul jour \

Nunca se dirige a ela senão com um respeito infinito:

Dame, de toutes la nonpair

Belle et bonne, à droit louée10

ou ainda:

Belle plaisant, que je n'ose nommer. "

A mulher aparece como uma criatura semidivinizada: «formoso
corpo», claro rosto, «resplandecendo tanto como ouro ao sol», modos
cheios de graciosidade, ela representa para o cavaleiro o ideal de toda
a perfeição:

Dame, dont n'os (e) dire le nom

En qui tous biens sont amasses

De courtoisie avez renom

Et de valeur toutes passe [surpassé]

Oeuvre de Dieu, digne, louée

Autant que nulle créature

De tous biens et vertus douée

Tant d'esprit que de nature 12.

(9) Nem por trabalho nem por pena / Nem por dor que tenha / Nem
por ira dolorosa / Nem por mal que sofra / Jamais abandonarei /A minha
dama um só dia.
(10) Senhora,
(11) Belo prazer,
(12) Senhora,
de
de
todas
a quem
quem
a únicanão
não
/ Bela
ouso
ouso
dar
dizer
en
boa, justamenteome.
o nome, / Na
lo
qualuvada.
todas as

virtudes .se confuiundem /De. cortesia tendes fama / E de valor admirada.
Obra de Deus. digna, louvada / Mais do que qualquer pessoa / De
todos os bens e virtudes dotada / Quer de espírito como de carácter.


REGINE PENOU

É fácil, segundo a nossa literatura, conhecer o tipo de beleza
feminina da Idade Média:

Elle a un chef blondet
Yeux verts, bouche sadetíe,
Un corps pour embrasser,
Une gorge blanchette [...]


Je ne vis oncques fleur en branche
Par ma foi, qui fút aussi blanche
Comme est votre sade gorgette;
Les bras longuets, les doigts tretis [deliés] [...]
Les pieds peíits, orteils menus
Doivent être pour beaux tenus [...]


Vos yeux riants, à poiní fendus
Qui fremissem comme Vestelle
Par nuit emmi la fontenelle [...] 13.


Os ardis encantadores que o contista nos pinta com traços
delicados —Chrestien de Troyes foi nisso excelente— acabam de
fazer dela um ser adorável, todo de delicadeza, de distinção, de elegância
de espírito: ardis de pastoras para afastar o perseguidor de
encontro, ardis de damas simulando cólera ou orgulho para melhor
seduzir o cavaleiro que as corteja.

E, para realçar a delicadeza de semelhantes quadros, soube-se,
na Idade Média, fazer ressair, melhor do que em qualquer outra época,

o duplo aspecto do eterno feminino: ao lado da Virgem, da mulher
respeitada, honrada, aquela pela qual se morre de amor, e de quem
só se aproxima tremendo, há Eva, a tentadora, Eva por quem o mundo
foi perdido. Contistas, poetas, autores de fabulários, não lhe poupam
os sarcasmos.
Femme ne pense mal, ni nonne, ni béguine
Ne que [pas plus que] fait le renard qui happe le géline14.


(13) Ela tem cabeça loura / Olhos verdes, boca agradável, / Um corpo
para cingir com os braços, / Um colo branquinho.
Jamais vi flor em braçada / Juro, que fosse tão branca / Como A

o vosso encantador colo; / Os braços compridos / os dedos finos [... |
/ Os pés pequenos, dedos alongados / Devem ser considerados belos |.. ] /
Olhos ridentes, abertos com propriedade / Que tremem como estrelas / Na
noite a gotejar [...].
(14) A mulher que não seja freira ou beata / Tem tão bons pcnsmentos como a raposa quando aboca a galinha.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

Ela apenas ostenta os seus encantos para melhor trair de seguida:

La douce rien qui fausse amie a nom 15.

Galanteadora, perversa, só sorri para melhor «cativar» os corações
ingénuos que com isso se deixam prender:

Trop est fou qui tant s'y fie
Qu'il ne s'en peuí départir16.


Ele só terá dor e decepção, porque

Femme est tôt changée
[...] Ci rit, ci va pleurant
[...] Pour décevoir fut née17.


Dura e impiedosa, não se comove com nenhuma súplica, com
nenhum sofrimento e, como a Bela Dama sem Piedade, apenas opõe
calma frieza às mais apaixonadas estrofes. É ávida e interesseira:

Femme convoite avoir plus que miei ne fait ourse;
Tant vous aimera femme comme avez rien en bourse18.

No lar, ela torna a vida impossível ao infeliz marido e engana-o
impudentemente Se ela vos deixa, é-se ainda muito feliz em se
resignar, como faz o poeta Vaillant:

Bonnes gens, fai perdu ma dame
Qui la trouvera, par mon âme
De três bon coeur je la lui donne
[...] Car, par Dieu, la gente mignonne
Est à chacun douce personne19.


(15) O doce nada que de falsa amiga tem nome.
16 É demasiado louco quem tanto aí se fia / De tal forma que não
pode renunciar.

(17) A mulher cedo muda / [...] Ora ri, ora vai chorando / [...] Nas.
ceu para iludir.
(18) A mulher cobiça ter mais do que a ursa mel; / Adorar-vos-á em
proporção ao dinheiro que tendes.
(19) Boa gente, perdi a minha dama / Quem a encontrar, juro-o, / voluntariamente
a dou / [...] Porque, por Deus, a airosa galante / A doce
pessoa, pertencia a cada um.

120 REG1NE PENOU

Pura ou perversa, ridicularizada ou adulada, a mulher domina
na Idade Média as letras francesas, como domina a sociedade:

Pour jemme donne l'on maint don
Et controuve mainte chanson;
Maints fols en sont devenus sages,
Homme bas monte en parage,
Hardi en deviendrait couard,
Et large qui sut être avare20.


É ela que inspira as canções, que anima os heróis dos romances,
que faz suspirar ou comoverem-se os trovadores. Dedicam-lhe os
versos; para ela compõem belos manuscritos ricamente iluminados.
Ela é o sol, a rima e a razão de toda a poesia.

A mulher é, de resto, ela própria poeta. Fábulas e lais 21 de Maria
de França fizeram as delícias dos senhores de Champagne e de Além-
Canal (Mancha); a literatura é, por vezes, para ela, um ganha-pão,
como foi o caso de Christine de Pisan. Elas não tiveram de vencer o
desprezo a que, ainda não há muito tempo, se expuseram entre nós
as «meias azuis», talvez porque lhes evitavam os defeitos e sabiam
conservar um encanto propriamente feminino. A Idade Média representa
a grande época da mulher, e, se há um domínio em que o seu
reinado se afirma, é o domínio literário.

Isto, ainda, era bem francês. O nosso povo era, desde então,
reputado o mais galante, e já as maneiras francesas serviam de modelo
à Europa. Nenhuma civilização colocou tão alto o ideal feminino e
pôs tanta prontidão em o honrar. Nos países germânicos, o homem
representou sempre o papel principal, de Siegfried a Werther; sem
dúvida, uma Kriemhild não tinha o que era preciso para seduzir um
cavaleiro e provocar nele e se sentimento misturado de nobreza e de
amor, que nasceu em França, e que se nomeia: a cortesia.

Francesa nos grandes traços que a distinguem, a nossa literatura
é melhor ainda: um espelho do nosso país nas suas múltiplas províncias.
Picardos de veia folgazã, Champanheses de sorriso delicado,
Normandos astutos, Provençais, Languedócio , de língua quente e
cantante como a sua poesia, todas as subtis variedades do nosso solo
nela e tão expressas. Nesta literatura que os manuais nos apresentam
em bloco, como uma massa informe, há cambiantes em número

(20) X mulher atribuem-se muitos dons / E inventa-se muita canção;
/ Por ela muitos loucos tornaram-se sábios, / Homem baixo subiu de
linhagem, / O ousado tornar-se-ia pusilânime, / E perdulário quem soube
ser avaro.
(21) Poesia cujo tema são lamentações de amor. (N. do R.)
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

infinito. Todo o provinciano pode nela encontrar a sua alma, as suas
paisagens familiares, o acento da sua terra — por vezes em sentido
próprio, como neste pequeno trecho de Conon de Béthune em que ele
se lamenta de que se tenham rido das suas entoações picardas:

Encor ne soit ma parole françoise
Si la peut-on bien entendre en françois,
Et cil ne sont bien appris ni courtois
Qui m'ont repris, si j'ai dit mot d'Artois,
Car je ne jus pas nourri à Pontoise [...] 22.


Depois do século xvi, aproximadamente, as nossas obras literárias
usavam um uniforme que, por soberbo que fosse, não pode fazer
esquecer a cintilante mescla de cores da poesia medieval. Língua de
oc23 e língua de oïl 24 , falares de Poitou e falares provençais, dialectos
normando; e borgonheses, tudo isto se tornou poesia; todos encontraram
o seu Mistral, capaz de lhes fazer apreciar a riqueza e de exprimir
por eles o espírito da sua terra. Seria urgente compreender a literatura
medieval à luz destes mil aspectos das nossas províncias, para comprender
os mil aspectos que ela apresenta e tudo aquilo que ela pode
revelar-nos sobre nós próprios: Joinville ou Gace Brulé para a Champagne,
Jean Bodel ou Adam de la Halle para o Artois, Beaumanoir
para a Ilha de França, os trovadores para o nosso Midi languedócio
e provençal

*

Na inesgotável multiplicidade das suas formas, na sua individualidades
tão bem marcada, a poe:ia medieval é, antes do mais,
humana; ela encontra os temas eternos de toda a poesia.

Teve olhares maravilhados para o mundo e as coisas: para o
canto dos pássaros, para o murmúrio das árvores na floresta, para o
brotar das fontes, para magia das noites de luar:

En avril au temps pascour
Que sur 1'herbe nait la flour,
L'alouette au point du jour


(22) Ainda que a minha palavra não seja francesa / Se ela pode ser
escutada em francês, / Não são bem educados nem corteses / Os que me

censuram se eu disse palavras de Artois. / Pois não fui amamentado em

Pontoise.

(23) Oc — Língua falada pelos povos do Sul do Rio Loire. (N. do R.)
(21) Oil—Dialecto falado a Norte de França; ambos os termos, oc e
oil, significam «SIM». (N. do R.)

122 REGINE PENOU

Chante par moult grand baudour

Pour la douceur du temps nouvel.

Si me levai par un matin

J'ouïs chanter sur 1'arbrissel

Un oiseleí en son latin25.

Este sentido da natureza e do seu perpétuo milagre, estes ímpetos
de amor à renovação da Primavera nos ramos, à frescura dos orvalhos
matinais, ao esplendor do poente, animam todas as nossas letras
medievais do grande sopro da vida:

Le nouveau temps et mai et violei te

Et rossignol me semont de chanter26.

Natureza amável e sempre surpreendente, flores selvagens que
Nicolette entrançou, ramos de madressilva pelos quais Tristão traduziu

o seu amor, bosquezinhos de verdura onde veio recuperar-se o amante
desesperado da Bela Dama sem Piedade — estes campos, estes jardins,
estes rios que os iluministas pintaram delicadamente não foram menos
apreciados pelos contistas e pelos poetas. Chega-lhes uma palavra
para evocar os campos, as estações, a sombra da oliveira, a erva
tenra «que verdeja quando o tempo humedece»:
Et la mauvis qui commence à tentir
Et le doux son du ruissel sur gravelle27.


A sua visão é directa, um simples toque, mas sempre evocador;
mesmo La Fontaine não parece ter tido mais felizes descobertas que
os nossos antepassados da Idade Média, apaixonados pela verdura
e pelo ar livre.

Este frémito da vida universal desapareceu da nossa literatura
depois deles; Ronsard só lamenta os bosques de Gastines pelas ninfas
com que a Antiguidade os povoava, e termina com reflexões filosóficas;
se a fonte Bellerie inspira um poema, é apenas porque Horácio tinha
dirigido uma ode à fonte Bandusie. Com raras excepções, é preciso

(25) Em Abril no tempo de Páscoa / Sobre a erva nasce a flor, / A
calhandra ao romper do dia / Canta com grande beleza / Pela doçura
do novo tempo. / Levantando-me pela madrugada / Ouço cantar nos
arbustos / Um passarinho no seu linguajar.
O novo tempo, Maio, a violeta / E o rouxinol levam-me a cantar.

(27) E o tordo que começa a cantar / E o doce som do arroio sobre
as pedras.

LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

esperar os românticos para reencontrar, com uma sentimentalidade
algo irritante, fugas para a grande natureza. A nossa época reconquistou,
com um Apollinaire ou um Francis Jammes, esse sentido
agudo da vida que nos rodeia; é um contacto que havíamos perdido,
mas circula de novo nas nossas letras esse sopro carregado dos odores
da planície e da floresta, das montanhas e do mar, que em grande
parte devemos aos romancistas estrangeiros, a Knut Hamsun, entre
outros — e esse sentido da paisagem e da atmosfera que o Grand
Meaulnes nos restituiu. Porque não são as elevações filosóficas à
Jean-Jacques, ou os desabafos lamartinianos, que constituem o amor
da natureza, mas sim as observações directas da vida familiar, as
notas sem ênfase de um dia de chuva fina ou de uma brilhante manhã
passada à beira de um regato, essas evocações simples de um pormenor,
de uma parede coberta de hera, de uma rosa num ramo, do voo

de um corvo por cima de um campo de trigo, de um bosquezinho
de lilases num jardim de Touraine — que permanecem ligadas na
recordação às horas de alegria ou de angústia, que dão a sua nota
particular aos acontecimentos da vida humana, que rematam a harmonia
de um instante de beleza.

Mas o tema por excelência da poesia medieval é o amor. Todos
os aspectos, todas as tonalidades do amor humano foram sucessivamente
evocados, desde a mais brutal paixão até aos requintes da
retórica amorosa querida aos trovadores. Pode dizer-se ousadamente
que nenhuma literatura conheceu uma tal riqueza e levantou tantos
véus a propósito do coração do homem. Do amor muito nobre de
Guibourc, que não consegue suportar que o ser amado seja um instante
inferior a ele próprio, aos «sórdidos amores» da Belle Heaulmière
não há um suspiro, um beijo, um desejo de amor a que poetas e
romanceiros não tenham mencionado de passagem e que não tenham
nos seus versos fielmente traduzido.

Há os simples e frescos amores pastorais, os de Robin e de
Marion, que, aliás, depressa perderão a sua sinceridade e se tornarão
um tema literário:

Chevalier, par Saint Simon,
N'ai cure de compagnon.
Par ci passent Guérinet et Robeçon
Qui oncques ne me requirení si bien non28.


28 Cavaleiro, por S. Simão, / Não procuro companheiro. / Por aqui
pa&stiram Guérimet e Roberçon / Que nunca me solicitaram.


REGI NE PERNO V D

Mas, como na Idade Média a malícia nunca está ausente, mais
de uma pastorinha, depois de ter ameaçado o cavaleiro com o cajado,
deixa-se seduzir por ele:

Ma belle, pour Dieu merci!
Elle rit, si répondit:
Ne faiíes, pour la gent! 29


Há a grandeza do amor conjugal, tal como o canta Villon na
esplêndida balada para Robert d'Estouteville, em que tudo aquilo
que faz a nobreza e a beleza do casamento se encontra dito com uma
simplicidade, uma facilidade, um domínio da palavra e do pensamento
que raiam a perfeição:

Princesse, oyez ce que ci vous resume:
Que le mien coeur du vôtre désassemble
Jà ne será; tant de vous en presume,
Et dest la fin pour quoi sommes ensemble30.


Ao lado destas páginas serenas ou gentis, os acentos da paixão
carnal, como este poema de Guiot de Dijon, em que se exprime com
uma sensualidade ardente toda a angústia de um desejo insaciado:

Sá chemise qu'ot vétue
M'envoya pour embracier.
La nuit, quand s'amour m'argu'ë,
La mets avec moi coucher
Moult étroit à ma chair nue (31).


E por vezes também a separação, não menos aflita, se torna mais
pura: nunca a amargura lancinante de um amor longínquo foi melhor
evocada do que nestas páginas de Jaufre Rudel, cujo enigma se procurou
muito tempo, e que contudo são tão claras: rajadas de ímpetos

(29) Minha bela, por amor de Deus! / Ela riu-se e respondeu: / Não
se aborreça com a gente!
(30) Princesa, escutai o que vos digo: / Que o meu coração do vosso
desigual / Não será; de vós tenho tão bom conceito, / Razão enfim por
que estamos juntos.
(31) A camisa que ela vestira / Enviou-me para a beijar. / A noite,
quando sinto falta do seu amor, / Deito-a comigo/Abraçada estreitamente
ao meu corpo nu.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

contidos e de desejos impossíveis, sentimento agudo do irremediável,
que ofusca repentinamente toda a alegria de um dia de Verão:

Si que chants et fleurs d'aubespis
N'om platz plus que 1'hiver gelatz 32

É palavra por palavra que seria preciso saborear cada um deites
poemas, para compreender que riquezas foram extraídas de uma tão
rica matéria. Geralmente, quando se evoca a Idade Média, pensa-se
no amor cortês, e vê-se isso sob a forma de uma «formosa dama»,
de um cavaleiro no torneio e de insignificantes acessórios. Nada está
mais afastado da época que uma tal sensaboria. Sem dúvida que a
elegância de estilo é por eles conhecida e apreciada: elegância de
estilo à francesa, prazer de dizer e de escutar lindas coisas, galanteios
e contos de amor, temas deliciosos da chama ligeira e da semi-recusa:

Surpris suis d'une amourette
Dont tout le coeur me volette [...]
Hélas, ma Dame et si fière
Et de si dure manière,
Ne veut ouir ma prière
Ni chose que je lui quière.
Ayez merci douce amie
De moi qui de coeur vous prie 33.


Jean le Seneschal, nas suas baladas que são como que um panorama
da vida amorosa, não deixa de fazer alusão a estes jogos de
cortesia:

Jà votre coeur ne s'ébahisse
Si priez damoiselle ou dame
Qui raidement vous escondisse:
Tôt se rapaisera, par m'âme,
Donnez en à Amour le blâme
En lui priant que vous pardonne [...]
Puis 1'embrassez secrètetnent [...] 34.

(32) Cintos e flores de piriteiros / Agradam tanto como o Inverno
gelado.
(33) Fui surpreendido pelo amor / Enlevo do meu coração ... / Ai de
mim, a minha dama tão orgulhosa / E de modos tão ríspidos / Não quer
ouvir a minha prece / Nem quanto lhe quero. / Tende piedade doce
amiga / De mim que do coração vos roga.
(34) Vosso coração não se espanta / Quer menina, quer senhora / Se
pedirdes o que rigidamente vos esconde: / Cedo se apaziguará, por minha
alma. / Dai ao Amor a culpa / Pedindo-lhe que vos perdoe... / Beijai-o
depois secretamente.

RACINE PENOU

Um Thibaut de Champagne, um Guy d'Ussel e muitos outros
tiveram destas páginas encantadoras, onde só conta a beleza do sentimento
e a beleza do verso; deleitam-se nos jogos de capricho, da
astúcia feminina, do despertar de um coração para a galanteria;
Chrestien de Troyes mostrou um incomparável garbo em deslindar
as mil pequenas intrigas, manhas e ciúmes daquelas que querem
seduzir os outros e ser astutas com elas próprias; isto torna-se em
alguns um tema literário, de pura invenção verbal, que não deixa
de ter interesse:

Qui n'auroit d'autre déport
En aimer
Fors Doux Penser
Et Souvenir
Avec 1'espoir de jouir,

S'auroit-il tort
Si le port
D'autre confort
Vouloit trouver.

Car pour un coeur saoiãer
Et soutenir,
Plus quérir

Ne doit mérir
Qui aime jort.

Encor y a maint ressort:
Remembrer,
Imaginer
En doux plaisir,

Sa dame veior, ouir,
Son gentil port,
Le recort

Du bien qui sort
De son parler
Et de son doux regarder
Dont Ventr^ouvrir
Peut guérir
Et garantir
Amant de mort>5.

(35) Quem desejar amar / Para além dos doces pensamentos / E recordações/
Com a esperança de gozar / Atingirá mau porto / Se outro
conforto / Quiser achar. / Porque para embriagar um coração / E o manter
/ Mais do que o procurar / Deve merecer / Quem muito ama. / O que
mais importa: / Recordar / imaginar / Em doce prazer, / Ver e escutar
a sua dama / O gentil porte, / A melodia do seu falar. / E o entreabrir
/ Do seu doce olhar / Pode curar e proteger / O amante da morte.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

É, sem dúvida, uma das belezas da Idade Média, esta cortesia, em
que tudo era apenas nobreza de coração, delicadeza de espírito e
respeito místico pela mulher. Mas acreditar que, numa época de vida
intensa como essa, não houve acentos mais profundos e mais apaixonados,
seria puro absurdo. Por vezes, no próprio cerne da retórica
amorosa, exprime-se com uma verdade pungente toda a angústia de
um coração desesperado. A Belle Dame sons Merci [Bela Dama sem
Piedade], de Alain Chartier, é disso um exemplo impressionante. Esse
poema, em que o tema principal vem e volta sem cessar, em que as
réplicas se sucedem e se encontram com uma incansável crueza, e que
tanto contém lamento como discussão, é uma das obras-primas da
poesia de todos os tempos, pela paixão contida, pela lucidez na dor,
pela implacável lógica de um amor sem esperança.

A. Vos yeux ont si empreint leur merche
En mon coeur, que, quoiqu'il advienne,
Si j'ai 1'honneur ou je le cherche
11 convient que de vous me vienne.
Fortune a voulu que je tienne
Ma v/e en votre merci dose:
Si est bien droit qu'il me souvienne
De votre honneur sur toute chose.
D. A votre honneur seul entendez,
Pour votre temps mieux employer;
Du mien à moi vous attendez
Sans prendre peine à foloyer;
Bon fait craindre et supployer
Un coeur jollement déceú
Car rompre vaut mieux que ployer.
Et ébranlé mieux que cheu.
A. Pensez, ma dame, que depuis
Qu'Amour mon coeur vous délivra
II ne pourroit, ni je ne puis
Etre autrement tant qu'il vivra:
Tout quitte et jranc le vous livra;
Ce don ne se peut abolir.
J'attends ce qu"ú s'en ensuivra.
Je rfy puis mettre ni tollir.
D. Je ne tiens mie /H)ur donné
Ce qu'on à qui ne le prend;
Car le don est abandonné

RACINE PERNO UD

128

Si le donneur ne le reprend.
Trop a de coeur qui entreprend
D'en donner à qui le refuse,
Mais il est sage, qui apprend
A fen retraire, qu'il n'y muse.

A. Ah! coeur plus dur que le no ir marbre,
En qui merci ne peut entrer,
Plus fort à ployer qu'un gros arbre,
Que vous vaut tel rigueur montrer?
Vous plait-il mieux me voir outrer
Mort devant vous par votre ébat
Que pour un confort démonírer
Respirer la mort qui m'abat?
D. Mon coeur ni moi ne vous feimes.
Oncq rien dont plaire vous doyez
Rien ne vous nuit fors que vous-mêmes:
De vous-mêmes juge soyez.
Une fois pour toutes croyez
Que vous demeurez escondit.
De tant redire m'ennuyez
Car je vous en ai assez dit [...] 36.
E que literatura oferece um exemplo mais completo, mais patético,
de amantes trágicos, do que Tristão e Isolda? Houve alguma
vez criação mais forte e mais perfeita do que estes doi:. seres, perdidamente
dedicados um ao outro, vivendo apenas pelo seu mútuo
amor? «Nem vós sem mim, nem eu sem vós» — ardor dilacerante e
sem ênfase, violência dos contrastes: Tristão rebaixado a um papel

36

 A. Os vossos olhos deixaram tal marca / No meu coração que,
aconteça o que acontecer, / Se encontro a honra onde a procuro / Reco
nheço que de vós me vem. / A fortuna quis que tivesse / A minha vida
à vossa mercê / Colocando vossa honra acima de tudo o mais.
D. Ã vossa honra apenas dais ouvidos / Como forma de empregar
o vosso tempo; / Do meu vos quereis ocupar / Sem incómodo para folgar;
/ Melhor seria temer e suplicar / Um coração loucamente seduzido /
Pois vaie mais romper do que ceder, / E mais vale tremer do que cair
A. Julgai, senhora, pois desde / Que o Amor vos entregou meu
coração / Nem ele poderá, nem eu posso / Ser de outra forma enquanto
viver; / Completamente livre e aberto o entregará; / Esta dádiva "<""'
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

de bobo, Isolda segura do seu amante e torturada pelo ciúme, amores
selvagens e pudicos, mordeduras dos remorsos e do afastamento:

Je suis Tantris qui tant 1'aimai
Et aimerai tant com vivrai

— Anuit fãtes ivre au coucher
Et 1'ivresse vous fit rever!
— Voir est: d'itel boivre suis ivre
Dont je ne cuide être délivre [...]
Le roi 1'entend et si'en rit,
et dit au foi: Si Dieu fdit,
si je te donnais la reine
en hoir, et la mette en saisine,
or me dis que tu en ferois
ou en quel part tu la menrois?
— Roi, jait le foi, là sus en 1'air
ai une salle ou je repair [e];
de verre est fait, belle et grand;
le soleil va parmi rayant,
en 1'air est, et par nuées pend,
ne berce et ne croule pour vent.
Delez la salle a une chambre
pode ser negada. / Aquando o que se segui/rá. / Não posso interferir
nem impedir.

D. Não considero como oferecido / O que se oferece a quem recusa;
/ Pois a dádiva será abandonada / Se o dador a não recuperar. / B demasiado
generoso quem procura / Oferecer a quem recusa, / Mas anda
bem quem sabe / Betirar-se quando não agrada.
A. Ah! coração mais duro que o negro mármore,/Em que favor
não pode entrar, / Mais resistente a vergar que uma grande árvore, / De
que vos serve mostrar um tal rigor? / Agradar-vos-á mais levar-me
ao paroxismo / Morto perante vós para vosso gozo / E nem sequer
dar-me o conforto / De testemunhar a morte que me abatef
D. Nem o meu coração nem eu vos iludimos / Jamais nada deveis
para agradar / Nem nada vos prejudica senão vós mesmos: / De vós
tiu-smos sr.de o juiz. / De uma vez por todas acreditai / Que não passareis
An uma sombra. / De tanto redizer me enojais / Pois muito já vos
disse[...].
http://saomiguel.webng.com/


RÉGINE PERNOUD

faite de cristal et de lambre;
le soleil, quand main lèvera,
céans moult grand clarté rendra [...] (37).


Nunca mais rica gama de temas inspirou um poeta, nunca o amor
humano soube encontrar acentos mais verdadeiros e mais intensos.

Com eles tantos outros, como Lancelote e Genoveva, conservam,
por entre os arrebatamentos da voluptuosidade, o sentido da honra,
da rectidão, do respeito devido ao senhor que se traiu contra a sua
vontade. Quão humanos também, esses momentos de súbita selvajaria,
como na estranha história que se chama La filie du comte de Ponthieu,
em que se vê uma jovem, violada sob os olhos do seu marido, voltar-se
contra ele, logo que os seus algozes a deixam, e procurar matá-lo
antes que ele se desembarace dos seus atilhos — incapaz de suportar

o seu olhar depois da grande vergonha que tinha sofrido perante ele.
Estes gritos de dor e de paixão, esta violência de ser sensível, eis a
Idade Média e eis a sua poesia, ardente, directa, inesquecível, e que
vos prende, uma vez saboreada, como aquele filtro de amor que
beberam inadvertidamente os seus dois mais comoventes heróis.
Outros temas de inspiração dão a nota viril: a guerra, em primeiro
lugar. Aquele que pretendeu que os Franceses não tinham «a cabeça
épica» ignorava a Idade Média. Nenhuma literatura é mais épica do
que a nossa. Não só se inicia com a Chanson de Roland [Canção
de Rolando] — um dos pontos altos da epopeia, do qual, parece,
ainda não se apreendeu plenamente a beleza—, mas compreende
mais de cem outras obras que são tão boas como ela e que continuam,
também elas, um tesouro a explorar. Todas, ou quase todas, testemunham
essa simplicidade na grandeza, es:e sentido das imagens,
que fazem do autor da Chanson de Roland [Canção de Rolando] um
dos maiores poetas de todos os tempos. O carácter da epopeia francesa
é precisamente este tom simples e despojado que é o de toda a nossa
Idade Média: os heróis não são nela semideuses, são homens, cujo

(37) Sou Tãotris que tanto a amou / e amará enquanto durar a sua
vida / — Aposto que estavas ontem bêbado ao deitares-te / e foi a c.m
briaguez que te fez sonhar isso! / — Havei-lo dito: estou de verdembriagado / mas foi por ter bebido uma beberagem como não há outra
no mundo... / O rei escutou-o e rindo-se / perguntou: Que Deus te ajude. /
se te presenteasse a rainha, / diz-me, o que farias dela? / Para onde
o levarias? / — Rei, respondeu o louco, tenho lá em cirna no céu / uma
sala onde habito; / é toda feita de vidro, bela e grande; / pendura/In
nas nuvens / e ioda banhada pelo sol, / qualquer que seja a violência
dos ventos, / não se mexe nem cai. / Perto da sala há um quarto feito
de cristal; / quando o Sol se levanta, / a claridade 6 maravilham ...
LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

valor guerreiro não exclui as fraquezas humanas. Apesar de toda a
arte virgiliana, Eneias parece bem pálido e a sua psicologia bem
sumária ao lado de Rolando ou de Guilherme de Orange, destes seres
todos cheios de contrastes, cuja valentia arrasta alternadamente desmesura
e humildade, excesso e desalento. Esta justeza de observação
impede as nossas epopeias de se tornarem o que elas teriam podido ser:
um monótono desfile de indivíduos heróicos e de façanhas prodigiosas.
A valentia é nela estimada acima de tudo, mesmo a dos inimigos,
mesmo a dos traidores, e com ela o sentimento da honra, a fidelidade
ao vínculo feudal; mas tanta nobreza de alma teria podido tornar-se
fatigante, sem esses cambiantes que enriquecem os personagens e lhes
dão vida. É por isso que, por pouco que se conheça a Chanson de
Roland [Canção de Rolando] —a única das nossas epopeias que
teve honras de manuais escolares—, os seus heróis permanecem tão
ricos em cores na nossa imaginação: Rolando, bravo mas temerário,
Turpin, o arcebispo piedoso e guerreiro, Olivier, o Sábio, e Carlos,

alto e poderoso imperador, mas cheio de piedade pelos seus barões
massacrados e abatido por vezes pelo peso da sua existência «penosa».
Tantos personagens que o contista soube evocar por imagens, por
gestos, poderíamos dizer, e não por descrições- Sóbrio quando se trata
do cenário da acção, ele vai direito ao fim; todos os pormenores que
ele dá são «vistos» e fazem ver; esse estandarte completamente branco,
cujas franjas de ouro lhe descem até aos joelhos, coloca melhor Rolando
na beleza resplandecente do seu trajo do que o faria uma descrição
minuciosa à maneira moderna. E os feitos e os gestos dos
heróis, os seus pensamentos, as suas preocupações, são deste modo
tratados com notações visuais, em pinceladas claras e rápidas, com
uma arte infinita na escolha dos pormenores que impressionam, como
impressionam na realidade, não a ordenação e a composição geral
de um cortejo, mas tall silhueta, tal cor dominante, o reflexo de um
cobre ou o som de um tambor- São as cintilações que jorram dos
«elmos claros» durante a confusão de um combate, os rubis que luzem
nas «maças dos mastros» da armada sarracena, ou ainda essa luva
que Rolando estende a Deus no seu arrependimento e que o Arcanjo

Gabriel agarra.

O que desconcertou os literatos nas epopeias medievais é a ausência
total dos processos analíticos a que a literatura clássica nos habituou:
nada de narrações, a acção directa; nada de desenvolvimentos
nobre os caracteres, as tomadas de contacto; nada de dissertações,
mas gestos, cores, «instantâneos»; no que era poder de evocação só
vimos pobre/a do invenção. Certas técnicas do nosso tempo, por exemplo
u do cinema, tornaiam-nos familiar esta tradução do pensamento


132 REG1NE PENOU

pela imagem, e poderíamos de novo apreciar estas obras-primas que
vêm a ser no espírito da nossa época. Até aqui, tinha-se resolutamente
deixado de lado a sua beleza intrínseca, para apenas nos ocuparmos
com problemas que, a falar verdade, não se punham e teriam parecido
bem fúteis aos cérebros medievais: em particular a questão da filiação
das epopeias e do seu valor histórico. Houve, originariamente, um ou
vários poemas sobre a Couronnement de Louis [Coroação de Luís]'!
Que personagem pode na realidade ser Guilherme de Orange?, etc,
etc. Seria tempo de tomar, enfim, estas obras-primas por aquilo que
elas são: contos narrativos, nos quais o ponto de partida histórico
é apenas um pretexto e cujo único objectivo foi comover ou encantar,
segundo a imaginação do autor e o gosto do público. O importante,
é que eles sejam belos, e são-no. Belos e prodigiosamente variados:
já fizemos notar como as nossas duas mais antigas epopeias eram,
uma, sublime, a outra, burlesca. Ademais, no Charroi de Nîmes, por
exemplo, estas duas características sobrepõem-se; e nenhuma parte
de humor perde os seus direitos, realçando sempre a grandeza de certas
cenas pela fantasia burlesca ou prazenteira das outras. É Shakespeare,

avant la lettre.

Ao lado da poesia épica, a guerra inspirou numerosas obras
literárias, canções de trovadores, narrações de cronistas, poemas narrativos,
sem contar com os inumeráveis duelos e torneios da literatura
romanesca. Por todo o lado ela é evocada com a mesma simplicidade;
por todo o lado transparece uma mesma admiração pela valentia
e pelo garbo, o sentido daquilo a que chamamos fair play, e que faz
dela um belo jogo, do qual estão excluídos os «golpes baixos», ou,
pelo menos, sempre difamados, em que a coragem, mesmo infeliz,
é sempre respeitada, em que, enfim, as leis da honra dominam tudo

o resto. Lancelote vencedor descobre-se perante o seu suserano, que
ele fez desmontar e ajuda-o a montar de novo; Joinville defende com
o próprio corpo o rei São Luís. Aos excessos da guerra, às cenas de
massacre e de crueldade, que não estão ausentes, opõe-se sempre
algum acto de clemência, qualquer eco de piedade.
É com os mesmos olhos que os homens da Idade Média olharam
a morte. Sem dúvida, em nenhuma literatura ela foi encarada com
tanta coragem sem ênfase e tanta lucidez sem amargura. Os versos
de Villon vêm à memória quando se evoca:

La mort le fait fremir, pâlir,
Le nez courber, les veines tendre
Le col enfler, la chair mollir
Joinctes et nerfs croître et étendre

LUZ SOBRE A IDADE MEDIA

Et meure Paris ou Hélène
Quiconque meurt, meurt à douleur;
Celui qui perd vent et haleine
Son fiel se crève sur son coeur
Puis sue: Dieu sait quelle sueur [...] 38.

Numerosos outros poetas dela falaram com este realismo agudo,
este poder de evocação e esta calma impressionante:

Mort qui saisis les terres franches
Qui fait ta queuz des gorges Manches
Pour ton raseoir affiler,
Qui 1'arbre plein de fruits ébranches
Que le riche n'ait que filer,
Qui par long mal le sais piler,
Qui lui ôtes au pont les planches,
Dis moi à ceux d'Angivillers
Que tu fais faiguille enfiler
Dont tu leur veux coudre les manches [...] 39.

Morte dos bravos na confusão, perdendo as entranhas por gigantescas
feridas, morte dilacerante de Tristão, morte piedosa do pequeno
Vivien — uma grande serenidade subsiste sempre no sofrimento, descrita,
contudo, com uma energia propícia a fazer arrepios.

Ao lado destes temas universais, alguns temas são especiais da
literatura da Idade Média. Entre outros, a mágica; assiste-se a um
transbordar da imaginação; o mundo real e os seus tesouros não
bastaram à inspiração dos contistas: foi-lhes necessário beber da fantasmagoria
e semear de maravilhas a vida dos seus heróis- Bem frequentemente,
estes pormenores imaginários são apenas figuras encobrindo
altas verdades. A alegoria está entre estas: podemos achar
artificiais estas evocações de qualidades abstractas, este modo de fazer
falar Doce Pensar e Falso Parecer, de invocar Esperança e de maldizer
Desconfiança ou Traição. É, em todo o caso, mais um indício


(38) A morte fá-lo estremecer, empalidecer, / O nariz curvar as veias
milenar / O pescoço entumecer, a carne afrouxar / Articulações e
nervos distender. / Faleça Paris ou Helena / Quem quer que morra, morre
dolorosamente; / Aquele que perde o ar e o fôlego / Sentindo a morte
apertar-se no coração / Bua, Deus sabe que suor [...]
(39) Morte que te assenhoreias das terras livres / Que fases dos
bvaiuos colos amolador / Para afiares a tua lâmina / Que podas a
Arvore prenhe de frutos / Apanhando o opulento / Roubando-o por
longa doença / Que arrancas à ponte as tábuas / Diz aos de Angivillers /
Que preparas n agulha / Aqueles a quem queres coser [ ... ]

REFINE PENOU

dessa vida prodigiosa que anima as letras medievais e que dá uma
alma, um corpo, uma linguagem a todas as coisas, mesmo às mais
imateriais. Sabe-se qual foi o gosto da época por tudo aquilo que é
concreto, pessoal, visível. O processo alegórico, que se alia curiosamente
ao culto da imagem, manifesta este gosto mais uma vez. É
necessário menosprezá-lo a priori? A alegoria parece ser apenas a
transposição de um mundo invisível, ao qual damos de novo um
lugar de eleição. Porque não há grande distância, no fim de contas,
entre os «debates» com que se deleitou a Idade Média literária e esses
jogos do inconsciente, aos quais a nossa época concede nomes mais
precisos mas menos poéticos: actos falhados, censura, reflexos e
reacções mais ou menos conscientes do ser humano.

Estes factos prodigiosos não aparecem menos profundos na sua
significação: fontes encantadas jorrando sob os passos dos cavaleiros,
palavras mágicas a pronunciar para dominar as forças naturais, poderes
misteriosos que conduzem os homens ao seu destino e aos quais
eles obedecem sem medir o alcance dos seus gestos. A literatura
romanesca abunda em exemplos deste género, aos quais um Chrestien
de Troyes deu a sua mais alta expressão: a grandeza de Yvain e de
Perceval reside neste sentido do maravilhoso que achamos ao mesmo
tempo tão mágico e tão humano.

Mas há também, e sobretudo, a fantasia gratuita, o prazer de
acumular os prodígios e de criar um mundo impossível, o gosto do
estouvado e da brejeirice: cavalo mágico de Cléomadès, zombarias
e feitos burlescos dos pares no Pèlerinage de Charles, aventuras de
Merlin e de Viviane ou do anão Obéron. Aí, nenhum obstáculo se
opõe ao fantástico, e as criações, semitrocistas, semimaravilhadas,
sucedem-se segundo os caprichos de uma imaginação desenfreada.
Não parece que qualquer outra época tenha suscitado tantas invenções
bizarras e histórias de fazer dormir; a Idade Média divertiu-se á
grande com esta facilidade própria do homem de tirar do seu cérelno
um mundo estravagante, tão longe quanto possível da realidade
material; é um jogo de espírito no qual ela foi excelente.

Este gosto pelo absurdo alia-se às preocupações mais nobres, as
mais angustiantes por vezes; por exemplo, a este tema da procura, da
«busca», que é bem um dos mais dominantes que o domínio lileráno
conheceu e um dos mais significativos para a compreensão de uma
época que por aí se aproxima singularmente da nossa. A obses ao
da partida para um tesouro escondido, a necessidade de descoberta e

o desejo pungente da reconquista de um amor perdido são, simultâneamente,
muito medievais e muito modernos. Perceval é o antepassado
do Grand Meaulnes; e se, depois, muitos «pequenos Meaulnes
nos desgostaram um pouco dos sonhos da infância, subsiste o tema
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

de um paraíso perdido, de um «gesto-chave» a realizar, de uma sede
a saciar, esse ímpeto incerto para um misterioso destino encontra um
eco infalível nas letras e no pensamento modernos. O Graal, a taça
de uma matéria desconhecida dos mortais, que todos procuram, mas
que só um coração puro poderá reaver, continua a ser um dos achados
mais sedutores da Idade Média. Claro, a sua interpretação deu lugar
a incríveis tolices; as inevitáveis investigações históricas, em primeiro
lugar: análise das fontes, das filiações, etc. — quando se trata de dados
humanos e não de um enigma histórico. Alguns críticos chegaram ao
ponto de se espantar com a atitude de Perceval, olhando, perturbado,
passar a taça misteriosa, sem ousar pedir sobre ela a menor explicação;
e, nesta espécie de assombro, contudo tão natural, tão verdadeiro —
aquele que vos toma quando se resolve uma dificuldade, quando acontece
o inesperado, quando a realidade ultrapassa as vossas ambições
e desejos—, apenas se viu um processo poético para fazer ressaltar
uma acção que teria podido acabar-se lá. Pode crer-se, contudo, que
semelhante incompreensão já não seria possível nos nossos dias,
porque as reacções escondidas da alma humana nos são mais familiares
e os seus motivos desconhecidos nos foram melhor revelados
do que nas épocas racionais ou sentimentais que nos precederam-
O ocultismo e, numa certa medida, a psicanálise prestaram-nos nisso
um grande serviço, apesar dos excessos e dos erros dos ocultistas e dos

psicanalistas. Ver em Perceval ou em Galaad simples heróis de romance-
folhetim, cujo autor faz render a massa arquitectando as mais
complicadas aventuras, é desconhecer uma das mais altas criações
do espírito humano encarnando essa profunda sabedoria e essa desconcertante
audácia que representa, no mundo, a simplicidade de coração.

E a demanda dos cavaleiros errantes traduz também, a seu modo,
este movimento que caracteriza a Idade Média. Era normal que a
febre itinerante dos nossos antepassados deixasse vestígios na literatura.
Fora as obras de Chaucer, que dela são a expressão mais directa,
reencontramo-la nos romances de aventuras e na literatura cavaleiresca.
Àquele que, na sua juventude, se contenta com as paisagens
familiares c não experimenta o desejo de descobrir outros horizontes
«deviam-lhe os olhos cegar», declara sem rodeios Filipe de Beauma-
Iloir. Tanto quanto a angústia das separações, cantou a Idade Média
I alegria das partidas:

N'en puis ma grand joie celer
En Egypte vais ai ler (40)

(40) Não posso ocultar a minha imensa alegria/ Para o Egito vou.

REGI NE PERNO U D

diz um motete anónimo do século XII. A peregrinação, sob todas
as suas formas, é tão familiar à literatura como à vida, fornecendo,
de resto, como tudo o resto, motivo de gracejo: o abuso que dela se
fazia inspira um capítulo bem engraçado do Quinze pies de mariage.

E temos, enfim, um tema universal que se tornou um tema medieval:
Deus. Opondo-se diametralmente à teoria que deviam manter
na sequência da Arte Poética e dos clássicos, a Idade Média bebeu
na sua fé como na mais pura fonte de toda a poesia. Com efeito, como
poderia um crente, imbuído da sua religião, abstrair da sua própria
substância na sua actividade poética que exige, mais do que qualquer
outra, a participação de todas as faculdades do ser? Negligenciar o
sentimento religioso em poesia, nesta época de fé sincera, apenas
redundaria em mutilar o homem, em introduzir nele uma dissociação
e uma negação neste domínio essencialmente afirmativo que é a poesia,
condenada, por consequência, a tornar-se artificial e pouco sincera.
Também o pensamento de Deus é inseparável da poesia medieval.
Desde os companheiros de Rolando, que caem na confusão invocando
Deus, até aos cavaleiros do Jeu de Sainí-Nicolas, que os seus anjos
acolhem em grande alegria depois do seu massacre pelo exército sarraceno,
da Ave Maria de Beaumanoir à balada que François Villon
fez, a rogo de sua mãe, para rezar a Nossa Senhora, podemos dizer
que todas as formas da piedade medieval passaram alternadamente
nas suas letras". Como a Idade Média teve uma predilecção pelo
culto da Virgem, a sua graciosa imagem —«mais doce flor do que
é a rosa» — anima o conjunto da poesia, tanto profana como sagrada.

(41) Não se pode, sem espanto, assinalar a opinião singular que sobre
este assunto M. Thierry Maulnier emite, na sua Introduction à la poésie
française, onde, de resto, o domínio medieval é totalmente negligenciado
e ignorado: segundo esta obra, a poesia francesa de todos os tempos
teria, instintivamente, seguido o conselho de Boileau e apenas teria
conhecido as divindades da mitologia. É obrigado, contudo, a admitir
algumas excepções: «Villon, d'Aubigné, Comeille, Racine, escreveram,
diz ele, poemas cristãos, mas era para comprar ou pagar o direito de ter
escrito poemas que o não fossem.» Notemos, de passagem, que se tem
dificuldade em acreditar que Villon só tenha escrito a Ballade des Pendus
para fazer aceitar Belle Heaulmière, ou que Corneille só tenha composto
Polyeucte para se fazer perdoar pelo Horace. Parece também difícil
eliminar todos aqueles que falaram de um Deus bem cristão, ainda que
para blasfemar o seu nome, e riscar assim, de uma penada, com todos
os românticos, Baudelaire, Rimbaud, Verlaine, Péguy, Claudel, Francis
Jammes e tantos jovens poetas contemporâneos. Em todo o caso, o
conjunto da poesia medieval contradiz formalmente esta tese.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA 137

Um Thibaut de Champagne não vem procurar junto dela remédio
para o seu desgosto de amor:

Quand datne perds, Dome me soit aidant!42

De tal modo é verdade que o poeta medieval sente e pensa natu


ralmente como cristão, mesmo nas suas faltas e prazeres.

A Igreja foi, de resto, nesta época, uma prodigiosa inspiradora.

Foi ela que deu origem ao teatro, ela que fazia vibrar as multidões

com os pormenores da Paixão de Cristo ou os Milagres de Nossa

Senhora e que fornecia aos jograis as lendas sobre as quais se edifi


caram as suas narrações. Sem contar com as inumeráveis prosas, se


quências e hinos litúrgicos que emanam directamente dos clérigos c

que, pela variedade das suas cadências e pela riqueza dos seus ritmos,

figuram com honra no nosso património poético- Podemos citar, por

exemplo, a sequência do Pentecostes atribuída por alguns ao papa

Inocêncio III, por outros ao rei Roberto, o Piedoso:

Verti saneie Spiritus

Et emitte celitus

Lucis tue radium [...]

In labore requies

In estu temperies

In jletu solacium [...] 43

ou ainda esta admirável Oração do Itinerário, de uma prosa sim pie»
e, contudo, sabiamente cadenciada:

[...] esto nobis, Domine,
in procinctu sujjragium
in via solacium
in estu umbraculum
in pluvia et frigore tegumentum
in lassitudine vehiculum
in adversitate praesidium


(42) Quando se perde, a senhora / Que Nossa Senhora mv. valha!
(43) Vem Espírito Santo, e envia do céu a Tua Luz radiosa ... Suavizas
no trabalho, temperas nos rigores, alivias no pranto..

RÉG1NE PENOU

in lubrico baculus

in naufrágio portus

ut, te duce, quo tendimus / prospere perveniamus

ac demum incólumes / ad propria redeamus [...] (44)

Esta arte muito profunda da poesia litúrgica (as estrofes compostas
por São Tomás de Aquino para a festa do Santo Sacramento são
autênticas obras-primas) completa-se com o canto gregoriano que dá

o seu pleno desenvolvimento às sílabas e às frases latinas e faz ressaltar
as suas sonoridades. Os monges de Sole: mes, fazendo conhecer
do público, por meio do disco, estes tesouros da mú:ica sagrada,
permitiram-lhe igualmente tomar contacto com uma fonte muito pura
da poesia.
Um simples esboço do que foi o domínio literário medieval permite
rectificar certas opiniões preconcebidas sobre a literatura francesa.
A pretensa indigência do nosso lirismo não é mais real do que
a pretensa indigência da nossa epopeia. Se a veia poética se encontrou
por vezes esgotada pelos entraves postos à inspiração, não é menos
verdade que os primeiros séculos das nossas letras apresentam toda
uma floração de poetas líricos que podem sustentar comparação com
não importa que poetas estrangeiros, e não se submeteriam senão
talvez à Inglaterra, reino de predilecção do lirismo até à época moderna.
Mas os nossos melhores poetas líricos continuam desconhecidos
do público francês, e ser-lhe-ão inacessíveis, enquanto um esforço de
compreensão, pelo seu lado, e de adaptação, pelo lado dos editores
e dos educadores, não tenha sido realizado 45.

Só este esforço nos permitiria tomar enfim consciência do nosso
passado e dos seus esplendores: esplendores de pensamento e esplendores
de expressão. Porque a literatura medieval é tão rica de géneros
como de temas literários. Tudo aquilo que se pode sonhar pelo que
respeita a formas poéticas nela se encontra representado: há o teatro
e há o romance; há a história e há a epopeia; sobretudo a poesia
lírica apresenta-se com uma incrível diversidade de aspectos: contos
narrativos e romanescos, tais como os lais em que Maria de França
se ilustrou, narrativas mistas de prosas e de versos, como o delicio o

(44) Sê para nós, Senhor, o favor no campo das batalhas, o alívio nos
caminhos, a sombra no calor, 0 abrigo na chuva e no frio, o transporto
na fadiga, o apoio na adversidade, o bastão no perigo, o porto no naufrágio,
por isso guia-nos no caminho, para que cheguemos com êxito t>
finalmente regressemos incólumes.
(45) Uma Anthologie de la poésie lyrique du Moyen Age, em preparação,
tentará tornar acessíveis alguns destes poetas atenuando «IH
dificuldades linguísticas.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA \y>

Aucassin et Nicolette, pastorais e redondilhas, tenções e bailias,
canções de «tela» e canções de dança, motes e baladas; a variedade
de formas só tem igual na variedade de ritmos e do verso. Este
adapta-se ao género cultivado; é, geralmente, para a epopeia, o decassílabo,
mas, na poesia lírica, os versos de doze, dez, oito, sete
sílabas são empregados alternadamente com refrãos de quatro ou seis
pés. Pode dizer- se que a única regra consiste na cadência exigida pela
marcha geral do poema e pelos sentimentos a exprimir; a armação
do verso, a sua forma, a sua acentuação, tomam, de resto, mais importância
do que o seu final, rima ou assonância.

Esta aparente liberdade encobre, na realidade, uma técnica extremamente
sábia e quase sempre extremamente hábil. Ainda não se
soube medir toda a arte dos nossos velhos poetas e a facilidade com
que eles se movem no meio de dificuldades. A sua cadência tão fácil
é, de facto, uma obra-prima de composição. Certos poemas dos
nossos trovadores, com estrofes uniformemente compostas com os
mesmos finais, testemunham uma espantosa virtuosidade, aquela que
encontramos em Villon, em Alain Chartier e, em geral, nos poetas
do século XV, que levaram esta técnica à perfeição. É o ca o das
baladas de rimas retomadas, das quais Christine de Pisan deixou mais
do que um exemplo:

Fleur de beauté en valeur souverain
Raim de bonté, plante de toute grâce,
Grâce d'avoir sur tous le prix à plein
Plein de savoir et qui toux maux efface,
Face plaisant, corps digne de louange,
Ange au semblant où il n'a que redire [...]


Et j'ai espoir qu'il soit en votre main
Maints jours et nuits, en gracieux espace,
Passe le temps, car jà a bien hautain
Atteint par vous, et Amour qui m'enlace
Lasse mon coeur qui du votre est échange [...] 46.


(46) Flor de beleza de valor supremo / Rainha de beleza, planta cheia
de graça / Graça de ter sobre todas a graça / Plena de saber e que todon
os males apaga, / Rosto agradável, corpo digno de adoração, / Um anjo
nobre o qual nada mais há o dizer ... / E tenho esperança que na vossa
nulo, / Dias e noites em gracioso espaço, / O tempo passe, pois há tanto
tempo / Atingido por vós o Amor me enlaça / Mudando o meu coração
pelo vosso [ ...].

140 RÉG1NE PENOU

São jogos de rimas, mas que revelam uma surpreendente habilidade.
De igual modo, o lamento continuava de uma estrofe para
outra:

[...] Si te supplie sur toute chose
Prie le qu'il ait de moi merci.


Merci requiers à jointes mains
A foi, trésorière de grâces [...] 47.


Há também, num outro género, inumeráveis acrósticos, anagramas
e passatempos diversos; tudo isto não faz parte do património
poético propriamente dito, mas mostra, contudo, o gosto da perfeição
verbal, da bela linguagem, comum a toda a Idade Média. Charles
d'Orléans, nesta arte, mostrou-se o príncipe dos poetas, pela mestria
impecável do verbo e da rima, sob uma aparente negligência; não há
uma das suas pecinhas requintadas, allternadamente melancólicas,
sorridentes ou joviais, que não dê prova de uma arte aperfeiçoada-

É preciso dizer que nestas questões técnicas os nossos antepassados
eram ajudados pela excepcional leveza da linguagem. Muito
mais extenso do que o é hoje, o vocabulário, que ainda não sofrera
essas depurações infelizes de que depois foi vítima, prestava-se maravilhosamente
às invenções e às investigações poéticas. Não existia,
como nos nossos dias, nenhuma distinção entre estilo nobre e estilo
vulgar; a língua enriquecia-se em particular com toda a gama de
termos de ofício, inesgotável reservatório de imagens de que os séculos
posteriores foram privados. Havia também a facilidade de formar
compostos, de transpor para substantivo o infinitivo de um verbo, de
utilizar as palavras dialectais e termos de região. Tudo isto faz unia
linguagem cheia de inspiração e de exuberância, capaz de se dobrar
às subtilezas da arte poética, com felicidade e audácia. Se há unia
época em que se usou plenamente a magia verbal e se saboreou todo

o valor de uma palavra bem inserida, de um achado de vocabulário,
é a Idade Média. Foi-se ao ponto de usar puramente e simplesmente
malabarismos de palavras encadeadas umas nas outras, nessas extraordinárias
Fatras [Miscelâneas] que são nem mais nem menos do que
uma utilização do «automatismo» ao qual apelaram os surrealistas
modernos; cada palavra sugere uma outra, e o poeta deixa-se condu
(47) Peço-te encarecidamente / O favor da tua graça. / E de mão
juntas te agradeço / Seres a depositária das graças.
LUZ SOBRE A IDADE MÉDIA

zir por este apelo de imagens sucessivas e de sonoridades, sem que
intervenha a ordenação do pensamento e da lógica:

Le chant d'une raine

Saine une baleine

Au fond de la mer

Et une sirene

Si emportait Seine

Dessus Saint-Omer.

Un muet y vint chanter

Sans mot dire à haute haleine [...] (48).

É puro jogo verbal, e isto não deixa de apresentar para nós algum
atractivo de actualidade.

Este sentido do sabor da palavra, da cadência da frase, ultrapassa,
de resto, na Idade Média, o domínio literário. Toda a linguagem da
época —a dos Crieries de Paris como a dos chamamentos dos marinheiros—
testemunha uma preocupação de ritmo que reapareceu nos
nossos dias sob a forma do slogan publicitário. As regras de direito,
as fórmulas jurídicas, os provérbios —por exemplo, aqueles que
Antoine Loisel reuniu — trazem a marca desta preocupação da expressão
brilhante, com um andamento espontâneo e directo que mostra
bem que se tratava nesses casos de uma capacidade natural de se exprimir
com felicidade, talvez porque o intelecto ainda não tinha absorvido
em seu proveito as outras faculdades e codificado como o resto

o poder de afirmação. Todas as expressões que nos restam e que nós
empregamos sem medir a nobreza da sua origem: «neves de antanho»,
«estar como o pássaro no ramo» (andar aos baldões da sorte) ou «como
cão e lobo», «comer o seu trigo enquanto erva» (comer adiantado),
«nem carne nem peixe», etc, testemunham, no seu aspecto poético ou
familiar, mas sempre expressivo, uma intuição muito viva da eficiência
verbal.
(48)Justamente porque é apenas um jogo verbal, não tem nexo

traduzi-lo.











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